O que afinal está acontecendo?
Surpreendi-me com a classificação
como COMÉDIA do filme O Cidadão Ilustre.
Ontem fui assistir à peça O
Escândalo de Philippe Dussaert e, para minha maior surpresa, ela também foi
“enquadrada” como COMÉDIA tendo inclusive ganho o troféu de melhor espetáculo no
gênero em cartaz na cidade do Rio de Janeiro em 2016.
Marcos Caruso, que encena o
monólogo, ao receber o prêmio falou em seu discurso de agradecimento: “O
humor salvou um texto que no Brasil poderia ter dado completamente errado”.
O que pode ser considerado arte
contemporânea? Qual a dimensão valorativa atribuída àquilo que conquista o
direito de ser assim nomeado? O que é o artista? Como se pode defini-lo,
reconhecê-lo? Qual a diferença entre um quadro feito por um chimpanzé com
coordenação motora suficiente para jogar tintas em uma tela, e outro, feito por
qualquer humano, figurativo ou abstrato?
O solo “O Escândalo Phillipe
Dussaert”, do dramaturgo francês Jacques Mougenot que na França é interpretado
pelo autor, com mais de 600 apresentações em temporada há dez anos, tem como “graça”
as curiosas observações do dramaturgo sobre o lugar e o valor da arte
contemporânea.
No Brasil, Caruso estabelece
vínculo com o espectador a partir de uma naturalidade que não rouba a impostação
mais formal do texto e o tom agudo de sua crítica. O ator conquista a plateia,
trazendo-a para o centro da cena com a facilidade de uma conversa afiada pela
cumplicidade de uma “troca de ideias”.
O monólogo em forma de conferência
revela a existência de um pintor, o tal Philippe Dussaert, que de copista dos
clássicos, evolui para produção heterodoxa e fica conhecido por pintar quadros
conceituais – o fundo de obras conhecidas. “Monalisa”, de Leonardo Da Vinci,
por exemplo: retirando a mulher do enquadramento, o que resta? O fundo. É o que
ele pinta. Ele faz isso para várias pinturas, retirando o que há de vida humana
ou animal, firmando seu nome nos museus e galerias. Sua série “ao fundo de…” se
torna um sucesso. As mudanças sofridas por sua obra, pequena – restrita a 18
telas -, mas polêmica provocam sismos na crítica, na academia, na política de
aquisição de museus internacionais e até mesmo no Ministério da Cultura da
França.
Vida e criação do artista são
expostas pelo conferencista que confessa não ser especialista em arte, muito
menos jornalista ou marchand, apenas alguém interessado em desvendar o mistério
que envolve intrigante existência e invenção provocativa. Ao desvendar para a
plateia os motivos de tanta celeuma em torno de um artista praticamente
desconhecido, o palestrante conclui que a verdade do personagem somente será
descoberta pela ilusão mentirosa do teatro. Mas, se essa é a conclusão
poetizada, o percurso é mordaz em relação à arte contemporânea. Nada fica de pé
no circuito artístico, da necessidade do discurso à “significância do não
signo”. Da manipulação mercadológica à “representação do nada” e da “plenitude
do vazio”.
O conferencista revela o
“escândalo”: inquieto com “ao fundo de…”, Phillipe Dussaert anuncia uma nova
exposição, “No Fundo”, para mostrar o que estaria ao fundo do fundo – ou seja,
por trás da paisagem. Quando os convidados chegam à galeria, a encontram vazia:
não há nem mesmo uma tela em branco, ou uma moldura. Dussaert se desfaz de
forma e conteúdo levando sua obra à limitação de um conceito. “No fundo” é o
nada. E essa obra termina vendida para o governo francês em um leilão por oito
milhões de francos. É aí que se inicia a discussão: o Estado está jogando
dinheiro fora adquirindo uma ideia (o nada) ou “No Fundo” pode mesmo ser
considerada como arte e, portanto, valer tanto.
Contemporânea, ousada, a peça
escapa à simplicidade das velhas classificações de gênero dos manuais. Simula
ser uma encenação-conferência. A rigor é um ato do espírito, decidido a
derrubar grandes certezas – em especial a certeza de que devemos acreditar em
histórias bem contadas.
Não tem nada de comédia. Há uma
construção dramatúrgica rigorosa. A encenação segue um texto, mas tem a forma
do teatro contemporâneo mais atual, misto de presença, performance e
representação. Como o ator é exuberante, magistral mesmo, a sessão se
transforma em ato de encantamento. Irresistível para quem gosta de arte,
escandaloso para quem ama teatro.
E os motivos? Fácil, tanto o texto
como a encenação oferecem tudo aquilo que o melhor teatro possui – belas
ideias, arrebatamento, humor, a possibilidade de novas visões da vida e da
sociedade. A ironia e a sutileza garantem o riso farto, como se fosse uma
comédia muito espirituosa, atrevida mesmo. E, no entanto, o foco é sério,
apenas a imoralidade das transgressões mais profundas, aquelas que afetam a
ética, ignoram os valores básicos essenciais para a vida em sociedade.
Transgressões contra todos nós, cometidas pela arte, em nome da arte.
A trama tem aparência singela, mas
se torna bastante densa graças à reviravolta final, que não deve ser revelada.
A metralhadora do texto mira em
todas as direções, acerta em tudo: a arte, os artistas, os turistas da arte, os
críticos de arte, a imprensa, o público de arte, os marchands, a academia, os
doutos e professores, os museus, os Ministérios da Cultura. Sim, é claro que os
deslumbrados pela vanguarda sofrem mais: os americanos, os alemães, os
israelenses e – não podiam escapar – os belgas, todos representados por seus
milionários museus, capazes de comprar qualquer vento rotulado de invenção.
Eles são os alvos maiores da imensa gozação.
O que afinal está acontecendo?
Somente a mentira do teatro para
nos escancarar a verdade.
A arte nos salvará?
Até breve.
PS: Este post foi escrito apoiado
em algumas críticas da peça, mas no fundo, ele é de minha autoria. Ou não?