domingo, 24 de junho de 2018

SerTão




Tenho sido privilegiado pela Vida. Inúmeros momentos de inesgotável prazer e alegria.
Ontem vivi um desses, intenso, inenarrável, inesquecível.
Assisti ontem Grande Sertão: Veredas, no Palácio das Artes, digno deste nome por abrigar o espetáculo Obra prima de Guimarães Rosa e agora da artista multifacetada, cineasta, diretora de teatro e ópera, exposições, ganhadora de vários prêmios, a extraordinária Bia Lessa.
“Algumas pessoas vinham dizendo pra eu fazer teatro, e eu nunca senti que deixei de fazê-lo. Um dia eu fui à feira e vi mendigos pegando comida. Tenho um amigo que fala uma coisa que eu amo: a gente não pode viver vendo, porque se a gente vê tudo, a gente não dá conta de viver, mas tem dias que a gente enxerga, e quando enxergamos, a gente cai pra trás. Nesse dia eu enxerguei. Quando cheguei em casa, sentei no sofá e olhei para o ‘Grande Sertão: Veredas’. Aí eu decidi enfrentar esse negócio. Não pelo desejo de fazer, mas pelo desejo de enfrentar algo. Porque eu acho que temos que enfrentar coisas diariamente”, comentou Bia, sobre a decisão de voltar ao fazer teatral.
“É importante que a gente olhe para a vida, não só para os acontecimentos históricos, mas para onde estamos. Tudo que nós fomos criando ao longo da nossa existência. O mundo está vivendo contradições profundas. Montar um ‘Grande Sertão’ pra mim é enfrentar essas questões necessárias de se falar, que é a construção de um novo ser humano, uma outra humanidade”, comenta sobre a importância e urgência de se montar a peça.
“Guimarães é inadaptável. Isso foi desesperador pra mim, mas acabou se tornando um trunfo. Trabalhei diretamente com o texto do livro”, explica. A diretora assumiu o desafio de dialogar com uma das obras mais complexas da língua portuguesa.
“Nossa forma de estar presente e do ser o que a gente pensa, a gente faz através do próprio espetáculo. O livro é um livro formador, então não é à toa que a gente resolveu fazer nesse momento. Tem uma coisa muito bonita do Guimarães Rosa que ele coloca o homem no contexto, fazendo parte da natureza como um todo. Então os animais e os homens têm a mesma importância. Esse espetáculo fala um pouco desse respeito ao outro e à diferença. É isso que a gente gosta e tem orgulho de defender. Nesse momento que o mundo está tão reacionário, andando tão pra trás, é fundamental que a gente dê um passo à frente. Por isso é importante que a gente monte ‘Grande Sertão: Veredas’”, concluiu Bia.
Em um trabalho tão artesanal, marca da diretora (que passou mais de 600 horas com o elenco, em ensaios diários por 92 dias), e de grande esforço físico (a preparação corporal foi um dos aspectos indissociáveis do trabalho de direção, com aulas de corpo diariamente durante os quatro meses de ensaio), a tecnologia foi fundamental para guiar o público em tantas veredas.
"O trabalho exigiu muito fisicamente e emocionalmente. Foram oito horas de ensaio por dia. Isso porque o próprio livro em si é uma fonte inesgotável de soluções e de questionamentos. Sempre vamos ter perguntas pra fazer e vamos correndo atrás das respostas. Pra mim está sendo transformador enquanto artista, mexe com meus conceitos, com a minha forma de enxergar a arte. É mais interessante o processo do que o resultado em si. O resultado é parte desse processo e ele não termina, ele é contínuo, ele vai continuar reverberando na gente”, comentou Leonardo Miggiorin, um dos atores em cena.

Não há representação, no sentido literal, mas um jogo cênico que exige do espectador. Não basta só olhar, é preciso querer ver – e é essa brincadeira entre olhar e ver que Bia busca em Guimarães. Para criar o formato híbrido entre espetáculo e instalação, ela recorreu a vários elementos cênicos. Os personagens aparecem em uma gaiola, potencializando o exercício do espectador de se posicionar para ver o que ocorre.

“ A gaiola dificulta a visualização. Não deixa livre o olho do espectador, ele deve procurar e ver. Guimarães dizia: ‘Mire e veja’”, adianta a diretora.

A paisagem sonora é outro elemento fundamental da instalação. Há quatro camadas de sonoridades: o ruído que amplia o espaço, o som vindo de lugares amplos; a música autoral composta por Egberto Gismonti; as cantorias e rezas ligadas ao inconsciente coletivo; e, finalmente, o timbre das vozes do elenco. “A instalação invade a plateia. Não tem o lá e o cá”, resume Bia Lessa.

“Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.” Bia conhece profundamente o Sertão de Guimarães Rosa. Ela convida a plateia a um mergulho fundo na epopeia narrada pelo jagunço Riobaldo, que atravessa o sertão para combater seu maior inimigo, Hermógenes, fazer um pacto com o diabo e descobrir seu amor por Diadorim. O espetáculo contempla duas horas e vinte minutos ininterruptos de encenação, com o elenco em cena permanentemente, em que o público experimenta a dissolução das fronteiras entre início e fim do espetáculo; entre teatro, cinema e artes plásticas; entre literatura e encenação.

“O sertão está dentro da gente”. “Nosso caminho foi realizar um trabalho onde homens, animais e vegetais estabelecessem uma relação de diálogo sem supremacia entre eles. Não estamos exatamente no sertão, mas em um espaço “ecológico” e metafísico onde tudo cabe. Um espaço, uma imagem, que nos possibilita a experiência proposta pelo romance, sem obviamente realizar o romance tal como é – fidelidade absoluta (todas as palavras ditas são de Guimarães Rosa), mas liberdade infinita, visto que é apenas uma das leituras possíveis da riquíssima obra de Guimarães. Escolhemos não utilizar grandes efeitos ou recursos, a não ser a valorização do universo sonoro dos espaços propostos pelo romance, apenas os próprios atores”, pontua a diretora.

“O sertão está em toda parte” A grande estrutura tubular concebida lembra um claustro, uma gaiola. Instalada no palco do Grande Teatro do Palácio das Artes, também é, ao mesmo tempo, cenário de violentas batalhas e de reflexões profundas. Como instalação são 250 bonecos de feltro com tamanho humano, compõem uma imagem permanente: a cena da morte de Diadorim como um presépio. A trilha sonora completa a atmosfera do Grande Sertão: Veredas, composta por três camadas: os ruídos e sons ambientes, a música composta por Egberto Gismonti e a trilha sonora que representa nossa memória emotiva, com músicas que fazem parte de nosso imaginário. Os figurinos são uma leitura do sertão, sem regionalizá-lo – são personagens do mundo.

A gongórica e letal escrita de Rosa ganha o corpo dos atores. Empresta-lhes ação e fala. E a trama romanesca se desenvolve diabolicamente, com movimentos desordenados, afetuosos e anárquicos, qual máquina escultural.

Grande Sertão: Veredas se expande como espetáculo teatral que libera – qual alegoria rigorosa da nossa contemporaneidade − o modo como os movimentos desenvolvimentistas sem preocupação social e humana não recobrem a nação como um todo. Pelo contrário. O esforço positivo da modernização é localizado, centrado e privilegia. Nas margens, cria enclaves de párias – bairros miseráveis, favelas, prisões, manicômios, etc. − onde violentas forças antagônicas se defrontam e se afirmam pela ferocidade da sobrevivência a qualquer custo, acirrando a irascibilidade do controle e do mando.

Viver é perigoso. Extraordinário em Guimarães Rosa é que, no mais profundo da vida humana miserável e autodestrutiva, na morte, há lugar para o afeto e o amor. Ao compasso de espera, Riobaldo e Diadorim dançam novos e felizes tempos. Piscam a alegria de viver, como vagalumes que a mata libera à noite. 

Até breve.