quarta-feira, 19 de junho de 2024

CARTA À UM IRMÃO ERRANTE

 




 

Trinta e cinco dias faltaram-lhe para ultrapassar a barreira dos oitenta anos. E não lhe foi possível atender ao meu pedido.

Por onde anda agora, lembrará.

Eu te pedi, às vésperas da cirurgia de alto risco a que você foi submetido, há dois anos e pouco, que, caso retornasse, se fizesse uma proposta: de ser uma pessoa melhor, que pudesse ser lembrado por algo que efetivamente fizesse sentido à sua vida.

Sim, Mauro. Fui privilegiado pela Vida por ter me exposto a poucas e expressivas tristezas. Mas, uma delas, devo confessar e imensa foi observar a sua trajetória. Sempre me perguntei por que alguém poderia, sistematicamente, permitir-se tantos desacertos, desatinos, errâncias?

Não escrevo para fazer juízo de seus atos, mas para deixar registrado quanto eu sofri por não ver de você e em você algo que marcasse a sua passagem pela Vida.

Não que tivesse algo de extraordinário a fazer, mas algo pelo qual eu pudesse ter na lembrança e dizer: “Aqui ele me foi importante, ou importante a alguém.”

Se bem que, minto, quando morávamos eu e minha família em Vitoria, você esteve lá em casa e cuidou dos meninos durante alguns dias para que eu pudesse trabalhar e Vera ir para a faculdade.

Olha, eu estou me lembrando de quando da penúria na infância, você apareceu com pares de sapatos que serviam em mim, sabe-se lá vindos de onde.

Lembro também que, certa vez, fui pressionado pelos pais, aos quatorze anos, para que eu arrumasse trabalho, você interveio e disse: “Deixem que amanhã vou arrumar um emprego pra esse menino.” No dia seguinte, ansioso, fui contigo ao encontro da oportunidade. Você me levou ao campo do Cruzeiro, no Barro Preto, para assistir à um treino do time, e lá me disse: “Relaxe, viva a Vida.”

Há também o episódio em Cabo Frio que estávamos juntos no mar e nos vimos em palmos de aranhas, quase nos afogamos e juntos. Você ao sair, disse: “Que porra de mar besta, sô! Vê lá se me levas!”

E foi assim.

Hoje, ao despedir, quero que saibas: eu lhe sou muito grato por me revestir os pés descalços e viver a Vida. E isso foi imensamente extraordinário.

Muito obrigado, meu irmão.

Vá em paz!


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