segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

TUDO

 


- Filho...

- Ei, mãe...

- Tô tão emocionada...

- Eu também.

- Gostei tanto de ter podido conversar contigo, meu filho.

- Eu também adorei, mãe. A gente podia continuar...

- Pode ser meu filho, mas agora é importante que você me diga: você está satisfeito com o que conquistou, meu filho?

- Recebi muito além do que poderia imaginar...

- Especialmente?

- As viagens que fiz pelo mundo afora, mãe. Estive em lugares inimagináveis, experimentei emoções profundas, me encantei com tanta coisa...

- Há muito a explorar aí, meu filho...

- Sem dúvida, mãe.

- Profissionalmente?

- Não posso me queixar, mãe. Ocupei posições importantes como executivo, ascendi na carreira, montei minha empresa, estive professor nas melhores escolas de negócios do país e hoje, ainda, estou conselheiro em várias empresas.

- Que bom, meu filho?

- Me fez lembrar a minha formatura...  Depois que fui buscar o diploma no palco e na volta vi você, só você, de pé me aplaudindo, mãe...

- Eu sempre quis muito que isto acontecesse, meu filho.

- Construí minha morada, foram mil dias de obra, cada centímetro com gosto, muito empenho, dedicação e zelo. Adoro meu canto, mãe. Invariavelmente, quando estou molhando os jardins me lembro de você.

- Eu amava as minhas rosas...

- Fiz poucos, mas valiosos amigos e nunca guardei qualquer mágoa de quem quer que seja...

- Eu sei disso, Lozinho.

- Fiz, com Vera, uma jornada de afeto que completa este ano 53 anos de convivência e que nos deu frutos maravilhosos, três filhos e quatro netos...

- Por enquanto, né?

- Acho que os meninos vão parar por aqui. Liz, Valentin, Antônio e Helena são dádivas, mãe.

- Família...

- Tudo mãe! O meu maior patrimônio.

- Amo você por isto, meu filho. Nosso tempo é curto, mas há algo ainda que preciso ouvir de você...

- Não precisa, mãe, por favor...

- É importante, Lozinho. Eu quero muito ter claro que você me perdoou...

- Já escrevi, mãe, sobre isto tantas vezes...

- É importante, meu filho...

- Não guardo nenhuma mágoa e nem ressentimento por você ter me dito, quando eu tinha onze para doze anos, depois de uma traquinagem minha, que deveria ter me matado no dia em que eu nasci...

- ...

- Mãe?... Mãe?...

- ...

- No bilhete que te entreguei, há exatos cinquenta anos, meu texto terminava assim: “Benditas sejas, mãe, por ter me dado a possibilidade de ver o mundo.”.

- ...

- Mãe...


FERRAMENTAS

 


FERRAMENTAS

 

- Lhôzinho?...

- Pai?!!!

- Sim, meu filho.

- Beleza, pai?

- Uma maravilha...

- Bom falar contigo...

- E o Cruzeiro, continua o melhor time do mundo?

- Disparado!

- Copeiro?

- Anda deixando um pouco pros outros...

- Senão fica sem graça, né?

- Pois é...

- Trabalhando muito, Lhôzinho?

- Hoje menos...

- Carro?

- Uma Mitsubishi Outlander...

- Diesel?

- Sim.

- Potente, né?

- E como! Pai...

- Fala.

- Sabe o que alguns dizem por aqui? Que a maior prova da existência de Deus é a criação da mulher e do azeite de oliva extra-virgem...

- Aqui, muitos, têm dúvida do azeite...

- Você não tem nenhuma pergunta pra me fazer, pai?

- Pergunta, meu filho? O desejo é feminino...

- Nós fizemos todas as ferramentas, né pai?

- O quê?

- Foi Simone que disse pra Sartre...

- Quem são? Simone e Sartre? Nunca ouvi falar...

- Deixa pra lá, pai.

- Esse negócio de ferramentas aí, tem a ver conosco mesmo...

- Então?

- Veja as guerras, meu filho. Nunca mulheres as promoveram...

- Nem me fale, pai.

- Por quê?

- Bora falar de outra coisa?

- Amanhã é seu aniversário, né? Sua mãe me falou...

- Setenta.

- Cê vai acabar me pegando...

- Você se foi com 94...

- Lá se vão quinze anos... Filho, então tá, felicidades procê, tá bom?

- Brigado, pai.

- De nada. Fica com Deus.

- Fique com Deus também, pai.


sábado, 26 de fevereiro de 2022

BURACO

 



- Mãe... Manhê... Mãe...


- Oi, menino, estou aqui... Algum problema, meu filho?


- Além de estar vivo?


- Kkkkk...


- Pois é, mãe. Acordar vivo é nosso maior problema...


- Não acho.


- Por que, aí é mais complicado?


- Aqui? Onde?


- Você me fez lembrar uma peça que assisti...


- Teatro, meu filho?


- Sim, baseada no conto O Imortal de Jorge Luis Borges...


- Argentino, como seu pai, né?


- História fantástica de um general do Império Romano que busca a Cidade dos Imortais cujo rio purifica da morte todo aquele que bebe de suas águas.


- Fantástica!


- Lá pelas tantas nas andanças erráticas, depois de banhar-se e saciar sua sede, sem saber que no tal rio, já tendo se tornado imortal, encontra um sujeito com quem adentra a cidade dos imortais.


- Xiii...


- Passeando nos interiores da cidade depara-se com um homem dentro de um buraco com o olhar perdido. O general, agora imortal, pergunta ao homem: por que você está dentro do buraco? O homem responde: não sei.


- Tendi...


- O general então pergunta: o senhor está há muito tempo? O homem responde: uns setenta anos...


- Um buraco, meu filho?


- Pois é, mãe.


- Não me venha com histórias fantásticas, continuo interessada em saber de você, da sua vida até aqui... Isto sim me interessa. E eu sei que você tem algo a me dizer desse seu buraco...


- Kkkkkk...


- Você ri? A resposta à pergunta que te fiz tem a ver com o rio desse general aí...


- Como assim, mãe?


- A pergunta é minha, Lozinho. A resposta é sua, meu filho.


- Dia 27?


- Dia 27!


- Não dá para ser aos oitenta?


- Não!


- Ano que vem?


- Fica com Deus, meu filho. Até dia 27...


- Até, mãe...

 


FOTO: Material promocional da peça O IMORTAL, baseada no conto de Jorge Luis Borges, com Gisele Fróes, que assisti em maio de 2019.


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

PONTOS

 


- Ei, meu filho... Tá chegando, hein?

- Nunca estive tão perto dos setenta...

- Tem a resposta, Lozinho?

- Mãe, não há resposta...

- Nananinanão, menino! Não me venha com esta conversa. Sem chance, meu filho! Coloque-se a pensar e me diga algo, você teve muito tempo pra isso...

- É que...

- Num tem quê, nem porquê e quequerequê...

- Você quer o ponto na ponta da língua de cor e salteado?

- Exatamente isso, meu filho. Você nunca teve dúvida disso.

- Você não mudou nada, né mãe?

- E você acha que eu me esqueci das suas manhas?

- Ô, mãe, pega leve...

- Eu pegar leve? Estivesse aí eu pegaria era o chicote...

- Nem me lembre...

- Que tempos, Lozinho...

- Eu era feliz e não sabia...

- Apanhando de sua mãe?

- Sabe o que mais eu odiava quando você me batia?

- Odiava?

- Era que você batia e mandava eu parar de chorar...

- Como mãe eu posso parar de chorar se você está me batendo? Lembro disso, filho.

- Inclua isto na resposta do dia 27...

- Como assim?

- O ódio, mãe...

- Não vou conseguir esperar até dia 27, meu filho...

- Não aprendi a odiar, mãe.

- Filho...

- Aquela lição, quase diária, me forçou a compreender.

- Você me perdoou, meu filho?

- Não se trata de perdoar, mãe, trata-se de compreender como já te falei.

- Meu filho, vou desligar, hoje foi muito pra mim...

- Pra mim também, mãe.

- Beijo, meu filho.

- Beijo, mãe.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

MORADAS

 





“As situações vão se tornando extremas e nós nem percebemos.”

Esta fala pertence à um dos entrevistados no CURTA/DOCUMENTÁRIO do brasileiro Pedro Kos, que vive há alguns anos radicado nos EUA, em cartaz na NETFLIX e candidato ao Oscar de 2022.

“Todo o mundo pensa que a população de sem-teto é viciada ou louca”, disse Kos, em entrevista. “Mas não poderia ser mais o oposto. A gente começou a ouvir histórias de gente de todas as origens, que por acaso teve uma emergência médica, ou sofreu uma violência. Basicamente vimos um espelho. Somos nós. Serviu para mostrar quem é essa sociedade. Não é culpa deles. É do sistema, que está marginalizando, empurrando as pessoas mais frágeis, mais vulneráveis, para fora.”

Já fiz referência em alguns textos à pesquisa que tive acesso há três ou quatro anos atrás. Universidades americanas e europeias, em consórcio, consultaram pessoas em 165 países sobre o que mais as aterroriza, do que têm medo.

Concluídos e tratados os dados dos respondentes, o relatório apontou como síntese, os três maiores temores mais frequentes na maioria dos países pesquisados:

. A potencialidade de uma guerra nuclear.

. A irreversibilidade da fome e

. A ausência de líderes capazes de enfrentar os problemas da atualidade.

Quando analisei a pesquisa confesso que não considerava tão crítica a primeira e mais aguda preocupação apontada. Hoje ela é mais do que evidente.

Quanto à terceira, basta olhar para a nossa situação.

Encontrei no filme do Pedro Kos, uma ilustração da gravidade do segundo item apontado na pesquisa. Observem: o campo de pesquisa não é a África nem a América do Sul, mas Los Angeles, Seatle e São Francisco.

 

Não quero que a minha mãe saiba disto.


Até breve.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

VÍNCULOS

 


- Meu filho...

- Sim, mãe.

- Seus irmãos?

- Eles estiveram lá em casa para almoçar comigo, pelo meu aniversário...

- Apressadinhos...

- A gente não pode estar reunindo muita gente, mãe...

- Sei...

- Só não vieram a Lúcia, em Brasília, e a Jacinta que está com uma gripo forte... E Marcos, também, naturalmente...

- Falaram nele?

- Várias vezes, mãe, lembramos dele sim.

- Sei...

- A senhora sabe?

- Estou te ouvindo, meu filho.

- Todos acima dos setenta anos, né?

- Passa rápido...

- Sim, e para alguns deles tem sido muito difícil, mãe...

- A saúde, meu filho...

- Pois é, Valderez com o mesmo quadro do papai, Lurdinha convalescendo de uma cirurgia, Jeanine com sérios problemas de locomoção e Mauro, internamos ele ontem para uma cirurgia cardíaca...

- Grácia e Getúlio?

- Estão bem.

- Foi bom o encontro?

- Muito bom, mãe. Precisamos fazer mais vezes, há muito o que conversarmos.

- Sim, filho, faça com que isto aconteça.

- Pode deixar, mãe. Todos queremos muito...

- Filho...

- Sim, mãe.

- Não deixe de ouvir as histórias que seus irmãos te contam, principalmente porque são mais velhos do que você...

- Sim, mãe. Vou estar mais atento.

- Eles têm muito a te dizer...

- Com toda certeza, mãe.

- Beijo, meu filho.

- Beijo, mãe.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

LAÇOS






Foi ao casamento deles que me referi no último diálogo com minha mãe.

Katia e Jocelone registraram, na sexta-feira, em cartório, a união deles de 22 anos.
Katia está conosco há 20 anos e Jocelone, há 18. Ela cuida da casa e ele dos jardins, pomares e áreas de lazer.
Antes de Jocelone esteve conosco durante dez anos o seu pai, Divino. Como quer o nome, foi o responsável pelo plantio de boa parte do que colore as nossas áreas externas.
Nós fomos convidados para padrinhos e os recebemos em nossa casa para recepção de seus parentes e amigos.
Nós não teríamos a graça de nossa morada não fossem essas duas queridas pessoas.
Somos eternamente gratos a ambos. Neste tempo de convivência vimos seus três filhos nascer e também um netinho.

Alguns anos atras escrevi um post sobre um episódio que envolveu a ambos e sua família. Está em FULIGEM

LIMITES (2)

 


- Dormiu bem, meu filho?

- Sempre durmo bem, mãe... E sonho muito...

- Até dormindo você sonha, né?

- Pega leve, mãe!

- Não, Lozinho, acho super legal você viver nas nuvens...

- Espirituosa hoje, hein, mãe?!!!

- Eu? Espirituosa, meu filho?

- Ainda te vejo inteira mãe, com aqueles cabelos ondulados e acinzentados e seus vestidos mais arrumadinhos...

- Você me achava bonita?

- Isso não é pergunta que uma mãe deva fazer para seu filho...

- E por que não?

- Se eu te responder que sempre te achei um bucho?

- Eu te dou uma coça!

- Então? Pra mim você é linda...

- Adoro esse seu jeito espirituoso, Lozinho.

- Se bem que eu ainda tenho umas carnes e ossos em volta, né mãe?

- Efême...

- O quê, mãe? Não ouvi.

- Deixa pra lá. Me diga uma coisa: com que você sonha?

- Não conto nem pro meu analista.

- Você vai à um analista?

- Vinte e quatro horas por dia, marcação direta.

- Vera pega muito no seu pé?

- Eventualmente em outras partes...

- Kkkkk... Você é muito bobo! Vamos lá, pra sua mãe você pode dizer...

- Quais partes?

- Não sô! Eu tô lá querendo saber de suas intimidades?

- Não sei como é aí, né mãe? Vai que você tenha esquecido como é a coisa...

- Kkkk, você não presta!

- Não conto pra ninguém os meus sonhos, mãe.

- Você tem receio de que alguém possa interpretá-los?

- Receio? Não, já que conviver faz parte esta troca, e há sim sonhos que podem e precisam ser trocados...

- De que sonhos você está falando, então?

- Daqueles que palavras não expressam...

- Você me deixou curiosa, não sei se consigo esperar até o dia 27, meu filho e...

- Mãe, você se importa se eu for agora? É que eu tenho um casamento e estão me esperando...

- Quero muito saber seus sonhos, filho...

- Dia 27, mãe.

- Vou te cobrar, meu filho...


PAIXÕES

 


- Meu filho!

- Fala, mãe!

- Deus que me livre, nossas conversas estão de amargar, você não acha?

- Mãe e filho podem falar de um tudo, né.

- Tudo bem, mas vamos açucarar esse papo senão prefiro ficar aqui ouvindo as lamentações de seu pai.

- Ele continua?

- Não conte pra ninguém, mas ele continua com o ciúme do padre até hoje...

- Mas ele tem razão pra...

- Meu filho, comporte-se! Respeite sua mãe!

- Tudo bem, mas que ali tinha coisa tinha...

- Uma paixão clandestina, quem é que não teve?

- Bora mudar de assunto?

- Num tô falando?

- Genérico, né mãe?

- Sei, viu? Você continua aquele menino de coração mole, né?

- Tive a quem puxar, né?

- Escrevendo, filho?

- Uns trem sem pé nem cabeça...

- Leva a sério a escrita, meu filho. Principalmente agora, mais vivido.

- Sempre levei escrever a minha atividade mais séria...

- Editou um de seus livros?

- Não.

- Então? Como pode ser séria.

- Penso que não há mais o que escrever que verdadeiramente valha a pena, mãe. O que era essencial já está escrito. O que se faz são derivações dos clássicos.

- Não diga uma coisa dessas, Lozinho. Derivações sobre novas leituras abrem horizontes desconhecidos.

- Pode ser...

- Você gostava tanto do Guimarães Rosa, há algo de mais original?

- “Pelejar por exato dá erro contra a gente. Não se queira, viver é muito perigoso.”

- Ele embrenhou pelos sertões da complexidade para chegar ao simples, meu filho. A simplicidade é o ápice.

- Que nem ele foi o Manoel de Barros...

- Cruzo com o pantaneiro aqui, às vezes, com seus caderninhos de anotações e seu toco de lápis...

- “A morte é indestrutível.”

- Beba deles, meu filho. Você não se saciará.

- Mãe?

- O que é meu filho?

- Eu adoro poder conversar contigo.

- Vamos continuar amanhã, então. Tenho mais o que fazer.

- Beijo, mãe.

- Beijo, Lozinho.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

EVIDÊNCIAS (2)

 


- Mãe?... Ô, mãe...

- Oi, meu filho. Estou aqui.

- Uai, eu consigo?

- O quê?

- Ligar com você?

- Por que não, meu filho?

- Achava que era só de você para comigo...

- Ora, menino, deixa de arte e continua o que estava dizendo...

- Não sei se saberia, é que há muito a dizer.

- Apenas diga, além da fome e das guerras...

- Pois é, mãe. Há uma pandemia...

- Uma tristeza, meu filho. Eu nasci sob a gripe espanhola, né? Os cientistas fizeram tanto para sanear e ainda assim...

- Não há limite à estupidez, mãe. Quando vamos, de fato, aprender?... Mãe? Mãe?...

- O que é meu, filho?

- Te fiz uma pergunta.

- A resposta já não está mais comigo.

- Como se não bastasse, há ainda o agravamento do clima.

- A banalidade do mal, meu filho. São séculos de exploração nefasta da natureza.

- As cercas naquela estrada para Santa Luzia...

- Na Beira Rio?

- Sim, mãe. O Rio das Velhas transbordou e depois que baixou deixou as cercas repletas de resíduos dependurados... Uma imagem que vale mais do que mil palavras.

- Com tantos sinais e ainda assim, não é, Lozinho?

- Tenho receio de te fazer uma pergunta...

- Faça.

- Como Ele vê isto?

- É mesmo preciso que Ele se manifeste? Mais?

- Acho que todos nós que estamos aqui gostaríamos de saber. Até quando, mãe?

- Filho, você está cansado. Trabalhou o dia inteiro. Vá se deitar, vai. Amanhã a gente continua conversando, pode ser?

- Claro, mãe. Boa noite.

- Dorme com Deus, meu filho.

- Você também, mãe. Dorme com Deus.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

MUDANÇAS


 

- E aí, meu filho?

- Tudo caminhando, mãe...

- Caminhando pra onde?

- Boa pergunta. Lembra do que falava a vovó Eulália, sua mãe?

- Pra lá nós vamos...

- Pois é. Você já está aí...

- Me fale como está o mundo, meu filho...

- Não me peça uma coisa dessas, mãe. Muito difícil de te explicar, afinal você se foi há três décadas e tudo está muito diferente...

- O que mudou?

- As mulheres disputaram no domingo o campeonato mundial interclubes...

- As mulheres estão jogando futebol profissional?

- Não só estão jogando como dirigindo clubes. No domingo, um time do Brasil e outro da Inglaterra disputaram o mundial. Ambos são dirigidos por mulheres.

- A mulher mudou.

- Totalmente. Em todos os campos...

- E o que mais, Lozinho?

- A comunicação entre as pessoas. Em algum momento ainda nesse trimestre, o mundo deve atingir a incrível marca de cinco bilhões de pessoas conectadas à Internet!

- Cinco bilhões ligadas na TV?

- Não mãe, não só na TV, em microcomputadores pessoais, telefone celular...

- Telefone Celular?!!!

- Não vou conseguir te explicar, mãe. Acho que será mais difícil te explicar o que virou o mundo daqui do que você me explicar como é o daí...

- Todo mundo se comunicando, meu filho? Que maravilha!

- Eu tenho quase cinco mil amigos na minha rede...

- Cinco mil? Amigos?

- Pois é, e olha que existem pessoas, como um português, jogador de futebol, que tem quatrocentos milhões de seguidores...

- Milhões? Seguidores?

- Mãe, vamos deixar pra lá. O que posso te dizer é que tudo que acontece hoje é sabido instantaneamente, e isto mudou a forma das pessoas se relacionarem com a realidade.

- E a pobreza, meu filho? Diminuiu?

- Não.

- Como não, meu filho, se as pessoas estão se comunicando aos milhões? Não puderam fazer nada para mudar o quadro?

- Não, mãe, infelizmente não.

- Guerras, meu filho?

- Várias...

- Então, filho, nada mudou?

- Mãe, é que...

 

A ligação caiu.



sábado, 12 de fevereiro de 2022

FRUTOS

 



 

- Filho... Melhor?

- Sim...

- Não quero falar sobre um assunto que não enriquece em nada a sua vida...

- Perdi muito fosfato com isso.

- Pois é. Você anda pensando sobre o que me interessa saber?

- Estou tomado pela sua pergunta...

- Viver valeu, meu filho?

- O que pode uma mãe esperar senão que o fruto de seu desejo tenha valido?

- Como estão os seus meninos?

- Mãe, a Vida me privilegiou com eles. Seus netos de mim são maravilhosos. Vladimir, um pai exemplar de Antônio e Helena...

- Totô e Lelê...

- Pena você não os ter conhecido...

- De alguma forma os sinto daqui. E Valesca, a Teteca?

- Pretinha? Adorável, mãe. Liz e Valentin são crianças amorosas e vivendo em Florianópolis estão sempre saudosas de nós.

- Você também passou um tempo fora de BH com os meninos, né?

- Sim.

- Bernardo?

- Ele está conosco.

- É o que mais se parece contigo, né?

- Muito. Sensibilidade à flor da pele...

- Vera?

- Vamos completar 53 anos juntos...

- Você jamais seria o que é não fosse ela...

- Mãe, você já começou a responder por mim a pergunta...

- E eu não sei? Suas escolhas determinam a trajetória.

- Filosofando, mãe?

- Tenho muita saudade dela, ela soube me escutar...

- Liga pra ela, mãe.

- Quem dera, meu filho, fosse possível.

  ...

- Mãe... Ô mãe...

- Te ligo depois. Fica com Deus...


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

PENÚRIAS

 


- Lozinho...

- Ei, mãe.

- Você anda falando com seus amigos sobre as nossas conversas?

- Sim.

- Não devia, filho. Será que entenderão?

- A maioria sim, eu acho. Eles sabem que eu falo não “de” você, mas “a partir de” você...

- Poesia, filho?

- Uai, primeira vez que você se refere a mim assim...

- Não é verdade.

- Que eu me lembre, sim.

- Você não se lembra daquele texto que escreveu num Dia das Mães para mim?

- Claro, mãe!

- Então. Eu mandei colocar em uma moldura e fixei lá na sala de visita.

- Sim.

- Todo mundo que chegava lá eu dizia que era você, meu filho, quem tinha escrito.

- Quando você se foi, guardei comigo. Tenho até hoje em casa.

- Leia agora para mim, meu filho.

- Eu não estou com ele aqui, mãe.

- Depois, então...

- Sim, prometo, mãe.

- Lozinho, você guarda mágoa de sua mãe?

- Alguma...

- Mesmo?!!!

- Você se lembra quando você comprou uma máquina manual de cortar cabelo?

- Tinha que fazer economia, meu filho, eram tempos difíceis...

- Lembra quando a senhora foi cortar o meu cabelo e do Getúlio lá no jardim de casa? Logo que começou a máquina agarrou e você puxou e arrancou um naco de pelos?

- Doeu, né?

- Maldade pura, não foi mãe?

- E você durante um tempão dramatizava a cena pra todo mundo...

- E você ria, ria tanto de ter que sair correndo para o banheiro com o xixi escorrendo pelas pernas.

- Meu filho, não me lembre disso...

- Mãe... Manhê...

- Vou desligar, vou ter que correr para o banheiro. Te ligo, meu filho, depois. Fica com Deus.