sexta-feira, 20 de agosto de 2021

INSTANTE

 


Eu estava executivo em uma empresa. Houve uma mudança de direção e logo nos primeiros atos da nova governança eu percebi que nossos princípios e valores não se coadunavam.

Ano e poucos meses depois de largo e profundo mal-estar, ocorreu de eu ir assistir a uma peça de teatro. O louco circo do desejo, acho que era esse o título.

Dois personagens: um engenheiro e uma prostituta. Ali pelo meio da peça, o texto se acalora, e um conflito brutal se estabelece. O engenheiro, em dado momento, brada: “Prostituta!”. A atriz esgrima com o braço direito, como se cortasse ao meio o oponente, e retruca gritando mais alto e pontuando cada sílaba: “En...ge...nhei...ro!”.

Imediatamente após a cena senti uma ‘fisgada’ no cérebro. Enquanto a plateia gargalhava eu me contorcia numa dor imensa. Minha esposa ao meu lado, ao perceber, me perguntou o que estava acontecendo. Eu não conseguia respondê-la. Sugeriu que nós saíssemos, mas eu me neguei e seguimos até o encerramento do espetáculo.

Naquela noite não consegui dormir. Na manhã seguinte fui de carro para o trabalho. No percurso de minha casa até a sede da empresa, um pequeno trecho de rodovia simples. Em dado momento, a cena fatídica volta à minha memória. Eu perco o controle do veículo e, para minha sorte, o carro encontra um ponto de fuga avança alguns metros e, sei lá se eu ou se pelas condições do terreno, para.

Saí cambaleando e me apoiei no capô do carro. Logo depois algumas pessoas, que passavam pelo local, vieram ao meu encontro. Ficaram comigo até terem seguro de que eu estava em condições de retomar a direção do veículo.

Entrei novamente no carro e, antes de dar partida no motor, recordei-me do que havia ocorrido minutos atras. Eu revisitava a cena da peça quando me ocorreu uma frase: “Prostituta é uma pessoa que, ao final do expediente, diz: um dia eu largo essa vida.” A dor sentida na noite anterior voltou mais aguda o que fez com que eu perdesse o controle do veículo. 

Liguei o carro e, ao contrário de tomar rumo em direção à empresa, fui para casa. Tomei um banho, deitei-me na cama e entrei em sono profundo. No dia seguinte pedi demissão.

Ontem comprei o livro da foto.

Elif Shafak é uma escritora turco-britânica com dezoito livros publicados, traduzida para 54 idiomas. Doutora em Ciência Política, ela já lecionou em universidades na Turquia, nos USA e no Reino Unido. Recebeu o título de Chevalier des Arts et des Lettres, é vice-presidente da Royal Society of Literature e membro do Conselho Global do Fórum Econômico Mundial.

No livro, Leila Tequila, uma prostituta, está morrendo em meio ao lixo nos subúrbios de Istambul. Durante os 10 minutos e 38 segundos que o cérebro leva para parar de funcionar ela vai relembrar a trajetória de sua vida.

Devo começar a lê-lo neste final de semana, mas já me serviu.

Estivesse 10 minutos e 38 segundos do fim, que balanço faria?


Até breve.


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