Estivemos em Cuzco, Peru, em 2011. Hospedamo-nos no
Hotel Monastério adquirido em 1999 pela Orient Express. Construído em 1595
sobre o Palácio do Inca Aman Qhala e fundado em 1598 como o Seminário de San
Antônio Abad com o fim de formar sacerdotes católicos. Em 1692 tornou-se a Real
Universidad Catolica, voltando a ser Seminário em 1816. Em 1965 foi restaurado
por força de um terremoto ocorrido em 1950. Na década de 70 foi remodelado para
converter-se em hotel. Uma maravilha!
Cuzco, em quéchua (idioma Inca), é COOSCO que
significa centro do mundo. A cidade é localizada no centro das quatro regiões
em que se dividia o Império Inca, a 3.350m de altitude e declarada Patrimônio
da Humanidade pela Unesco em 1984.
Visitamos QORIKANCHA, templo maior do Império,
reverência ao Deus Sol. Foi construído pelos Incas em 1423 com pedras buscadas,
no braço, a 7 km de distância. Quando os espanhóis chegaram a Cuzco em 1532 e
viram o conjunto de obras, entre elas Qorikancha, repletas de ouro,
consideraram-nas como sendo obras do diabo, já que para eles os incas seriam
animais desprovidos de conhecimento e sentimento. Pobres colonizadores.
Fomos a SAQSAYHUAMÁN. Um imenso parque
arqueológico. Os Incas plantaram ali o monumento ao Deus Raio, e reverenciaram
as lhamas e os pumas, animais símbolos da cultura, assim como o condor (Machu
Picchu). A construção com perto de 700 metros de extensão em forma de zig zag
(lembrando a descarga elétrica produzida por um raio) de dois platôs de quatro
metros de altura construído com blocos imensos de pedra trazidos de jazida a 14
km de distância pensando até 120 toneladas, cada bloco. INACREDITÁVEL! O encaixe
dos blocos foram milimetricamente estudados e as pedras polidas. Há duas
composições na parede inferior: uma pata do puma e outra o corpo da lhama,
dentro da composição de blocos cuidadosamente colocados uns sobre os outros.
Fomos conhecer a Catedral de Cuzco. No geral ela
não difere de outras tantas, mas há um particular: o sincretismo religioso,
isto é, a convivência entre as duas culturas, Inca e espanhola. Os espanhóis
tiveram que ceder muito aos operários e artistas nativos. A pregação católica
colocou para os Incas que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Os
quadros pintados e fixados nas paredes têm cavalos com corpos de lhamas e um
Cristo de baixa estatura com as pernas cambotas e arqueadas, como as dos Incas.
No suporte dos braços dos tronos do coral central, os “índios” artistas
escandalizaram os espanhóis com as esculturas de mulheres com os seios desnudos
e o ventre proeminente (deusa Terra).
A provocação maior está no quadro que retrata a
Santa Ceia. Uma tela de quase dezesseis metros quadrados. À mesa não está um
cordeiro, mas sim um CUY (porquinho da índia, que era um animal comum no prato
dos Incas). “Quem foi Judas?”, perguntou o artista Inca ao espanhol responsável
pela obra da Catedral. “Judas, foi o traidor de Cristo por dinheiro.” A
representação de Judas lembra a todos os nativos o rosto de Pizarro,
colonizador espanhol. Sobre a mesa, ainda, da Santa Ceia, duas garrafas de
Chicha, suco de milho roxo, sem álcool, bebida típica cuzquenha. As imagens
esculpidas das virgens são todas com a barriga enorme: grávidas.
Ao voltar para o Brasil eu trouxe algumas palavras
que servem a uma síntese dessa experiência. Meu caminhar pelo diverso não tem a
busca apenas no estético, mas e, sobretudo, ao que ele me remete.
Os Incas nos deixaram um precioso legado. Sobre
altitude, terremotos e outros desastres ambientais, fortes chuvas, intenso
inverno, sol escaldante, configurações geológicas íngremes, vales de alto risco
de desprendimento de rochas, falta de animais para transporte de cargas, e um sem-número
de outros obstáculos, ainda assim, em que pese todas essas restrições eles
edificaram um patrimônio à humanidade deixando um tributo histórico de
inestimável valor.
Foram colonizados, mas não perderam sua dignidade.
Ouvi de um nativo: “Não tínhamos pólvora e nem cavalos, nos submetemos,
mas eles não tiraram de nós as nossas tradições.” Esse parece ser o
lema da essência da cultura Inca que é expressa numa palavra: KAIPAY que, em quéchua,
significa RESISTÊNCIA.
Em outras viagens estive em templos sagrados em
Taipei e Thaithong em Taiwan; diante da Sagrada Família de Gaudi em Barcelona;
visitei a cidade arrasada de Pompéia; emocionei-me diante da Acrópole em Atenas;
nas ruelas de Alhambra e Toledo na Espanha. Estive diante do Muro da Vergonha e
visitei o monumento dedicado aos judeus vítimas do holocausto em Berlim e, em
Dresden, a igreja reconstruída após cessarem os bombardeios na Alemanha. Percorri,
em Moscou, o Salão das Lágrimas do Memorial à Segunda Guerra Mundial. Atravessei
os lagos Andinos; vi a agonia do povo cubano no ocaso de um propósito; visitei
a vila feudal de Monserrat em Portugal; o Coliseu e as diversas maravilhas de
Roma. Deliciei-me com a irônica crítica de Miguelângelo na Capela Sistina.
Pisei na Praça Celestial em Pequim e nos pomares do Kremlin.
Fui privilegiado por tantas outras peregrinações,
no entanto, o todo daquela visita ao Peru diz respeito às minhas entranhas de
cidadão do universo latino-americano, historicamente violentado, vilipendiado,
humilhado pelos conquistadores ainda hoje com seus macabros, sedutores e
perversos simulacros. Já era e continuará sendo minha regra de conduta no
âmbito da microfísica do meu poder, no cotidiano, na família, no trabalho, na
vida.
Quero fazer parte daqueles que resistem.
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