Tenho sido privilegiado
pela Vida. Inúmeros momentos de inesgotável prazer e alegria.
Ontem vivi um desses,
intenso, inenarrável, inesquecível.
Assisti ontem Grande
Sertão: Veredas, no Palácio das Artes, digno deste nome por abrigar o
espetáculo Obra prima de Guimarães Rosa e agora da artista multifacetada,
cineasta, diretora de teatro e ópera, exposições, ganhadora de vários prêmios,
a extraordinária Bia Lessa.
“Algumas pessoas vinham
dizendo pra eu fazer teatro, e eu nunca senti que deixei de fazê-lo. Um dia eu
fui à feira e vi mendigos pegando comida. Tenho um amigo que fala uma coisa que
eu amo: a gente não pode viver vendo, porque se a gente vê tudo, a gente não dá
conta de viver, mas tem dias que a gente enxerga, e quando enxergamos, a gente
cai pra trás. Nesse dia eu enxerguei. Quando cheguei em casa, sentei no sofá e
olhei para o ‘Grande Sertão: Veredas’. Aí eu decidi enfrentar esse negócio. Não
pelo desejo de fazer, mas pelo desejo de enfrentar algo. Porque eu acho que
temos que enfrentar coisas diariamente”, comentou Bia, sobre a decisão de
voltar ao fazer teatral.
“É importante que a gente
olhe para a vida, não só para os acontecimentos históricos, mas para onde
estamos. Tudo que nós fomos criando ao longo da nossa existência. O mundo está
vivendo contradições profundas. Montar um ‘Grande Sertão’ pra mim é enfrentar
essas questões necessárias de se falar, que é a construção de um novo ser
humano, uma outra humanidade”, comenta sobre a importância e urgência de se
montar a peça.
“Guimarães é inadaptável.
Isso foi desesperador pra mim, mas acabou se tornando um trunfo. Trabalhei
diretamente com o texto do livro”, explica. A diretora assumiu o desafio de dialogar
com uma das obras mais complexas da língua portuguesa.
“Nossa forma de estar
presente e do ser o que a gente pensa, a gente faz através do próprio
espetáculo. O livro é um livro formador, então não é à toa que a gente resolveu
fazer nesse momento. Tem uma coisa muito bonita do Guimarães Rosa que ele
coloca o homem no contexto, fazendo parte da natureza como um todo. Então os
animais e os homens têm a mesma importância. Esse espetáculo fala um pouco
desse respeito ao outro e à diferença. É isso que a gente gosta e tem orgulho
de defender. Nesse momento que o mundo está tão reacionário, andando tão pra
trás, é fundamental que a gente dê um passo à frente. Por isso é importante que
a gente monte ‘Grande Sertão: Veredas’”, concluiu Bia.
Em um trabalho tão
artesanal, marca da diretora (que passou mais de 600 horas com o elenco, em
ensaios diários por 92 dias), e de grande esforço físico (a preparação corporal
foi um dos aspectos indissociáveis do trabalho de direção, com aulas de corpo
diariamente durante os quatro meses de ensaio), a tecnologia foi fundamental
para guiar o público em tantas veredas.
"O trabalho exigiu
muito fisicamente e emocionalmente. Foram oito horas de ensaio por dia. Isso
porque o próprio livro em si é uma fonte inesgotável de soluções e de
questionamentos. Sempre vamos ter perguntas pra fazer e vamos correndo atrás
das respostas. Pra mim está sendo transformador enquanto artista, mexe com meus
conceitos, com a minha forma de enxergar a arte. É mais interessante o processo
do que o resultado em si. O resultado é parte desse processo e ele não termina,
ele é contínuo, ele vai continuar reverberando na gente”, comentou Leonardo
Miggiorin, um dos atores em cena.
Não há representação, no sentido literal, mas
um jogo cênico que exige do espectador. Não basta só olhar, é preciso querer
ver – e é essa brincadeira entre olhar e ver que Bia busca em Guimarães. Para
criar o formato híbrido entre espetáculo e instalação, ela recorreu a vários
elementos cênicos. Os personagens aparecem em uma gaiola, potencializando o
exercício do espectador de se posicionar para ver o que ocorre.
“ A gaiola dificulta a visualização. Não deixa livre o olho do espectador, ele deve procurar e ver. Guimarães dizia: ‘Mire e veja’”, adianta a diretora.
A paisagem sonora é outro elemento fundamental da instalação. Há quatro camadas de sonoridades: o ruído que amplia o espaço, o som vindo de lugares amplos; a música autoral composta por Egberto Gismonti; as cantorias e rezas ligadas ao inconsciente coletivo; e, finalmente, o timbre das vozes do elenco. “A instalação invade a plateia. Não tem o lá e o cá”, resume Bia Lessa.
“ A gaiola dificulta a visualização. Não deixa livre o olho do espectador, ele deve procurar e ver. Guimarães dizia: ‘Mire e veja’”, adianta a diretora.
A paisagem sonora é outro elemento fundamental da instalação. Há quatro camadas de sonoridades: o ruído que amplia o espaço, o som vindo de lugares amplos; a música autoral composta por Egberto Gismonti; as cantorias e rezas ligadas ao inconsciente coletivo; e, finalmente, o timbre das vozes do elenco. “A instalação invade a plateia. Não tem o lá e o cá”, resume Bia Lessa.
“Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as
coisas de rasa importância.” Bia conhece profundamente o Sertão de Guimarães
Rosa. Ela convida a plateia a um mergulho fundo na epopeia narrada pelo jagunço
Riobaldo, que atravessa o sertão para combater seu maior inimigo, Hermógenes,
fazer um pacto com o diabo e descobrir seu amor por Diadorim. O espetáculo
contempla duas horas e vinte minutos ininterruptos de encenação, com o elenco
em cena permanentemente, em que o público experimenta a dissolução das
fronteiras entre início e fim do espetáculo; entre teatro, cinema e artes
plásticas; entre literatura e encenação.
“O sertão está dentro da gente”. “Nosso
caminho foi realizar um trabalho onde homens, animais e vegetais estabelecessem
uma relação de diálogo sem supremacia entre eles. Não estamos exatamente no
sertão, mas em um espaço “ecológico” e metafísico onde tudo cabe. Um espaço,
uma imagem, que nos possibilita a experiência proposta pelo romance, sem
obviamente realizar o romance tal como é – fidelidade absoluta (todas as
palavras ditas são de Guimarães Rosa), mas liberdade infinita, visto que é
apenas uma das leituras possíveis da riquíssima obra de Guimarães. Escolhemos
não utilizar grandes efeitos ou recursos, a não ser a valorização do universo
sonoro dos espaços propostos pelo romance, apenas os próprios atores”, pontua a
diretora.
“O sertão está em toda parte” A grande
estrutura tubular concebida lembra um claustro, uma gaiola. Instalada no palco
do Grande Teatro do Palácio das Artes, também é, ao mesmo tempo, cenário de
violentas batalhas e de reflexões profundas. Como instalação são 250 bonecos de
feltro com tamanho humano, compõem uma imagem permanente: a cena da morte de
Diadorim como um presépio. A trilha sonora completa a atmosfera do Grande
Sertão: Veredas, composta por três camadas: os ruídos e sons ambientes, a
música composta por Egberto Gismonti e a trilha sonora que representa nossa
memória emotiva, com músicas que fazem parte de nosso imaginário. Os figurinos
são uma leitura do sertão, sem regionalizá-lo – são personagens do mundo.
A gongórica e letal escrita de Rosa ganha o
corpo dos atores. Empresta-lhes ação e fala. E a trama romanesca se desenvolve
diabolicamente, com movimentos desordenados, afetuosos e anárquicos, qual
máquina escultural.
Grande Sertão: Veredas se expande como
espetáculo teatral que libera – qual alegoria rigorosa da nossa
contemporaneidade − o modo como os movimentos desenvolvimentistas sem
preocupação social e humana não recobrem a nação como um todo. Pelo contrário.
O esforço positivo da modernização é localizado, centrado e privilegia. Nas
margens, cria enclaves de párias – bairros miseráveis, favelas, prisões,
manicômios, etc. − onde violentas forças antagônicas se defrontam e se afirmam
pela ferocidade da sobrevivência a qualquer custo, acirrando a irascibilidade
do controle e do mando.
Viver é perigoso. Extraordinário em Guimarães
Rosa é que, no mais profundo da vida humana miserável e autodestrutiva, na
morte, há lugar para o afeto e o amor. Ao compasso de espera, Riobaldo e
Diadorim dançam novos e felizes tempos. Piscam a alegria de viver, como
vagalumes que a mata libera à noite.
Até breve.
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