segunda-feira, 7 de março de 2022

VERDANTIRA II

 

 





“Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.”

Rubem Braga

 

Doravante acreditarei na Verdade. Doravante acreditarei na Verdade que contempla a Mentira. Todas elas.

A mulher do rei é honesta. A mulher do rei é vadia. Se ela for honesta, não será suficiente, o rei fará de um tudo para que ela pareça aos olhos de todos, ser honesta. Se ela for vadia, o rei fará de um tudo para que todos creiam que ela não é vadia.

Essa a Verdade.

Nos primórdios nos contamos a Verdade Original: Deus existe. E foram tantas e quantas as Mentiras que se sucederam para parecerem a todos que Deus existe que, quase, essa seja a Verdade. 

“Farei o homem à minha imagem e semelhança.” Nossa pretensão não tem limites. Construímos Deus ou a ideia dEle, à nossa imagem e semelhança. Como não seria viável concebê-lo Todo, elaboramos a estória e a História de um filho de mãe virgem, que nos salvaria.

Durante milênios nos matamos por isto, durante milênios involuímos por isto. 

Como conviver com a Verdade Original impregnada de uma Mentira Essencial?

Acreditando na Verdade. Acreditando na Mentira. Então Verdade e Mentira são o mesmo? Que importância tem, se tudo é. No fundo ninguém nunca saberá, sendo a rainha honesta, de seus sonhos ou pensamentos para lá de libidinosos. Sendo vadia, ninguém saberá de seus inúmeros esforços para um dia largar essa vida.

Deixemos de lado a filosofia de botequim, regada à cerveja barata (com ou sem pombos moídos e tira-gosto de carne fraca?), e vamos ao que interessa: a Verdade.

O povo é desonesto, logo seus representantes também o são. Os representantes foram seduzidos pelos Poder e se tornaram desonestos e, portanto, um péssimo exemplo aos seus representados.

Daí, deixar 100 contos na CNH quando flagrado pela PRF, pedir NF no valor superior para o Relatório de Viagem, não emitir recibos quando profissional liberal assemelha-se a pagar porcentual sobre contratos (públicos e privados) a título de propina, são Verdades.

Mentira! Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Verdade.

Caixa um, pode. Caixa dois pode, em termos. Vamos fazer uma lei disciplinando a orgia. Fixaremos tetos para as campanhas, e determinaremos um Fundo (bem fundo) de bilhões de reais que os contribuintes contribuirão contribuindo com sua passividade histórica. 

Verdade Original com Mentira Essencial.

“Na guerra, a primeira vítima é a Verdade!” A maioria de matérias que tenho lido, de diferentes tendências, citam esta máxima.

Não fosse a Mentira, enlouqueceríamos. Não fosse a Verdade, também.


NOTA: Releitura do post VERDANTIRA publicado aqui em 05 de abril de 2017.

 


sexta-feira, 4 de março de 2022

EVA

 

Há exatos cinquenta anos iniciei o cumprimento do dever cívico de prestação do serviço militar.

Em uma das paredes dos pavilhões do quartel em que servi uma sentença (sentido duplo, por favor) estampada em letras garrafais: “SE QUERES A PAZ, PREPARA-TE PARA A GUERRA.”

Li e ainda leio muito. Confesso que tudo que pude conhecer através deste gosto foi capaz de registrar tamanha síntese sobre a condição humana.

Segundo o instituto americano Alvin Tofler, 7% dos produtores de conhecimento, desde o início da história do Homem, estão mortos. O que vale dizer que 93% dos produtores de conhecimento estão vivos e produzindo conhecimento agora.

Cinquenta mil anos de “descobertas” extraordinárias em todos os campos civilizatórios, no entanto, nenhuma delas foi capaz, até aqui, de nos afastar da “besta” que ainda somos.

Estamos no mesmo “lugar” que sempre estivemos: da desrazão, da irracionalidade, da bestialidade.

A tragédia humana, essa condição, como sentença.

Quando tomei contato com a notícia que os russos capturaram a primeira grande cidade ucraniana, Kherson, lembrei-me do livro de Lionel Shriver: Precisamos falar sobre o Kevin.

A autora realiza uma espécie de genealogia do assassínio ao criar na ficção uma chacina similar a tantas provocadas por jovens em escolas americanas.

Aos 15 anos, o personagem Kevin mata onze pessoas, entre colegas no colégio e familiares. Enquanto ele cumpre pena, a mãe Eva amarga a monstruosidade do filho.

Um ano e oito meses depois, ela dá início a uma correspondência com o marido, único interlocutor capaz de entender a tragédia, apesar de ausente. Cada carta é uma ode e uma desconstrução do amor. Não sobra uma só emoção inaudita no relato da mulher de ascendência armênia.

Cada interstício do histórico familiar é flagrado: o casal se apaixona; ele quer filhos, ela não. Kevin é um menino entediado e cruel empenhado em aterrorizar babás e vizinhos. Eva tenta cumprir mecanicamente os ritos maternos, até que nasce uma filha realmente querida. A essa altura, as relações familiares já estão viciadas. Contudo, é à mãe que resta a tarefa de visitar o "sociopata inatingível" que ela gerou, numa casa de correção para menores. Orgulhoso da fama de bandido notório, ele não a recebe bem de início, mas ela insiste nos encontros quinzenais.

Por meio de Eva, Lionel Shriver quebra o silêncio que costuma se impor após esse tipo de drama e expõe o indizível sobre as frágeis nuances das relações entre pais e filhos num romance irretocável.

Penso que o nome da personagem é intencionalmente simbólico: EVA.

Pois é, precisamos falar sobre o Amor. Precisamos falar sobre o nosso legado.

Se é que ainda haverá tempo.

 

NOTA: Parte do texto "adaptei" de resenha do livro encontrada na web.