Meus pais foram avessos à religião.
Mesmo minha mãe que, na juventude, havia estudado em colégio interno de
freiras. A labuta foi a distanciando das práticas. Meu pai, esse coitado, só
acreditava no braço.
Lá pelos idos da velhice aconteceu
o inesperado que fez minha mãe tornar-se quase uma carola convicta, cantora de
coral na igreja, voluntária das procissões e demais benerescências.
Diz a lenda que ela se apaixonou pelo
vigário da paróquia de nosso bairro. Paixão fulminante, duradoura e
irreversível. Além de na alma ela deu uma renovada no layout. Passou a refazer
as unhas, ralar seus pés untando-os em seguida com cremes, pentear o cabelo com
estilos e vestir-se toda de branco.
Afinou a voz, socializou-se com
tantas outras frequentadoras assíduas do templo e, em casa, vivia a fé. Toureou,
como nunca teria feito, o meu pai. Depois de ele ter ameaçado inúmeras vezes
invadir a igreja e defenestrar o pároco deixando batinas e acessórios
paramentais em pedacinhos, capitulou.
Meu pai transformou-se em um corno
platônico manso a ponto de ir à igreja inúmeras vezes acompanhar a esposa
transtornada de graça. Mesmo que ele tenha, no máximo, cumprimentado o padre
uma ou duas vezes, ele foi aos poucos aceitando que minha mãe estava
irremediavelmente de quatro.
E deixou de acompanhá-la, tanto que
no dia que ela nos deixou de vez, ela tinha ido com seus cabelos acinzentados, seu
vestido mais branco, seus pés lisos e suas unhas limpas e aparadas, em um
sábado final de tarde à missa. Releiam em MARCA.
"Minha mãe voltara da missa de fim
de tarde de um sábado. Ela sempre, aos sábados à tarde, arrumava-se toda, com
seus melhores vestidos, sua alfazema e seus cabelos acinzentados, cor de prata,
cuidadosamente penteados. Naquele sábado, de fevereiro, ela encontrou em casa
meu pai, sozinho, assistindo TV e de forma serena perguntou-lhe: ‘Pepe,
você ainda me acha uma mulher bonita?’ Ao que o meu pai respondeu: ‘Claro,
Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’ ‘Pepe, você esquenta uma caneca de
leite para mim, eu não estou me sentindo muito bem, vou me deitar um pouco... ’ Meu
pai desligou a TV, foi à cozinha e colocou o leite para esquentar, depois
colocou um pouco na caneca e foi para o quarto deles. Encontrou minha mãe
deitada na cama, com as mãos postas uma sobre a outra e apoiadas sobre a
barriga, com os olhos fechados. Meu pai a chamou pelo nome uma, duas, três
vezes. Por um momento ele pensou que ela havia adormecido, deixou a caneca com
leite sobre o criado e ia deixando o quarto quando resolveu voltar e chamá-la
novamente. Sete dias depois distribuímos a parentes e amigos o pequeno cartão
com o diálogo de despedida: ‘Pepe, você ainda me acha uma mulher
bonita?’ ‘Claro, Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’"
Pois é.
Por que diabos em me lembrei deles?
Ontem assisti à disputa da medalha de ouro no futebol masculino. Ao final da
partida dois protagonistas do feito se destacaram. O goleiro convocado às
pressas para a campanha e o nosso atacante mais celebre.
Na primeira entrevista do goleiro
ele disse com seu dedo indicador em riste para cima: “Em primeiro lugar eu devo
agradecer à Deus”. E o atacante gandaeiro, baladeiro, mulherengo, malandreiro
vestiu-se com uma faixa amarrada na testa: “100% Jesus”.
O goleiro depois de agradecer ao
Senhor fez referência também à família como corresponsável pela sua façanha e o
atacante foi à arquibancada buscar seu filhinho David (mera coincidência?) e, a
dois, comemorar a vitória.
Mais tarde, em furo de reportagem
espetaculosa, a emissora de TV líder colheu a informação do atacante que ele
estaria comunicando ao técnico da seleção principal a sua decisão em conjunto
com a família de não mais ser capitão.
Caramba, onde vai dar esse texto?
Nada de novo, só depois que lê-lo
algumas vezes é que talvez eu o entenda. De pronto, por agora, eu fico com a ideia
mais ou menos assim:
Nossa civilização não poderá
abdicar de duas instituições basilares: Deus e Família, por onde devem
transitar todas as nossas paixões e as razões para os nossos extraordinários ou
modestos feitos.
Quem sabe ela não renove aí seus desígnios,
seus propósitos mais do que humanos e ressurja altiva com suas vestes alvas,
suas unhas aparadas, seus cabelos alinhados.
Linda.
Até breve.
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