segunda-feira, 8 de julho de 2019

CANTINHO




O que vai embora junto com João Gilberto, este sim um grandíssimo idiota?GENE

Esta besta me fez amargar, certa vez no Palácio das Artes em BH para assistir a seu showzinho desafinado, a cinquenta minutos de espera depois de ter soado por três vezes a campainha indicando o início do espetáculo.

Lembro-me bem quando ele entrou no palco. Sem pedir desculpas à plateia ruminou alguns grunhidos para dizer por que atrasara. Acho que alegou o bater de asas de um mosquito que alteraria o som de seus compassos.

Inesquecível foi quando eu saí do teatro. Flanava ainda nos acordes, difícil saber se ecoados das cordas do pinho ou das vocais da garganta de quem o tocava. Aquilo é uma monstruosidade, pensava.

Zuza Homem de Melo, historiador, me alcança: “o canto intimista, a letra sintética, despojada, o emprego de acordes alterados e, sobretudo, um extraordinário jogo rítmico entre o violão, a bateria e a voz do cantor.”.

João cortou o tempo. Bossou diferente, um novo que desconcerta, incomoda, transforma. Desses sujeitos vadios, transgressores que nos tiram de um lugar sabido, acostumado, conveniente.

Gilberto, estranho ser, encontrou no tamborim um som peculiar que lhe percorria o ar dos pulmões e lançava sobre o silêncio um recado aos corações, até dos desafinados absurdos como o meu.

Há tempos JG vivia arruinado, adoecido e sozinho em uma casa emprestada no Rio de Janeiro. A tristeza que envolveu este artista em seus últimos anos parecia não ter fim, como reza a música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, os outros dois pais da Bossa Nova.

Posso imaginar as razões.

Outro dia assistindo o canal Arte1 deparei com um documentário sobre Saudade, belíssimo por sinal. Lá pelas tantas entra em cena um arquiteto entrevistado e diz que esse negócio de dar valor ao passado não está com nada, o que importa é o que está por vir.

Até hoje engulo em seco essa declaração.

O que vai embora com João Gilberto?

Um muito de mim com certeza. Um tempo de renovação e esperança aguda, uma juventude transviada, um acorde. Uma bossa.

Vai junto com João um canto doce, moderado, fundo. Só melhor que o silêncio, como disse Caetano.

Nos deixa vazio um palco de soberba próprio apenas para a genialidade de imensos poucos, desses que nos tornaram ainda que resistíssemos tanto, seres humanos um pouco menos endurecidos e toscos.

Esse texto me faz verter lágrimas, tão escassas hoje por estas razões. Juro que não creio mais ser possível no porvir algo que venha a compor um tempo de Tom, Vinicius e João. O mundo não tem e não terá ouvidos para um doce balanço a caminho da delicadeza, mais afinado e menos ruidoso.

Voltou a terra hoje um de seus melhores sumos.

Chega de saudade.


Até breve.

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