sexta-feira, 28 de abril de 2023

LUGAR

 



Adoráveis meus amigos do Facebook. Não sei o que seria da minha vidinha sem eles. A demonstração está em alguns comentários com que me brindam. Os daqui não o fazem.

No último post, quando postei sobre jazigos e imortalidade, recebi:

- Agulhô querido, verve você tem de sobra. Seus textos são puro encanto e baita sensibilidade.

- Tenho certeza de que você vai direto para o céu...

- Meu voto é seu.

 

Lembrei-me de Aprendiz de Liberdade, um texto delicioso de um amigo adorável, de lá do FB também, o Chico Daudt (ele não me dá liberdade para tratá-lo assim).

Ele escreve no Capítulo A INSTITUIÇÃO que Machado de Assis adorava a esposa e, por força disso, teria prometido amá-la até na outra vida.

Ela morre primeiro do que ele. Há um poema de Machado: “Querida aos pés do leito derradeiro que descansas desta amarga lida venho e virei pobre querida trazer-te o coração de companheiro.”.

E assim ele fez. Ia todos os dias, às tardes, visitar o túmulo de sua esposa. Antes de falecer pediu encarecidamente que fosse enterrado junto a ela. Faleceu e assim foi feito. Anos mais tarde a Academia Brasileira de Letras, por decisão dos imortais, deliberou que o corpo de Machado fosse exumado e seus restos colocados no mausoléu da Academia.

Chico conclui seu capítulo: “Isto é uma instituição.”

Não falei publicamente com minha família, esta instituição, mas há um lugar onde eu gostaria de permanecer.

Inclusive vivo.



quarta-feira, 26 de abril de 2023

JOIAS

 




Eu tinha uns quinze ou dezesseis anos, trabalhei como secretário de um representante de joias fabricadas na Zona Franca de Manaus. Demorou um tempo para eu sacar porque ele pedia para eu carregar a sua pesada maleta contendo os produtos.

Embarcado havia peças contrabandeadas.

O escritório era numa saleta. Minha mesa ficava à frente da dele. Certa vez um vendedor de jazigos entrou e me ofereceu a coisa. Eu disse que era muito novo pra investir naquilo e o sujeito pediu para falar com o “capo”.

Foi colocado pra fora aos gritos: “Eu já falei com minha família que quando eu morrer quero ser jogado no lixo. Ninguém vai gastar nada com isto!”

As escapadas na rua não eram frequentes o que me permitia ficar no escritório, quase sempre sozinho. Enquanto estive ali, alimentei o meu sonho: escrever.

Escrevia em profusão, um monte. E acreditava que um dia poderia me tornar um escritor, destes de livros publicados e que tais.

Hoje fiquei sabendo pelo jornal que não há exatamente um salário pago pela Academia Brasileira de Letras para seus membros. O que há são jetons, remuneração por comparecimento às sessões da casa.

Para as reuniões de quinta-feira, que incluem o famoso chá dos imortais, o valor é R$ 1.100. Para as de terça, R$ 400. Era um pouco mais antes da pandemia.

Eles também ganham plano de saúde, pagamento do funeral e uma vaga no mausoléu da Academia Brasileira de Letras.

Caso eu chegue lá posso abrir mão do pagamento do funeral.



segunda-feira, 24 de abril de 2023

PEDRA



 

“O pássaro voa porque tem asas, não porque é livre.”

Esta frase está contemplada no texto do espetáculo FICÇÕES, do encenador Rodrigo Portella em diálogo com a obra SAPIENS de Yuval Harari.

Performance gigantesca de Vera Holtz secundada pelo músico Federico Puppi, que arrasa num solo de Bach.

Fui no risco. Eu não consegui comprar os ingressos e fomos pra fila da repescagem, uma hora e pouco antes do início da peça. A produção abriu para mais treze pessoas, eu e ela estávamos em 11º e 12º lugares.

Deu.

E valeu às pampas.

Harari afirma que o grande diferencial do homem em relação às outras espécies é a sua capacidade de inventar, de criar ficções, de imaginar coisas coletivamente e, com isso, tornar possível a cooperação de milhões de pessoas – o que envolve praticamente tudo ao nosso redor: o conceito de nação, leis, religiões, sistemas políticos, empresas etc.

Estamos usando nossa característica mais singular para construir ficções que nos proporcionem, coletivamente, uma vida melhor?

Estamos bem? Somos felizes?

Próximo ao encerramento a atriz dirige-se à plateia com algumas indagações e pede ao público que se manifeste concordando ou discordando permanecendo sentado ou ficando de pé.

Lembrei-me de certa vez que recebi mensagem em WhatsApp de Pretinha. Ela postou uma foto e uma frase como se dita por Liz, minha netinha, então com meses de idade: “Bom dia, vovô. Primeira vez que, quando acordo, levanto sozinha no berço.”

Em algum estágio da vida as criaturas ainda se desenvolvem.

Pois é.

O pássaro voa porque tem liberdade, não porque tem asas.

Isto é uma ficção.


 

terça-feira, 18 de abril de 2023

OLHARES



Sábado encontrei-me com uma amiga que há muito não via.
- Agulhô, então você está ficando no sítio?
- Pois é, sô...
- Não sei como você consegue, Agulhô... Por mim estaria em Paris, olhando pela janela a estação de Metrô...

Vivi, em diferentes oportunidades, arrebatadoras experiências na cidade luz.
Na Estação Trocadéro com projeções de cenas antológicas de filmes realizados ao longo da história do cinema. Eu estava lá quando se comemorava cem anos da sétima arte. Inesquecível.
Ou em museus: A origem do Mundo, o esplendor de Gustave Coubert, no d’Orsay. Claro, a Mona Lisa, no Louvre, com seus olhos fixados em mim. E, no Museu Picasso, a escultura Cabeça de Touro, do mestre que me fez lembrar das aulas preliminares sobre a História da Arte com o inesquecível Moacir Laterza.
Ou quando colocamos um cadeado na grade da Pont des Arts, a ponte dos namorados. O nosso, anos mais tarde, como o de milhares de outros apaixonados, foi retirado. O peso das juras de amor era tanto que havia o risco de ela desabar.
Sem falar em tantas e tantas outras vivências que jamais sairão de mim. Paris é mesmo um esplendor.
Só que, hoje bem cedo, quando caminhava pelas alamedas do condomínio do “sítio”, passando pela pequena ponte sobre um riachinho, senti que é aqui mesmo que eu quero estar.
O perfume doce que exala desperta-me para olhar os lírios do campo.
Doravante, o riachinho, para mim, terá o nome de Cena.

OBS: Se puder, amplie a imagem da foto. Imagine o perfume.


 

sábado, 1 de abril de 2023

AMANHÃ SER

 



 

Acordei sobressaltado na madrugada pelo som estridente vindo de meu celular, um Iphone versão 8.0. O número exposto na tela estilhaçada (vitimada por inúmeras quedas) soava como de instituições financeiras oferecendo serviços de seguro de vida.

Atendi.

Em dupla imagem surgiram Erlon Musk e Yuval Harari. Solícitos e cheios de desculpas pelo adiantado da hora foram logo, em português macarrônico (principalmente Musk), me pedindo algo que custei a compreender face à minha sonolência.

- Agulhor, queremos sua autorizassom para usar a foto em nossa carta. Suspendemos a divulgassom do texto para publicarrr com ela.

- Que foto, gente?

- A que você sacô ontem do varanda do quarto de sua morrada...

- Como sabem?

- O que não saber hoje, Agulhor?

- E pra que então eu autorizar?

- Vamos mandar email com formulário em três via. Você assinar com caneta azul e mandar a primeira via pelo correio..

- Não vai demorar?...

- Nom, nom... 

- Posso ficar com uma das vias?

- Sim, a via azul...

- Vou guardá-la em pasta suspensa do meu arquivo de aço. Posso?

- Ser muito bom, disse Harari colocando uma das mãos no rosto em pose de pensador.

Depois de alguns minutos ainda de uma conversa atravessada, pedi a eles um tempo para pensar e que eu iria consultar alguns membros da família.

- Nom demorar, Agulhôr. É muito orgente!

Pensei em, logo que amanhecesse, falar com Liz, Tin, Totô e Lelê. Fui desistindo, aos poucos, quando pensei na reação de meus netinhos:

- Tu tá me tirando, véio? (Tin)

- Ô Lozada, se liga, véio... (Totô)

- Vovô, me empresta o seu celular? Deixa a gente atualizar a sua playlist... (Liz e Lelê).

Resolvi não falar nada a eles. A foto soará falsa, na carta.

Meu coração não está tão radiante.


NOTA: Link de matéria sobre a carta: https://www.estadao.com.br/link/elon-musk-especialistas-executivos-carta-aberta-pausa-inteligencia-artificial-npre/