quarta-feira, 7 de novembro de 2018

CORTE





Corria o ano de 1962. Em um bar, Pedrinho, então com 26 anos, dedilhava as cordas do pinho atendendo aos pedidos dos convivas. Bebericava pouco e cantava muito.

Alguns acompanhavam, fazendo compasso no tampo das mesas, nos copos, garrafas. Outros expressavam gestos de performance, imitavam cantores da época, simulavam as dores trazidas das letras das canções lacrimais.

Era final de tarde de um sábado.

Em dado momento um grito calou pinho, vozes, ritmos e congelou performances.

- Caramba! Minha mulher vai me matar!

Entre todos surgiu aos berros um dos convivas:

- Eu tenho um casamento prá ir, estou atrasado... Tinha que ter feito o cabelo, a barba... Eu sou o padrinho.

- Não vá! – Ecoou em uníssono vindo dos quatro cantos enquanto, simultaneamente, voltava de onde havia parado os acordes, o canto, gestos e performances.

- Ela vai me matar! Onde vou achar um barbeiro aberto agora, santo deus!

Por um momento ouviu-se somente o canto de alguns convivas, o violão cessou suas cordas e o principal puxador do ritmo foi quem disse:

- Se quiser, faço barba, cabelo e bigode... Tenho umas ferramentas aqui.

- Porra, Pedrinho, cê corta cabelo?

- Também.

Alguém assumiu o pinho, o som continuou solto, a turma reacendeu e Pedrinho foi com o ressuscitado para o fundo do bar. Improvisou um avental com jornais e fez o serviço completo.

- Ficou mais lindo que o noivo! – Gritou de lá alguém.

- Pedrinho, muito obrigado, cara! Sabe, vou te dar um salão. Você é um artista!

- Que nada, toco tudo de ouvido...

Passaram três ou quatro meses do ocorrido. Todos já haviam se esquecido da promessa, menos do medo (hoje pavor) das mulheres. A roda comia solta, ali pelas tantas, e todos assistiram o ressuscitado adentrar o estabelecimento com um molho de chaves na mão.

- Pedrinho, aqui está!

Break na cena boêmia, estupefação geral, Pedrinho atônito:

- Qualé, bicho?

- São as chaves do salão que montei para você...

- Vá gozar com a cara de outro...

- É sério, cara! Tá aqui o endereço...

Pedrinho, hoje com 82 anos, ainda toca violão de ouvido. Qualquer ritmo ele extrai do pinho com primor. A Vida lhe fez um artista. Ele visita diariamente suas seis lojas, todas próprias, em que instalou salões. Unisex. Polisex. Sedlex.

Há cinquenta e seis anos atrás ele abria incrédulo o primeiro cubículo. Seu primeiro e fiel cliente por anos a fio foi o ressuscitado.

Sempre achei que o medo às mulheres resulta, além de que o cotidiano é sempre mais rico do que a História.


Até breve.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

DUCE



Luiz Fernando Veríssimo escreveu em sua crônica de ontem no Estadão: “Eu sou um marginal, na medida em que crônicas são anotações e comentários na margem das notícias, uma espécie de pichação literária, e eu faço crônicas.”.

Eu então, nem marginal sou. Sou para lá de marginal, já que posto meus textos sem a menor responsabilidade. Saí até do facebook, porque aquilo está gerando influência social. Quero insistir na minha insignificância e ganhar com isso o direito à minha solidão.

Só que eu não me emendo contrariando quem tem me pedido para que eu escreva textos leves e lindos.

Eu já tinha resolvido parar e não dizer nada, mas o olhar me assalta. Ontem mesmo, assisti na Sky ao filme: Estou de volta. O enunciado classifica o filme como COMÉDIA. Trata da hipótese e absurda do retorno de Benito Mussolini a Roma, agora nos tempos atuais.

Acho que sei por que não consegui rir em nenhum momento. Vejo muita semelhança entre nós e os italianos, em nossa formação. O filme explicita essa proximidade e eu quero crer que o programador da operadora não fez sem intenção.

“Não fui eu quem inventou o fascismo, eu só o tirei do inconsciente dos italianos.”

Nos meus guardados intelectuais mais íntimos nutro um desejo de que a vida brasileira melhore a partir de 2019. Há sinais importantes nesta direção: tanto no plano das propostas econômicas quanto naquelas de caráter da limpeza das instituições sempre à luz dos preceitos constitucionais.

Por outro lado, a frase de Mussolini acima, estampada impressa no filme, me congelou. Não pelo próprio e nem pela nossa suposta/exagerada versão mais do que tupiniquim. Não temo pelos ditadores, mas pelos seus fanáticos seguidores. Quem cria e sustenta um, são milhões. Daí meu receio.

O que dita o nosso inconsciente coletivo? Que ódio recalcado encerra?

Lembrei-me agora de que no dia da votação do segundo turno levei Tin, um de meus netos, comigo. Ele estava esbanjando o uniforme que trouxe para ele de Portugal da seleção daquele país. Eu estava com uma bermuda também de cor vermelha. Sabem que temi?

Não sei o que se passa na rede, suponho que ela não esteja pacificada. Ouço pessoas próximas, leio matérias em jornais, vejo muito pouco um ou outro noticiário na TV. Escuto e observo.

No filme, Mussolini retorna à tumba, tendo desistido de recompor o seu ideário face aos italianos que encontra.

Não quero crer que estejamos entrando em algo mais grave do que nossas escolhas.

Aqui não há nada de comédia, antes pelo contrário.



Até breve.


sábado, 3 de novembro de 2018

ENTREGA





Alguém me disse que aprecia meus textos, quando abordam temas relacionados à Política. Vê neles alguma coerência, consistência e raiva.

A teoria não esconde a indignação.

Por ser muito cara à mim, essa pessoa sugeriu que eu “refrescasse”. Tirasse, por outros textos, essa angústia, amargura por estar diante da realidade.

Estou passando o fim de semana prolongado no sítio.

“Pise na grama, ouça os passarinhos, pule na piscina (eu adoro água). Aproveite a vida e os privilégios que ela te legou. Quando for a noite escreva um texto leve, lindo.”

Pois é.

Quem escreve se revela e, no meu caso, me desvelo.

Construí olhares vitimados por meus vieses, meus dIssabores e, sobretudo, pela minha solidão intelectual estreita.

E deixei também impresso em telas meus encantamentos, meus agradecimentos, amores, minhas paixões.

Um texto lindo e leve deve ser endereçado à alguém, e assim o faço:

“Pise na grama, ouça os passarinhos, pule na piscina...”



Até breve.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

FINADOS





Todo ato humano é, em essência, um ato político.

Mesmo aqueles desesperados, desassistidos, miseráveis, marginalizados, excluídos, têm por sua existência e natureza um espaço na cena da polis.

Mesmo inconscientes, descerebrados, ignorantes, párias, selvagens são membros da polis e, portanto, atores políticos.

O que se faz é fundir Política com Poder. Políticos com Instituições. Isto serve a destruir, na origem, a liberdade do sujeito de ser protagonista na constituição da polis.

Chega-se ao ponto de, dada à perversão semântica, constituir-se ofensa moral quando se nomeia alguém como “político”.

A tragédia social é intencionalmente segregatícia. Separam-se os quem têm poder daqueles que escolhem e se sujeitam ao poder. Política e Povo, como se fossem “entidades” separadas.

Penso que aqui reside o maior “mal” da cena: o discurso.

O discurso é intencionalmente sectário e ditatorial. Alguém exercerá sobre outrem o Poder discricionário. Mesmo aqueles que têm como papel o estabelecimento das leis, mesmo aqueles que têm como papel, fazê-las cumprir.

O homem é uma besta, portanto, precisa ser domado. Premissa civilizatória que sustenta a prática do “bem”, mesmo que leve à fogueira, milhões de atores refratários. Anexo: Inquisições, Holocausto, ditaduras de todos os matizes, e assemelhados.

Civilizar passa a significar lobotomizar o sujeito e coloca-lo à mercê dos ditames daqueles que, independentemente dos meios, alçam o Poder ainda que supostamente legal.

Estamos no ápice do declínio da civilização. Mesmo sem lupa, uma olhadela em torno, estampa a barbárie consentida. A História sempre nos apontou o equívoco.

A Inteligência não tem sido capaz de construir o Humano no Homem. O discurso configurado como ideário de propósito (ideologias) nasce fragmentado, partido.

Rompe toda a possibilidade de harmonização de direitos e deveres, produção e distribuição de riquezas implicando em subvida e vida digna.

A lógica de todo discurso, mesmo o libertário, é perversa porque assim como o conservador, mantém na essência, o libelo da dominação.

O que quer este meu discurso? Absolutamente nada, apenas referendar os mortos.

O único lugar que nos lembra de sermos iguais.


Até breve.