quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

EXPLÍCITO




“O Belo é o último anteparo diante do horror do Real.”

(Lacan)

 

Em outubro de 2013 visitei a Catedral de Cuzco, Peru. No geral ela não difere de outras tantas, mas há um particular: o sincretismo religioso, isto é, a convivência entre as duas culturas, Inca e espanhola. Os espanhóis tiveram que ceder muito aos operários e artistas nativos. A pregação católica colocou para os Incas que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Os quadros pintados e fixados nas paredes têm cavalos com corpos de lhamas e um Cristo de baixa estatura com as pernas cambotas e arqueadas, como os Incas. No suporte dos braços dos tronos do coral central, os “índios” artistas escandalizaram os espanhóis com as esculturas de mulheres com os seios desnudos e o ventre proeminente (deusa Terra). O Senhor dos Tremores colocado no altar tem hoje a coloração escura, quase negra, resultado das exposições externas em procissões onde o povo lança uma determinada flor cujo sumo altera a coloração da madeira, tornando-a semelhante à cor da pele dos nativos.

A provocação maior está no quadro que retrata a Santa Ceia. Uma tela de quase dezesseis metros quadrados. À mesa não está um cordeiro, mas sim um CUY (porquinho da índia, que era um animal comum no prato dos Incas). “Quem foi Judas?”, perguntou o artista ao espanhol responsável pela obra da Catedral. “Judas, foi o traidor de Cristo por dinheiro.” A representação de Judas lembra a todos os nativos o rosto de Pizarro, colonizador espanhol. Sobre a mesa, ainda, da Santa Ceia, duas garrafas de Chicha, suco de milho roxo, sem álcool, bebida típica cuzquenha. As imagens esculpidas das virgens são todas com a barriga enorme: grávidas.

Em 2015 estive em Madri e ali visitei o Museu de Reina Sofia. Fiquei emocionadíssimo diante da tela de Picasso: a Guernica. Lembrei-me da passagem em que Picasso fazia as suas primeiras exposições da tela (nela o gênio retrata a Guerra Civil Espanhola).  Ele estava em frente à sua obra, quando aproxima-se  um general, apontando para a tela e pergunta: "Foi o senhor que fez isto?" Picasso volta-se para o general, olha fixamente nos olhos do militar e diz: "Não, foi o senhor".

A Vida é Bela de Roberto Benigni, levou três Óscares em 1999. O filme se passa na Segunda Guerra Mundial onde Guido Orefice, um judeu dono de uma singela livraria judaica na Itália fascista, é capturado e mandado para um campo de concentração em Berlim juntamente com seu filho, o pequeno Giosué. Usando sua inteligência, espirituosidade e bom humor, Guido faz com que a criança acredite que ambos estão em um jogo, com o objetivo de protegê-lo do horror em que estão inseridos. 

Em entrevista à Folha de São Paulo no final de 2019, o filósofo Edgar Morin declarou: "Eu vivi —sou muito velho, como sabe— nos anos 1930 e 1940, um período da ascensão da guerra, vínhamos de uma época em que acreditávamos estar em paz, mas numa crise econômica enorme que provocou a chegada de Hitler ao poder por vias democráticas. Vivemos esse período como sonâmbulos, sem saber que íamos em direção ao desastre. Continuamos como sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, em condições diferentes.”

Tudo isto para dizer que, há meses, tenho postado aqui cenas de minha morada rural e passagens com meus netos. Entrementes publiquei um texto (poema?) que um amigo ator quis representar em vídeo.

Perdoe-me a extensão do texto. É que estou em dúvida do que expor: o Belo ou o Horror.


Até breve.




 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O dia®



Odeio capitalistas.

Odeio comunistas.

Odeio negros.

Odeio brancos.

Odeio chineses, cubanos, russos.

Odeio americanos, franceses, ingleses.

Odeio nordestinos, cariocas, paulistas.

Odeio queijo.

Odeio LGBTQs.

Odeio homens.

Odeio mulheres.

Odeio fulano, beltrano, ciclano.

Odeio Bolsonaro, Trump, Dória.

Odeio Lula, Boulos, Ciro.

Odeio café.

Odeio a Globo.

Odeio Caetano, Gil, Chico.

Odeio Anitta, Marília e Luan.

Odeio BBB.

Odeio bolacha.

Odeio Minas, Rio, Pernambuco.

Odeio aqui, ali e acolá.

Odeio tu, ele, nós, vós, eles.

Odeio a mim.

Odeio barata, sussuarana.

Odeio chuva, sol, vento.

Odeio areia, mar, sal.

Odeio verde.

Odeio hoje, ontem.

Odeio amanhã.

Odeio TV, Netflix, Sky.

Odeio ler.

Odeio baton, blush, rímel.

Odeio preservativos.

Odeio camiseta regata.

Odeio sapatos, bolsas, cuecas.

Odeio aviões, carros, trens.

Odeio barcos.

Odeio poesia.

Odeio silêncio.

Odeio música.

Odeio a vida.

Odeio a morte.

Odeio...




NOTA: O título recebeu contribuição do amigo Wellington de Assis. O ódio como marca registrada do cotidiano.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

PALMEIRAS

 


Há meses, pandêmicos, que tenho postado no FB imagens de minha morada e, a partir delas, tentando falar de minha melancolia radical.

A necessidade de criar um espaço possível da vida e da Vida Boa, no sentido de um espaço de tempo de permanência em que dele se retire um sentido, uma razão.

Além de buscar sentido, neste privilégio que é estar vivo, buscar algo que verdadeiramente sirva como um legado à posteridade. Dai a razão pela qual meus netos, atores coadjuvantes à minha morada, também aparecem aqui com frequência.

A maturidade aprofunda a compreensão aguda de minha insignificância, na dimensão de um “qualquer-outro” que se manifesta no contexto em que todos gritam e nenhum verdadeiramente escuta.

Além de ar, falta eco.

Nunca tudo foi tanto e nesse tanto sobretudo o mal. De tanto, banal.

A morte em vigor é vigorosa sobretudo porque solitária. Imenso lamento que resulta do impedimento daqueles que ficam sem poder estarem presentes no momento do desenlace daquele que se vai.

Elaboramos este hiato histórico dentro de uma perspectiva otimista. Que esse tempo se acabe, que tudo voltará a assemelhar-se ao que era. Complicado aceitar a ideia de que este seja o novo locus de vida no planeta.

Uma vida exposta ao mal incontrolável, que se agiganta em diversas manifestações.

O primeiro óbito por covid em BH (março de 2020) foi o de uma tia de minha esposa. Ela foi cremada e suas cinzas guardadas. Um de seus filhos, acompanhado pela família, passou conosco a noite de Natal.

Na manhã do dia 25, em ato solene, depositamos parte das cinzas de Marlene sobre jardins ao lado de uma majestosa palmeira que sombreia a entrada de nossa morada. 

Foi ela, Marlene, quem há mais de duas décadas nos presenteou com a mudinha que hoje ultrapassa a 15 metros de altura.


Até breve.