Aquarius é surpreendente. Pela
narrativa, pela direção, pela fotografia, pela trilha sonora, por Sônia, por
tudo.
Aquarius explica e ilustra. Ocorreu
uma ruptura pós-década de 80. Abriu-se um fosso mergulhando a todos em um vazio
descomunal.
Entre caráter, projetos e valores.
A mim o filme reforça uma pergunta
de há muito formulada: o que resultou daqueles tempos? Do ocaso da Guerra Fria,
da Redentora de 64, de Betânia, Caetano, Chico, Gil e de tantos como, do
jornalismo, da cultura.
Clara, a personagem ícone vivida
por Sônia Braga (exuberante), vai à sua estante de discos pega um exemplar e
pontua: “Eu tenho um vinil aqui de John Lennon lançado uma semana antes de ele
ter sido assassinado em dezembro de 1980. Comprei num sebo em Porto Alegre.
Dentro da capa veio um recorte de artigo de um jornal de Los Angeles. Isso é
uma marca concreta da História, quanto vale esta peça?”.
Ela estava sendo entrevistada por
uma repórter que a perguntara se gostava ou não de música digital.
Clara é a última proprietária e
moradora de um prédio de apartamentos. Todas as demais unidades haviam sido
compradas por uma construtora que tinha a intenção de demolir o prédio e
construir outro. Moderno.
Sua resistência à venda do imóvel
sugere ser o fio condutor do filme magistral de Kleber Mendonça Filho, de Som
ao Redor.
A decoração do apartamento, os
móveis, os discos, os seus pertences dizem da história de Clara. Em cena, que
vale muito mais que inúmeras aulas de antropologia, ela é interpelada por um de
seus filhos que insistem para que ela venda o apartamento e se mude “até por
questões de segurança” para outro prédio em melhores condições:
- “Mas, por que, se eu criei vocês
três aqui, construí toda a minha vida neste lugar”...
Meu coração fala através de Clara
que sobreviveu a um câncer de mama. Puta marca simbólica do roteiro.
Ceifada ela resiste em seus valores
eternos contrapondo-se aos valores modernos. “Mostre Betânia a ela”, recomenda a
um sobrinho que receberia uma amiga vinda do Rio de Janeiro. (O filme se passa
em Recife).
Clara vive o seu tempo em sua
integridade. Cultua suas tradições, mostra as fotos de uma vida em inúmeros
álbuns, relembra de pessoas perdidas. Tem uma vida a contar.
A História não se perdeu, para ela.
Aquarius, no entanto, explicita na
trajetória do roteiro os caminhos da modernidade e nos joga na cara o que
fizemos com a nossa.
A estrutura da trama contempla três
capítulos: o último, “O Câncer de Clara”, é demolidor, culminando na cena
final, acachapante e de uma clareza dilacerante.
Para completar, como se não
bastassem imagens, Taiguara considerado um dos símbolos da resistência à
censura durante a ditadura militar brasileira, um dos compositores mais
censurados na historia da MPB (68 canções censuradas), irrompe tímpanos
adentro:
Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo...
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos...
Aquarius parece ser um filme político, mas é. Também.
Até breve.
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