segunda-feira, 18 de maio de 2020

IDENTIDADE







A foto é de cena do filme CAFARNAUM em exibição na HBO MUNDI.

Recomendo àqueles ocupados com o que se passa e sensíveis às dores do mundo.  O cinema-verdade dando sua inestimável contribuição à consciência e a denúncia de quão cruel pode ser o elemento humano.

Embora se passe no Oriente, assemelha-se e em muito ao drama de milhões de brasileiros. Mais de três milhões de pessoas não conseguiram receber o Auxílio Emergencial por não terem certidão de nascimento.

Sabedor disso a cena final do filme me fez sentir um soco na boca do estômago.



sexta-feira, 15 de maio de 2020

AQUIVOCO (*)





Desentubado sigo.

A primeira palavra deste post está, na minha página, sublinhada pelo computador. Ela não existe nos conformes.

Nunca a palavra disse tanto e tão pouco. Nunca ela foi tão usada como nos tempos presentes. Seus alaridos misturam-se às tensões e dores, tanto os impressos quanto os visuais e auditivos.

A palavra domina. Os meios de veiculação são avassaladores e todos, com intenção deliberada de persuadir, seduzir, conquistar, mobilizar, dominar. Mesmo que tortas, fora dos conformes, gritam.

O ambiente é palavrado.

Um dia, qualquer, poderá advir um vírus que tire do Humano a palavra, se não for este que nos ronda e que, além da palavra, nos aquieta, confina e silencia, nos mata.

É urgente calar. É premente ouvir e ouvir-se.

Re(colher) aos intestinos, em colheradas.

Re(escrever) outras palavras em outras letras.

Re(visar) com outras íris, intensas.

Re(descobrir) o já dito, nos clássicos.

Refletir.

O que nos valeu chegar até aqui? O que de fato, falamos, com este falo? Que discurso constituiu a figura humana? Que palavra ainda resta dita?

Cálice. Cale-se.

Embebeder-se do silêncio e sorver o vazio. Esperar. Não haverá nada, ou o Nada. Pre(enchido). Só o homem sente. E fala.

Juro que não era o que eu queria.

Perdoe-me.

Volte.

Você é TUDO!

Eu te amo.

...

Parece que era isto.



Até breve.
(*) Aqui (voco): neste lugar eu falo. Equívoco: aqui me traio.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

TUBO





Estou há vinte e dois dias em UTI de um hospital particular em BH. Respiro com aparelhos. Estou de bruços, entubado. De quando em vez um paramédico alterna a posição de meu rosto sobre o travesseiro.

Agonizo. Não sinto nenhuma parte de meu corpo. Estou completamente sedado. Sem tato, olfato, visão, audição e paladar. Tenho poucas chances de sobreviver. Entrarei para as estatísticas e, quem sabe, faça parte do rol da fama no Jornal Nacional da Globo por alguns parcos segundos.

Espero que encontrem uma foto em que eu pareça melhor do que sou. Esteticamente.

- Apesar de sexa quase septagenário, era um gato!

- Que sorriso lindo!

- Essa barba ficou bem pra ele... Ele sempre quis se parecer intelectual...

- Esse olhar dele deve ter enfeitiçado muita gente...

- O que ele deveria estar pensando quando tirou esta foto?

- Com quem ele se parecia? Com aquele ator... Qual o nome dele mesmo?

- Eu acho que eu conhecia esse sujeito... Não é aquele que...

- Quando morreu não estava assim... Ele morreu mais velho do que está nesta foto.

- Era o que mais parecia com o pai.

- Vou recortar esta foto e guardar de lembrança. Eu gostava muito dele.

- Reparando melhor as duas pintinhas sobre os lábios ainda estavam lá.

- Vejam: os fios de cabelos nas orelhas e aqueles pontiagudos das sobrancelhas.

- Interessante como a pele, apesar da idade, ainda era lisa.

- Lembro-me quando ele tinha os cabelos nos ombros.

- Eu da época que ele deixou um bigode ridículo.

- Ele não quis raspar a cabeça quando foi calouro na faculdade. Letras nunca foi conquista nenhuma.

- Tem algo nesse olhar que me intriga.

- Quando entrou para Psicologia foi prá fazer uma faculdade?

- Eu fui aluno dele na... Sabe que esqueci.

- Nós fomos contemporâneos na...

- Ele tinha um blog, num tinha? Acho que li uma ou outra coisa dele...

- Nunca vou me esquecer do dia em que ele me disse um verso de um poema, que pena, não me lembro mais... Só sei que era muito legal.


Pois é, e eu continuo aqui. Desentubado e reduzido à minha insignificância.


Até breve.

terça-feira, 12 de maio de 2020

VERDANTIRAS



“Cada manhã, para ganhar meu pão / vou ao mercado onde se compram mentiras. / Cheio de esperança / incluo-me entre os vendedores”.
Bertold Brecht, “Hollywood”:

Estou novamente em crise. Como se eu tivesse mesmo saído da última. É que não dá para, em acompanhando minimamente o que se passa, não viver permanentemente em crise.

Saí novamente do Face book. Voltei pro blog.

Vou escrever menos o que amplificará minhas crises. Apoio-me em Millor: “as pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”.


CENA UM

Segundo estudos do Banco Mundial no mundo, temos hoje em torno de 821 milhões em situação de insegurança alimentar - mas há 135 milhões que realmente passam fome. São pessoas que estão não só na insegurança, mas não têm a cada dia o que comer.

O estudo estima que em torno de 130 milhões vão se juntar a esses 135 milhões, formando 265 milhões. Vai dobrar o número de pessoas com fome crônica no mundo devido ao vírus e à crise econômica que vem junto. 

No Brasil, que é o oitavo país mais desigual do mundo (estamos à frente de seis países africanos e da Guatemala), a estimativa é de que cerca de 5,4 milhões de pessoas – o tamanho de um país como a Noruega – passem para a extrema pobreza por conta da pandemia. O total chegaria a quase 14,7 milhões de pessoas até o fim de 2020, ou cerca de 7% da população.


CENA DOIS

Em 24 de abril, os onze ministros do STF votaram contra uma lei da cidade de Novo Gama sobre a chamada “ideologia de gênero”. A expressão é usada por grupos conservadores e religiosos contrários ao debate sobre diversidade sexual e identidade de gênero.

Declaração do Presidente da República hoje: “Sabemos que, por 11 a zero, o STF derrubou uma lei municipal que proibia ideologia de gênero. Já pedi ontem para o major Jorge Oliveira, nosso Ministro da Secretaria Geral, para que providenciasse uma lei, um projeto federal. E devemos apresentar hoje esse projeto com urgência constitucional”.


CENA TRÊS

O vídeo fala por si.





Até breve.

OBS > Escrevi um post criando este neologismo: CLIQUE AQUI

sexta-feira, 8 de maio de 2020

ADUBO






Por favor, vocês que estão aí deste lado. Pegue na terceira prateleira o recipiente de número JLAJ – 81.91.103.107.104. Tragam-no aqui e o coloquem sobre a bancada. Dentro daquele armário há folhas de cartolina branca, peguem, por favor, e coloquem uma delas aberta também sobre a bancada.

Fechem, por favor, todas as janelas e suas venezianas. Não convém que nenhum vento possa alvoroçar o que está dentro do recipiente.

Lavem suas mãos, depois as enxugue bem. Passe bastante talco e vistam as luvas que encontrarão naquela pequena gaveta da escrivaninha. Encontrarão também máscaras esterilizadas, por favor, as coloquem.

Agora se concentrem, por favor, no que vai se seguir.

Abram delicadamente o recipiente colocando-o sobre a folha de cartolina para que, se caso no abrir, alguma parte do conteúdo não possa se perder. Agora virem o recipiente para baixo e deixem que o conteúdo caía sobre a folha de cartolina. Batam levemente com as mãos sobre o fundo do recipiente e verifiquem que nada, nenhuma partícula por mais ínfima que seja do conteúdo ficou ali.

Deixem o conteúdo, por entre 23 e 27 minutos, do jeito que saiu do recipiente e caiu sobre a folha da cartolina. Passado este tempo comecem levemente, com apenas a mão direita e usando pinças que estão sobre a bancada, espalhar o conteúdo de tal sorte que cada partícula possa ficar absolutamente isolada, sem contato com nenhuma outra. Se necessário usem lupas. Ali naquele armário encontrarão algumas.

Sem pressa, por favor. Não há necessidade de construírem nenhum desenho ou forma específica, apenas cuidem para que cada partícula permaneça isolada. Tirem as luvas ao terminarem e as coloquem sobre a bancada fora da cartolina onde depositaram o conteúdo do recipiente com os eventuais fragmentos que se prenderam viradas para cima. Não tentem sacudir as luvas, ou mesmo, com a mão esquerda, tirar o conteúdo do recipiente que se prendeu lançando-o sobre a cartolina.

Lavem as mãos, joguem fora no cesto de lixo, as luvas e as máscaras esterilizadas. Deixem, por favor, o recinto e voltem aqui dentro de 30 minutos. Eu ficarei zelando para que ninguém bula e examinando, daqui, cada partícula deste novo formato sobre a cartolina branca.

Ao retornarem, caso me encontrem dormindo, não me acordem, esperem que eu mesmo desperte. Sobre a bancada encontrarão o relatório de análise de cada partícula, por favor, não o leiam em hipótese alguma. Coloquem as páginas escritas dentro do balde de alumínio que está naquele armário e as incinere. Peguem as cinzas das páginas do relatório e as misture com o conteúdo do recipiente distribuído sobre a folha de cartolina. Não antes de esperarem que esfriem as cinzas do balde.

Coloquem tudo novamente dentro do recipiente sem deixar perder nem uma partícula sequer. Voltem-no para a prateleira com o código virado para frente.

Quando meus entes queridos vierem buscá-lo digam que o meu desejo é que tudo se esvaeça sobre o solo de minha morada, terra onde experienciei inúmeras e calorosas alvoradas.

Que assim seja.

É que somente há coisa de duzentos anos, os humanos deixaram de refletir sobre a finitude.

Até breve.

NOTA: Hoje o blog está completando nove anos. Ufa! Quase mil e duzentos posts depois eu escolhi um deles que já havia editado para comemorar a Vida. Em tempos de riscos pandêmicos quero deixar um desejo quando de minha passagem. Não deveria interpretar, mas vou fazê-lo: o texto propõe que minhas cinzas sejam misturadas com as páginas que escrevi e lançadas em nossa casa de Santa Luzia. Muito obrigado a todos que de uma forma ou de outra me incentivaram a dar uma modesta contribuição às letras.