domingo, 24 de novembro de 2019

SUTILEZA




Não sou dos piores, mas sou Homem – e, acho, devo escrever sim com H maiúsculo.

E não me coloco aqui reduzido à condição de gênero, mas Homem como produto e reprodutor de uma Cultura, Homem como patrono de um modelo de estar e transformar o mundo.

Homem, que como disse Simone Beauvoir: “Vocês fizeram todas as peças.”.

Esta frase dirigida por ela à Sartre tem iluminado em mim a reflexão do lugar deste Homem como principal protagonista da História, e que protagonismo.

A VIDA INVISÍVEL, filme do diretor cearense Karim Aïnouz é um soco na boca do estômago deste Homem.

Retrata finamente a condição das mulheres no Brasil nas décadas de 1940 e 1950 com os corpos reservados à propriedade dos Homens e destinados à procriação. Duas cenas são reveladoras.

A primeira, quando uma das personagens comunica ao pai e ao marido que acabara de receber a notícia de que havia passado no concurso para o Conservatório de Música. O marido, de forma irônica e grosseiramente: “Então agora eu quem vou ter que olhar o menino, cuidar da casa, fazer comida?”. E recebe o apoio veemente do sogro: “Minha filha, seu marido tem razão. Você não pode mesmo ir para o Conservatório.”.

A outra, quando a mesma personagem, tem um surto, atendida por um médico que diz ao marido: “Não se preocupe, ela estará pronta para parir novamente.”.

A cada salto no tempo da trama, percebemos as seguidas restrições às oportunidades de escolhas das personagens como a música, os amores descartados pela posição de mãe solteira, o cerceamento de opinião devido à condição de mulher, mãe, filha, esposa.

Aïnouz não precisa gritar a indignação contra o patriarcado: basta acompanhar a trajetória de décadas entre as personagens centrais, tão próximas e tão distantes, imaginando uma para a outra um destino melhor do que ambas realmente tiveram.

Recentemente citei Eduardo Galeano e sua tese sobre o arco íris terrestre, dentro de uma perspectiva da construção da História. A mulher teria sido, para ele, um dos matizes que foram impedidos de se manifestarem durante séculos e, portanto, invisíveis.

A História Humana forjada a ferro, fogo e lágrimas pelo Homem e Branco me ocorre como uma das questões mais relevantes a serem enfrentadas pelo contemporâneo. É verdade que a Mulher a partir dos anos 60 do século passado, por força de inúmeros movimentos libertários alcançou espaço de visibilidade.

No entanto, há amplos espaços de obscuridade guardados e defendidos por este Homem. Eu mesmo, em minha mais recôndita intimidade, às vezes me percebo, em pensamento, palavras e obras como um fiel representante da ignomínia.

A partir de mim mesmo sei que não será fácil depurar o sangue que corre nas veias daqueles que se julgam primazes. Há muito recalque, instinto primitivo, ferocidade componente neste Homem.

De novo o cinema, dando visibilidade às nossas mais dramáticas mazelas.

Ave, Aïnouz!


Até breve.

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