quarta-feira, 25 de julho de 2018

ESCOLHAS





A Vida convida ao caos. A Paz não nega a possibilidade da Vida. Assim é.

Pois.

Os anos, todos, não serão jamais suficientes para entendê-la toda, nem vivê-lo todo. A Paz, por decorrência, idem.

Daí os momentos especiais que a Vida nos coloca. Diante do caos. Sobretudo da própria existência e a procura de seu significado. Já nos bastaria a pergunta essencial: quem sou? Para não nos angustiarmos ainda com: para quê sou?

Quando escolhessem o lugar para construir sua morada buscariam exatamente a resposta a tais perguntas e a tais propósitos. Um lugar distante privilegiado pelo gosto de um vale (carregado de ambiguidade de sentido), das matas exuberantes com suas árvores mais do que centenárias, frondosas, verdes e tais.

Ainda que muros altos divisassem o terreno manteriam portões abertos para que viesse de lá o caos e que dele, em se hospedando experimentassem a soberana paz.

Os pinheiros todos seriam dispostos um ao lado do outro com intervalo de um metro, como se buscasse uma ordem ao caminho, diante de todo caos.

Viver terá sempre a ver com caminhos e escolhas.

O casarão abrigaria sobretudo livros, de todas as paixões para que nenhuma delas pudesse ser desperdiçada. Todo o saber e toda poesia vestiriam as inúmeras prateleiras, estantes, mesas, móveis, poltronas, redes, cadeiras de balanço dispostas a esmo e revoltas pela sua própria necessidade.

A Vida convida à interioridade para compreender a exterioridade.

Sob o mais que belo arvoredo se colocaria uma mesa redonda, sem quinas, aberta ao todo, para que ali tramassem e fizessem o pré-preparo de doces com frutas colhidas de um pomar nativo e singelo preservado ao longo da parte esquerda do casarão.

De cada trama um gosto e de cada fruta uma poesia ou prosa vária. Para que se drenassem o espírito e a vã filosofia. Viver se resumiria a tramar e a adoçar.

Doce, sempre doce, não para negar o amargo, não. Mas para servir-lhe de antítese e, no contraponto, produzir uma síntese sobre a qual valeria a pena de estar aqui e agora.

Em que pese toda a dor que circunda e toda a impotência mais do que real, se buscaria um viver que tivesse valia, legado, sentido.

Letras emergiriam da experiência e tudo da produção serviria de alguma forma para que se atenuasse todo o amargo, toda dor, todo o caos.

Até que nada mais pudesse ser feito.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

BOLA II




Fui acometido entre os oito e os doze anos de idade (de maneira mais intensa, eu acho) por algo que me consumia sem saciar, que me tirou de todos os outros olhares e só queria que eu vivesse para ela.

Todos os meus pés descalços que andaram por ruas, também fugiram para gramados batidos de terra em terrenos baldios, campinhos de araques, ruas e ladeiras de pedra Pé de Moleque. Deixaram marcas indeléveis de dores e dores pelos tampos dos dedos ensanguentados cobertos de terra. Como herança ficaram unhas encravadas (dos dedões) porque não tiveram nunca oportunidade de crescer.

No dia seguinte eu estava lá à caça dela para correr-lhe atrás. Em que pesem as circunstâncias da época especialmente de minha zelosa mãe que me tentava impedir de todas as formas que eu fosse dragado pela paixão.

Lembro apenas que entre os instrumentos de repressão havia o de me colocar vestidos de minhas irmãs para que eu não evadisse. Perdi aí a grande oportunidade de ser mais doce.

Desvencilhei-me de tudo e caí apaixonado, intensa e desesperadamente. Passava horas nas ruas, procurando minhas turmas para jogar todas as peladas que pudesse haver no bairro.

Jogava bem, sei por que observava ao redor outros meninos comentarem ou mesmo adultos e sei deles porque o pé esquerdo na bola, um olho no gol e outro na iminente aproximação de minha querida mãe. Ela nunca conseguiu me pegar.

Ao final das tardes, início de noite, exausto ia embora por força de senha que minhas irmãs me levavam: “Mamãe vai te matar!”.

Ontem recebi, via WhatsApp, foto do Tim (um de meus netinhos) fazendo teste de pontaria com uma bola a ser arremessada em buraco da parede de uma casa em Carmo da Mata, cidade natal de seu pai, meu genro de quem recebi essa preciosidade.

Claudio disse, na mensagem, que se recordou de sua infância e que os buracos da parede variam de diâmetro o que aumenta ou reduz o grau de dificuldade para acertá-los.

Poder viver esses legados me inunda o coração de alegria.

Tim, são muitos os buracos dessa Vida.   

terça-feira, 17 de julho de 2018

FORO




Teve uma vez que eu fui. Acho que foi uma única. Não teve outra. Se bem que, lembrando melhor, foram mais de uma sim. Duas ou três, talvez. Na verdade, mesmo que tivessem ocorrido mais de tantas vezes, foi como se tivesse sido única.

Estou certo que sempre chovia, uma chuva fina e constante, daquelas que encharcam a terra sem destruir plantações. Isso contribuía, e muito, para o contexto. Havia certa tristeza no ar, a cor cinza assim cabia emoldurando a cena.

Outra circunstância presente é de que sempre aconteceu à noite. Depois das vinte e duas e quarenta, nunca antes. O mais interessante é que ninguém, nem eu mesmo, combinávamos o horário e sabem-se lá cargas d’água porque, sempre aconteceu depois daquele horário, nunca antes.

Eu nunca cheguei primeiro, por isto acho sempre que foi uma única vez. Porque também, os outros que chegavam depois de mim, sempre entravam na mesma ordem. Todos os quinze, primeiro o Herasmo e, por último, Antenor.

Deles todos, de muito, conhecia o nome. Nada mais, tudo o mais fui supondo. Idade, descendência, estado civil, opção sexual, formação, estes tipos de caracteres. Assim, nunca perguntei nada a nenhum deles. Ia ouvindo um ao outro e fui decorando os nomes. Só.

Duas mulheres participavam também. Uma senhora de uns oitenta e poucos anos e outra, jovem, de uns trinta e poucos. Zenaide e Karla. Ambas descendentes de estrangeiros. Não soube distinguir a origem. Mas cada uma a sua maneira tinha traços diferentes dos nossos.

A coisa durava exatos 185 minutos, nunca mais e nunca menos. Fosse o que acontecesse durante, era batata. Do início até terminar podia ver no relógio digital com frações de segundos. Na pinta.

Nunca soube por que.

Ao terminar todos saiam sem se despedir e nenhum acompanhado. Todos sozinhos, alguns de cabeça baixa. Na rua, idem. Ninguém se comunicava. E sempre os destinos de cada um pareciam o mesmo. Alguns seguiam a rua defronte, outros desciam a ladeira e outros, subiam em direção à praça.

Uma das mulheres, a mais jovem, subia a ladeira. A mais velha seguia a rua defronte. Melhor, pois era uma rua plana, de calçadas largas e bem iluminada. A única pessoa do grupo que encontrava já no meio do quarteirão um homem grisalho que vinha busca-la. Suponho ser seu filho, ou um irmão mais novo.

Eu descia a ladeira, pegava a primeira rua à esquerda, andava uns seiscentos e trinta metros e depois virava à direita, na Rua Ramos Delgado, onde ficava o Bar do Quincas, aberto até as duas da madrugada.

Quincas era um filhote de português adestrado pela senhora sua esposa, homem bom, bigodes espessos e sempre com seu mesmo chinelo de dedos com as tiras emendadas com arames finos. Uma tristeza.

- Fala aí, Quincas!

- O de sempre, gajo?

- Serve que é o mesmo...

- Tá vindo de onde?

Nunca disse.