domingo, 21 de agosto de 2016

RELIGARE



Meus pais foram avessos à religião. Mesmo minha mãe que, na juventude, havia estudado em colégio interno de freiras. A labuta foi a distanciando das práticas. Meu pai, esse coitado, só acreditava no braço.

Lá pelos idos da velhice aconteceu o inesperado que fez minha mãe tornar-se quase uma carola convicta, cantora de coral na igreja, voluntária das procissões e demais benerescências.

Diz a lenda que ela se apaixonou pelo vigário da paróquia de nosso bairro. Paixão fulminante, duradoura e irreversível. Além de na alma ela deu uma renovada no layout. Passou a refazer as unhas, ralar seus pés untando-os em seguida com cremes, pentear o cabelo com estilos e vestir-se toda de branco.

Afinou a voz, socializou-se com tantas outras frequentadoras assíduas do templo e, em casa, vivia a fé. Toureou, como nunca teria feito, o meu pai. Depois de ele ter ameaçado inúmeras vezes invadir a igreja e defenestrar o pároco deixando batinas e acessórios paramentais em pedacinhos, capitulou.

Meu pai transformou-se em um corno platônico manso a ponto de ir à igreja inúmeras vezes acompanhar a esposa transtornada de graça. Mesmo que ele tenha, no máximo, cumprimentado o padre uma ou duas vezes, ele foi aos poucos aceitando que minha mãe estava irremediavelmente de quatro.

E deixou de acompanhá-la, tanto que no dia que ela nos deixou de vez, ela tinha ido com seus cabelos acinzentados, seu vestido mais branco, seus pés lisos e suas unhas limpas e aparadas, em um sábado final de tarde à missa. Releiam em MARCA.

"Minha mãe voltara da missa de fim de tarde de um sábado. Ela sempre, aos sábados à tarde, arrumava-se toda, com seus melhores vestidos, sua alfazema e seus cabelos acinzentados, cor de prata, cuidadosamente penteados. Naquele sábado, de fevereiro, ela encontrou em casa meu pai, sozinho, assistindo TV e de forma serena perguntou-lhe: ‘Pepe, você ainda me acha uma mulher bonita?’ Ao que o meu pai respondeu: ‘Claro, Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’ ‘Pepe, você esquenta uma caneca de leite para mim, eu não estou me sentindo muito bem, vou me deitar um pouco... ’ Meu pai desligou a TV, foi à cozinha e colocou o leite para esquentar, depois colocou um pouco na caneca e foi para o quarto deles. Encontrou minha mãe deitada na cama, com as mãos postas uma sobre a outra e apoiadas sobre a barriga, com os olhos fechados. Meu pai a chamou pelo nome uma, duas, três vezes. Por um momento ele pensou que ela havia adormecido, deixou a caneca com leite sobre o criado e ia deixando o quarto quando resolveu voltar e chamá-la novamente. Sete dias depois distribuímos a parentes e amigos o pequeno cartão com o diálogo de despedida: ‘Pepe, você ainda me acha uma mulher bonita?’ ‘Claro, Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’"

Pois é.

Por que diabos em me lembrei deles? Ontem assisti à disputa da medalha de ouro no futebol masculino. Ao final da partida dois protagonistas do feito se destacaram. O goleiro convocado às pressas para a campanha e o nosso atacante mais celebre.

Na primeira entrevista do goleiro ele disse com seu dedo indicador em riste para cima: “Em primeiro lugar eu devo agradecer à Deus”. E o atacante gandaeiro, baladeiro, mulherengo, malandreiro vestiu-se com uma faixa amarrada na testa: “100% Jesus”.

O goleiro depois de agradecer ao Senhor fez referência também à família como corresponsável pela sua façanha e o atacante foi à arquibancada buscar seu filhinho David (mera coincidência?) e, a dois, comemorar a vitória.

Mais tarde, em furo de reportagem espetaculosa, a emissora de TV líder colheu a informação do atacante que ele estaria comunicando ao técnico da seleção principal a sua decisão em conjunto com a família de não mais ser capitão.

Caramba, onde vai dar esse texto?

Nada de novo, só depois que lê-lo algumas vezes é que talvez eu o entenda. De pronto, por agora, eu fico com a ideia mais ou menos assim:

Nossa civilização não poderá abdicar de duas instituições basilares: Deus e Família, por onde devem transitar todas as nossas paixões e as razões para os nossos extraordinários ou modestos feitos.

Quem sabe ela não renove aí seus desígnios, seus propósitos mais do que humanos e ressurja altiva com suas vestes alvas, suas unhas aparadas, seus cabelos alinhados.

Linda.



Até breve.

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