“Se um dia puder,
nem escrevo um livro.”
Adélia Prado, in Círculo.
“Porque tudo o que invento já foi dito
nos dois livros que li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.”
Adélia Prado, in A invenção de um modo
Adélia
Prado em entrevista ao Roda Viva, gravado em 2014, relatou o deserto pelo que
passou ao longo de sete anos. Entre uma obra e outra, amargou esse tempo de
tempestades de vazio criativo.
Eu,
por mim, me sinto como.
Escrevi
aqui praticamente quase todos os dias. Nada de memorável quanto Adélia, naturalmente.
Mas verve.
Tinha
dia de eu verter página num piscar de neurônios ou de fibras de carótidas e
pericárdios, assim como de um repente. A coisa fluía como se em mim já
estivesse posta, era só pari-la. A quase totalidade, parto normal. Sem dor e
com sofreguidão de alívio.
Estou
ao encalço de Adélia, no real, aguardando que ela restabeleça sua melhor saúde
e possa me receber em Divinópolis. Sua terra, sua rede ferroviária, a partir do
quê desenhou o universal.
Levo
a ela uma proposta de, junto comigo, elaborarmos um encontro com um grupo de
executivos de uma empresa cliente. A ideia é de que, diante de tanta
complexidade e turbulência no ambiente, como resultar o simples?
No
fundo, e isso é um segredo irrevelável, eu quero mais de Adélia.
Para
onde foram nossos saberes? Em que encruzilhada nos perdemos? O que será da Arte
estetizada por um mundo sem graça e sem graça. Sem alegria e sem religares. Sem
mistérios, tudo desvelado, tudo explícito, tudo sem poesis.
Onde
andam as pessoas e seus quereres mais fundos de se perguntarem? O que fizeram
do que restou do humano, mais do que humano, em nós?
Afinal,
o que nos resta. Se há que nos resta.
Uma
Obra Prima.
Assisti
na TV, Netflix, ao argentino Minha Obra Prima, filme bão. A coisa gira em torno
de um pintor em processo de decadência comercial. Seus quadros não encontram
consumidores.
Em
que pese o deserto, ele é procurado por um jovem que quer ser seu discípulo.
Ele reluta em atender o pedido do jovem, mas acaba cedendo. Combina o valor das
horas de passagem e diz que pode recebê-lo no dia seguinte.
Quando
o rapaz chega eufórico, o pintor apresenta a ele um quarto da casa em profunda
desordem. Repleto de quinquilharias de toda sorte, lançadas a esmo em profusão.
-
Quero que você observe com atenção a tudo que compõe este quarto. E que não
saia daqui antes de duas horas de absoluta concentração.
Três
horas depois o jovem diz que já havia concluído a tarefa e pergunta ao pintor o
que deveria fazer em seguida.
- Volte
amanhã.
No
dia seguinte o pintor pede ao jovem que retire tudo o que está no quarto e
transfira para outro aposento da casa. O jovem, estupefato e ainda que
contrariado, desincumbe-se da tarefa depois de alguns dias de árduo trabalho.
-
Agora quero que você volte com tudo de novo para o quarto anterior e coloque
cada objeto exatamente como e onde estava antes.
Uma
semana depois o rapaz aliviado convida o pintor para ir ao quarto e ver o que
havia feito.
-
Meu jovem, você jamais será um artista. Você voltou com tudo da mesma forma em
que estava.
Pois
é.
Até
breve.
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