quarta-feira, 5 de junho de 2019

PRIMA





“Se um dia puder,
nem escrevo um livro.”
Adélia Prado, in Círculo.

“Porque tudo o que invento já foi dito
nos dois livros que li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.”
Adélia Prado, in A invenção de um modo

Adélia Prado em entrevista ao Roda Viva, gravado em 2014, relatou o deserto pelo que passou ao longo de sete anos. Entre uma obra e outra, amargou esse tempo de tempestades de vazio criativo.

Eu, por mim, me sinto como.

Escrevi aqui praticamente quase todos os dias. Nada de memorável quanto Adélia, naturalmente. Mas verve.

Tinha dia de eu verter página num piscar de neurônios ou de fibras de carótidas e pericárdios, assim como de um repente. A coisa fluía como se em mim já estivesse posta, era só pari-la. A quase totalidade, parto normal. Sem dor e com sofreguidão de alívio.

Estou ao encalço de Adélia, no real, aguardando que ela restabeleça sua melhor saúde e possa me receber em Divinópolis. Sua terra, sua rede ferroviária, a partir do quê desenhou o universal.

Levo a ela uma proposta de, junto comigo, elaborarmos um encontro com um grupo de executivos de uma empresa cliente. A ideia é de que, diante de tanta complexidade e turbulência no ambiente, como resultar o simples?

No fundo, e isso é um segredo irrevelável, eu quero mais de Adélia.

Para onde foram nossos saberes? Em que encruzilhada nos perdemos? O que será da Arte estetizada por um mundo sem graça e sem graça. Sem alegria e sem religares. Sem mistérios, tudo desvelado, tudo explícito, tudo sem poesis.

Onde andam as pessoas e seus quereres mais fundos de se perguntarem? O que fizeram do que restou do humano, mais do que humano, em nós?

Afinal, o que nos resta. Se há que nos resta.

Uma Obra Prima.

Assisti na TV, Netflix, ao argentino Minha Obra Prima, filme bão. A coisa gira em torno de um pintor em processo de decadência comercial. Seus quadros não encontram consumidores.

Em que pese o deserto, ele é procurado por um jovem que quer ser seu discípulo. Ele reluta em atender o pedido do jovem, mas acaba cedendo. Combina o valor das horas de passagem e diz que pode recebê-lo no dia seguinte.

Quando o rapaz chega eufórico, o pintor apresenta a ele um quarto da casa em profunda desordem. Repleto de quinquilharias de toda sorte, lançadas a esmo em profusão.

- Quero que você observe com atenção a tudo que compõe este quarto. E que não saia daqui antes de duas horas de absoluta concentração.

Três horas depois o jovem diz que já havia concluído a tarefa e pergunta ao pintor o que deveria fazer em seguida.

- Volte amanhã.

No dia seguinte o pintor pede ao jovem que retire tudo o que está no quarto e transfira para outro aposento da casa. O jovem, estupefato e ainda que contrariado, desincumbe-se da tarefa depois de alguns dias de árduo trabalho.

- Agora quero que você volte com tudo de novo para o quarto anterior e coloque cada objeto exatamente como e onde estava antes.

Uma semana depois o rapaz aliviado convida o pintor para ir ao quarto e ver o que havia feito.

- Meu jovem, você jamais será um artista. Você voltou com tudo da mesma forma em que estava.

Pois é.



Até breve.

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