E vou tentando e vou fazendo,
desmanchando, refazendo, pensando. A parte já escrita eu vou sempre tateando.
Nunca eu acho que tenho a inspiração completa, de saída, espontaneamente.
Quando eu escrevo é como se eu quisesse pegar uma coisa que já existe. E não posso
trair essa coisa. A criação da minha obra é uma tradução de uma coisa que eu
não vejo. Há uma fidelidade a essa coisa que eu não sei qual é, mas sinto que
tenho de guardar aquilo, de respeitar.
Os elogios até me deprimem. Quer
dizer, em penso: e não sei como foi que aquilo ficou assim, eu não tenho a
receita, não tenho a receita, não posso repetir isso. É como um cozinheiro que
fosse botando coisa na panela sem tomar nota.
Eu aprecio minhas coisas como se
elas não fossem minhas. Às vezes eu pego uma coisa minha e digo "está bom,
está bom" como sendo de outro autor. Eu gosto até de elogiá-las porque
aquilo não sou eu. Houve tanto caminho, tanta mistura, tanta duração que eu
depois sinto a coisa como se não tivesse ligação direta comigo. Eu descubro
coisas a meu respeito depois lendo calmamente o que eu escrevi... Aprendo
coisas a meu respeito me lendo.
Paradoxalmente o contato com
os outros raramente se consegue quando se é extrovertido. Eu vou dar um
exemplo: o grande ator representa para si, não para o público. O público não
existe, está entre parênteses, está num mundo fechado, à parte. Do mesmo modo o
autor se vai realizando e se vai projetando na sua estória imaginária e então
ele tem que ser perfeito dentro daquele mundo. Para si próprio.
Todas as obras perdem mais ou menos
aspectos de superfície, mas tudo o que perde por um lado ganha de outro porque
a comunicação por meio da palavra tem muita coisa de incompleto, que precisa de
ser completado, de indireto que pode ser explicitado. Às vezes resulta uma
coisa humana, mais seivosa, mais comunicativa, mais... Todos recriam minhas
coisas, lhes dão nova vida...
A minha concepção do mundo não é de
verdade material, objetiva... Essa realidade objetiva não existe, eu não
acredito nela, é apenas aparência. A verdade, a verdadeira realidade é outra
coisa para além desse mundo objetivo, outra coisa... Portanto a explicação
realista que na verdade nada explica porque na verdade todos os vivos atos se
passam longe demais.
A verdadeira causa das coisas não é
material. Não é o micróbio que mata, esses são apenas os agentes. Há mais
alguma coisa... Nós estamos entre sombras. Por exemplo, a frase "O senhor sabe o que é o silêncio é? É
a gente mesmo... Demais" Por quê? Porque no silêncio você sente você
mesmo, de uma maneira muito forte. Por isso o silêncio assusta.
Quando eu digo
"circunstristeza" não é para fazer uma palavra nova, é porque tenho
que dizer que tudo estava triste, mas sem usar linhas que quebram a
perspectiva, sem estruturas muito pesadas se não, não voa. Tudo influi. O
negócio é como na música, uma nota, só uma, uma pausa, uma vírgula é
importante, conta. Não é verdade?
Você não acerta quando vai
consultar o dicionário para saber o sentido, quando não parte da melodia,
quando não segue a música...
E sou muito objetivo, eu não sou
pessoa que me sacrifique pela arte. A literatura não é a coisa mais importante
pra mim. Eu sou um homem religioso. O importante pra mim é a religião
compreende? Tenho um talento, coisas pra dizer, de maneira que eu escrevo. Mas
nunca tive pressa com as minhas coisas. Não.
Eu não sou bom mineiro, mas o
Carlos Drummond de Andrade, sim é...
Eu, eu noto, conversando com os
outros companheiros meus, que alguns têm o livro na cabeça, ficam anos com ele,
e depois é quase como se o um livro fosse uma saída deles mesmo, de alguma
coisa que já existia neles. Eu? Eu não. Eu estou no meio de um vazio, aquele
vácuo.
Sempre que eu ouço música começa a
germinar uma coisa dentro de mim, minha alma desperta, minha imaginação acorda.
Até cinema, quando eu vou ao cinema vejo outras coisas também. É que música,
cinema, outros autores, tudo... São catalizadores, eles detonam coisas em mim.
Eu estudo gramática, é interessante
saber como a língua funciona, né? Mas quando escrevo um livro não penso que
estou escrevendo um livro: eu estou vivendo uma coisa, estou vendo uma coisa,
estou pondo no papel essa coisa. De repente sai aquilo que eu escrevo, mas não
é de propósito, é espontaneamente, sem forçar, é preciso que seja um ser vivo,
um ser vivo.
Frangalhos de entrevista de João
Guimarães Rosa, provavelmente a última, dada ao professor Francisco Camacho em
abril de 1966. Quem quiser ler a entrevista toda, clique em JOÃO.
Até breve.
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