Matheus não arrebata como cantor,
especialmente quando o pano se abre. É tudo que se pode falar sobre a
experiência que se vive no desenrolar das cenas.
Processo de Conscerto do Desejo, que
fomos assistir ontem no CCBB, no entanto, que Nachtergaele nos oferece, e, especialmente
no tempo presente, é soberbo.
No programa da peça ele escreve:
“Poucas palavras se confundem tanto em nossa língua quanto ‘concerto’ e
‘conserto’. Aqui, elas se mesclam vertiginosamente. A palavra desejo, em
filosofia, seria a tensão em direção a um fim de onde se espera satisfação.
Tradicionalmente o desejo pressupõe carência, ou alguma forma de indigência: um
ser que não carecesse de nada, não desejaria nada. Seria um ser perfeito, um
Deus. Por isso a filosofia, tantas vezes, considera o desejo como
característica primeira do ser imperfeito, do ser finito.”
Transformar a experiência pessoal
em arte é um caminho de inspiração recorrente para atores e dramaturgos. Levar
sofrimentos e traumas para o palco, no entanto, exige uma dose extra de coragem
e desprendimento.
O ator e diretor, que alço no
Olimpo de Paulo Autran e Juca de Oliveira, constrói ao longo de anos de
pergunta uma imagem idealizada de sua mãe, a poeta Maria Cecília Nachtergaele,
que se matou quando ele tinha só três meses, em 1968, aos 22 anos.
O sofrimento do filho fica
disfarçado, e Nachtergaele transforma-se na própria personagem trazendo à tona
poemas escritos por ela e reconstituindo histórias ouvidas no decorrer da vida,
até quando o seu pai entrega-lhe (Matheus estava com dezesseis anos de idade)
os poemas escritos por ela e conta como a mãe havia morrido.
Em sua entrega, o ator traça um
retrato lírico de Maria Cecília e foge do aprofundamento em temas pessoais e
mais dramáticos. O protagonista, embebido de arte, se coloca no lugar da mãe na
tentativa de entender suas motivações.
A memória, ora vestida de som e
luz, ora de silêncio e sombra, mas, sobretudo, impregnada na narrativa poética,
é o fio condutor do espetáculo. Ao se fundirem, no neologismo “conscerto”, as
palavras concerto e conserto revelam duas intenções, a do espetáculo e da
restauração através da poesia. O artista explica, objetivamente: “Quero consertar meu desejo com poesia, num
concerto.”.
A música trazida tirada de violão e
violino por Luã Belik e Henrique Rohrmann embebedam segundando e suportando o texto
de forma esplendorosa. Quando resta em cena somente a música, em raro momento,
Luã sola, a luz foca apenas ele e aos poucos Mateus se aproxima e se senta aos
pés do músico. Matheus se enreda nas pernas do músico como se quisesse fazer
música e poesia uma coisa só.
Maravilhosa a escolha da canção de
Sérgio Endrigo, que Marília Cécilia adorava, Io Che amo solo te, que Matheus
interpreta. Io ho avuto solo te/e non ti
perdero/ e non ti lascero/ per cercare nuove aventure, além de, io mi
fermero/ e ti regalero/ quel che resta della mia gioventu.
Em entrevista, Matheus disse: “O espetáculo é simples assim: um homem (que
por acaso é um ator) diz no palco as palavras escritas por sua mãe. Um violão
(não por acaso, pois Maria Cecília amava os violões) o acompanha. É só isso, se
isso for pouco.”.
Maria Cecília lança o filho a uma
nova aventura e deixa o que lhe resta, a sua juventude. Ela foi uma mulher
feminista, nos anos 60, que reivindicava mais ternura no mundo dos homens.
Em momento comovente e contundente
da peça, Matheus lança holofotes sobre a plateia vem para junto do público e
diz um dos poemas mais expressivos da poetisa, no qual há uma proposta: sempre
e, sobretudo, amem.
Este espetáculo é um tributo à
mulher, dramaticamente ceifada pela poesia que a levou a uma insustentável
leveza de angústia depressiva pós-parto, mas nos deixa diante da vida para
continuar tentando.
Minutos antes de o espetáculo
começar houve um princípio de manifestação política e, imediatamente ocorreu um
rechaço à ideia. Parece que se percebeu que viria ali algo que não trataria do
Homem e do seu tempo, mas do Humano. O demasiado humano.
No final Matheus convida Elis
Regina, que faria ontem aniversário, sugere uma canção dela e deixa a plateia.
Ainda há um quê pelo que viver.
Até breve.
NOTA: Aliás, estivesse aqui, minha mãe faria aniversário ontem.
NOTA: Aliás, estivesse aqui, minha mãe faria aniversário ontem.
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