quarta-feira, 31 de agosto de 2016

ORTORIDADE



Está na contracapa do livro de Francisco Daudt da Veiga, O Aprendiz de Liberdade(*), um de meus livros-de-cabeceira:

A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam.” Esta citação é a bússola deste livro. Ela nos faz pensar que somos um tipo curioso de marionetes: atados por fios, mas olhando para cima com vontade de saber como é a cara daqueles que os puxam, quais são suas intenções e suas disposições de espírito. Bonecos controlados, sim, mas com algum espaço para um arbítrio que queremos mais livre.

Já no corpo do livro, no capítulo Argumento de Autoridade, Chico Daudt escreveu:

Um amigo da juventude de Billy Wilder (o diretor de Quanto mais quente melhor) foi pego se masturbando. O pai ameaçou-o: “Se você fizer isso cinquenta vezes, vai morrer”. O pobre coitado começou a raciocinar seus impulsos, mas finalmente chegou ao número-limite. Escreveu uma carta de despedida ao pai dizendo que não tinha conseguido se conter, e dirigiu-se ao abismo. Sobreviveu, é claro. E reuniu-se aos amigos para um festival de punheta anarquista em que proclamavam: “Os pais mentem!”

Lembrei-me deste delicioso livro ontem. Acompanhei, nos últimos dias, boa parte das sessões derradeiras do processo de impeachment.

É assim a nossa principal fonte de crenças, de conhecimentos e de “verdade”: o argumento de autoridade. Os livros, os jornais, a escolaridade, nossos pais, nossos amigos importantes, os políticos, enfim, o séquito de autoridades que nos rondou, apresentou verdades a que tínhamos que nos curvar segundo um princípio: é verdade porque vem da autoridade.

Precedida pelas falas intermináveis e mais do que repetitivas a grande maioria dos parlamentares usaram: “A verdade é quê...” Olhando para as câmeras como se dirigissem mesmo a nós, os despossuídos da verdade, eles intimidaram com a sugestão de que não fazemos parte de um mundo de pessoas cultas, de quem estamos sempre por baixo, e se não entendemos é porque somos burros.

Os pais mentem.

Não bastassem há ainda os “amigos feicebucanos” com suas intermináveis bandeiras desfraldadas, os mais eruditos fixando em seus perfis depoimentos, manifestos, pareceres de intelectuais, artistas, enfim daqueles que têm domínio da verdade.

Um porre!

Conta meu tio-avô Jango, em seu livro de 1936, Memórias de João Daudt Filho, que a matriarca dos Daudt emigrou da Alemanha, chegando ao Rio Grande do Sul em 1824. Já instalada, confessava-se ao padre uma vez por ano com seu português precário em apenas uma frase: “Eu non robô, eu non mato; tudo mais eu feiz”. Pode ser que o resumo fosse derivado de sua linguagem rudimentar, mas do ponto de vista do superego a confissão é perfeita: não havendo provas absolutas em contrário, somos culpados de tudo, inclusive de crimes das vidas passadas (o carma) e do pecado original, herdado de Adão e Eva, cerca de 40 mil gerações atrás!

Eu, vou dizer proceis: tudo eu feiz. E muito mais do que cinquenta veiz.

Duvidem de tudo que eu escrevo, especialmente quando apoiado em outros despossuídos.

Principalmente os títulos dos posts. Hoje, por exemplo, viram que começa com ORTO?

Até breve.


(*)O aprendiz de liberdade / Francisco Daudt da Veiga – São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

SOPRO



Emblemática a campanha da agência África para incentivar a venda de ingressos dos Jogos Paralímpicos. Atores globais, para “gerar visibilidade”, “representando” atletas que portam deficiências físicas.

Aliás, alguém me explique aí, por favor.

Por que Olimpíadas e Paralimpíadas?

Por que aquela que congrega os “sãos” e outra que acolhe os que “lhes faltam”? Há mais perversa e abominável forma de distinção?

Mais tenebrosa é a justificativa para a mudança de Paraolimpíadas para Paralimpíadas.

A mudança foi um pedido feito pelo Comitê Paralímpico Internacional.

Isso porque outros países de língua portuguesa como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste usam o termo Paralimpíadas, e o Comitê quis igualar o uso da palavra. Além disso, a palavra "olimpíadas" é usada em outra organização esportiva, o Comitê Olímpico Internacional.

Para quem não sabe, a palavra vem do inglês "paralympic", que mistura o início do termo "paraplegic" e com o final de "olympics" para designar o atleta paralímpico.

Essas lógicas me dão náuseas.

Afinal, por que não uma única Olimpíada? Assim mesmo no singular.

Com uma única abertura e encerramento. No mesmo local, dentro do mesmo período com a mesma mídia, reconhecimento e louvor.

Por quê?

Na época do poetinha tinha dele uma expressão: “Perdoem-me as mulheres feias, mas a beleza é fundamental”. O Belo é o que marca, posto que ilusão temporária, mesmo que ele, o Tempo, leve à deficiência, à decrepitude.

E tudo será feio?



 BRIGITTEs BARDOTs


Até breve.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

DEPRÊ



Acho tudo balela. Essa história de que fiz o meu máximo. Superei meus temores, meus fantasmas. Domei meus grilos. Embromation, crystal.

No vamovê a pessoinha é aquela mesma ali e, mesmo que tenha até aparentado, no realzão, bronhas.

Ninguém é mais ou menos que a história, e ela, a História, acaba porque muito pouco sobra. Afinal já lá se vão mais de milhares de anos de excepcionalidades temporais. E, delas, nem registro.

Para quem tá aqui no suposto presente, até se alarde, mas nada que um ou dois meses não encubra. Até porque são tantos os novos exemplares célebres que nada permanece.

Tudo é desnecessário e efêmero.

Parece mesmo, como querem alguns iluminados e respeitados cientistas, que estamos “evoluindo” à máquina, isto é, em breve seremos “coisa”.

Os sentimentos, por exemplo, como têm se alterado de uns tempos para cá. Seus efeitos, então, nem me fale. Nada que comova, implica.

Veja as inúmeras guerras em curso, os desastres naturais e os desnaturais, os crimes mais do que hediondos desalmalizados, veja a seara política aqui como lá, veja a música, a literatura, o cinema, as artes.

Veja os motivos, os sonhos, a utopia.

A Ética.

Há no oitavo episódio da série da Netflix, House of Cards, uma cena que me deu esse incômodo. O protagonista, Deputado Frank Underwood, discursa na solenidade em que o prédio da biblioteca da faculdade em que ele se formou passa a receber o seu nome.

“Nada é permanente, nem mesmo este prédio.
Harmonia, essa é a palavra que não sai de minha cabeça.
Não se trata do que é duradouro ou permanente. Trata-se de vozes individuais unindo-se em uníssono por um momento.
E aquele momento tem a duração de um fôlego.
É isso que penso de meus tempos aqui.”

Informo àqueles que não acompanham a série de que Frank é a melhor expressão do político facínora.

Pois é.



Até breve.

domingo, 21 de agosto de 2016

RELIGARE



Meus pais foram avessos à religião. Mesmo minha mãe que, na juventude, havia estudado em colégio interno de freiras. A labuta foi a distanciando das práticas. Meu pai, esse coitado, só acreditava no braço.

Lá pelos idos da velhice aconteceu o inesperado que fez minha mãe tornar-se quase uma carola convicta, cantora de coral na igreja, voluntária das procissões e demais benerescências.

Diz a lenda que ela se apaixonou pelo vigário da paróquia de nosso bairro. Paixão fulminante, duradoura e irreversível. Além de na alma ela deu uma renovada no layout. Passou a refazer as unhas, ralar seus pés untando-os em seguida com cremes, pentear o cabelo com estilos e vestir-se toda de branco.

Afinou a voz, socializou-se com tantas outras frequentadoras assíduas do templo e, em casa, vivia a fé. Toureou, como nunca teria feito, o meu pai. Depois de ele ter ameaçado inúmeras vezes invadir a igreja e defenestrar o pároco deixando batinas e acessórios paramentais em pedacinhos, capitulou.

Meu pai transformou-se em um corno platônico manso a ponto de ir à igreja inúmeras vezes acompanhar a esposa transtornada de graça. Mesmo que ele tenha, no máximo, cumprimentado o padre uma ou duas vezes, ele foi aos poucos aceitando que minha mãe estava irremediavelmente de quatro.

E deixou de acompanhá-la, tanto que no dia que ela nos deixou de vez, ela tinha ido com seus cabelos acinzentados, seu vestido mais branco, seus pés lisos e suas unhas limpas e aparadas, em um sábado final de tarde à missa. Releiam em MARCA.

"Minha mãe voltara da missa de fim de tarde de um sábado. Ela sempre, aos sábados à tarde, arrumava-se toda, com seus melhores vestidos, sua alfazema e seus cabelos acinzentados, cor de prata, cuidadosamente penteados. Naquele sábado, de fevereiro, ela encontrou em casa meu pai, sozinho, assistindo TV e de forma serena perguntou-lhe: ‘Pepe, você ainda me acha uma mulher bonita?’ Ao que o meu pai respondeu: ‘Claro, Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’ ‘Pepe, você esquenta uma caneca de leite para mim, eu não estou me sentindo muito bem, vou me deitar um pouco... ’ Meu pai desligou a TV, foi à cozinha e colocou o leite para esquentar, depois colocou um pouco na caneca e foi para o quarto deles. Encontrou minha mãe deitada na cama, com as mãos postas uma sobre a outra e apoiadas sobre a barriga, com os olhos fechados. Meu pai a chamou pelo nome uma, duas, três vezes. Por um momento ele pensou que ela havia adormecido, deixou a caneca com leite sobre o criado e ia deixando o quarto quando resolveu voltar e chamá-la novamente. Sete dias depois distribuímos a parentes e amigos o pequeno cartão com o diálogo de despedida: ‘Pepe, você ainda me acha uma mulher bonita?’ ‘Claro, Leny, você é a mulher mais linda do mundo!’"

Pois é.

Por que diabos em me lembrei deles? Ontem assisti à disputa da medalha de ouro no futebol masculino. Ao final da partida dois protagonistas do feito se destacaram. O goleiro convocado às pressas para a campanha e o nosso atacante mais celebre.

Na primeira entrevista do goleiro ele disse com seu dedo indicador em riste para cima: “Em primeiro lugar eu devo agradecer à Deus”. E o atacante gandaeiro, baladeiro, mulherengo, malandreiro vestiu-se com uma faixa amarrada na testa: “100% Jesus”.

O goleiro depois de agradecer ao Senhor fez referência também à família como corresponsável pela sua façanha e o atacante foi à arquibancada buscar seu filhinho David (mera coincidência?) e, a dois, comemorar a vitória.

Mais tarde, em furo de reportagem espetaculosa, a emissora de TV líder colheu a informação do atacante que ele estaria comunicando ao técnico da seleção principal a sua decisão em conjunto com a família de não mais ser capitão.

Caramba, onde vai dar esse texto?

Nada de novo, só depois que lê-lo algumas vezes é que talvez eu o entenda. De pronto, por agora, eu fico com a ideia mais ou menos assim:

Nossa civilização não poderá abdicar de duas instituições basilares: Deus e Família, por onde devem transitar todas as nossas paixões e as razões para os nossos extraordinários ou modestos feitos.

Quem sabe ela não renove aí seus desígnios, seus propósitos mais do que humanos e ressurja altiva com suas vestes alvas, suas unhas aparadas, seus cabelos alinhados.

Linda.



Até breve.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

LONGES



Batatinha quando nasce esparrama pelo chão. Mamãezinha quando dorme, põe a mão no coração.

Eu tentei introduzir Tin no mundo das rimas propondo a ele que repetisse, ainda que sem fazer os gestos. Minha intenção era a de que ele registrasse primeiro o texto.

- Vamos lá então, Tin. Batatinha...

- Frita!

Pois é, não passou da primeira tentativa.

Fria, extremamente fria. Previsão de 9ºC de máxima e 1ºC de mínima no próximo domingo. Lages está gelada de emburrecer. Eu fico de tal maneira estressado, sob clima de temperaturas baixas, que meu raciocínio reduz ao de uma ameba.

A vida de Pretinha tá ninja, como ela gosta de dizer. Contratou a Rúbia para ajudá-la nos afazeres domésticos e, já na primeira semana, a moça teve um problema de saúde e deverá ficar afastada por sabe-se lá quanto tempo.

Em compensação já fez amizade no prédio. Maud e Chiquinho e as duas filhinhas deles,Vitória e Valentina, são adoráveis.

Na sexta, Pretinha os convidou e fizemos um salmão com risoto maravilhoso. A coisa foi até de madruga. No domingo, fizeram questão que fossemos junto com eles a um churrasco no clube.

Assim, desse jeito, simples.

A vida vai se aprumando, tomando contornos distintos daqueles que, a princípio, imaginávamos.

Fazer o quê?

Os filhos se vão e, pior, com eles os netos.

De qualquer forma me agradaram muito como eles estão instalados e o rápido processo de adaptação.

Na quinta-feira pouco depois que desembarcamos em Lages fomos buscar os meninos na escolinha. Tin, quando me viu, quis desvencilhar da mão da professora e veio correndo ao meu encontro abraçando-me efusivamente. Liz, por sua vez, correu em direção à avó.

Hoje, quando chegamos ao aeroporto para regressarmos à BH, Tin quis ficar no meu colo. Durante o check in ele ficou sentadinho no balcão fazendo todas as perguntas.

Próximo à sala de embarque nos despedíamos e eu passei Tin para o colo de Cláudio. Meu netinho entrou em prantos.

Eu sei quê... Eu sei quê... Eu sei quê...

Mas que é foda é.




Até breve.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

FASE



Inadvertidamente estive examinando o Código de Ética que orienta a conduta da editoria deste blog. E, para minha surpresa, constatei que um dos pilares dos propósitos deste veículo é o da REGULARIDADE.

Passei a refletir das razões pelas quais o dasletra perdeu o ritmo anteriormente determinado e passou a trazer à luz, indisciplinadamente e sem uma constância regular, os seus textos.

Todos que acompanham de há muito o blog sabem que os colaboradores estrelados são ressarcidos de seus préstimos via pro bono, isto é, traduzindo em uma linguagem mais clara, não recebem nada a não ser a projeção internacional e, às vezes, local de sua peculiar abordagem temática.

A estrutura do Conselho Editorial, também estabelecida dentro do rigor do Código de Ética, não contempla nenhuma posição de comando institucional o que faculta, aos editores, uma liberdade de produção que beira à libertinagem. Isto é, cada um escreve aquilo e quando bem lhe interessa.

Sabemos de sobra que democracia sem liderança não traz bons resultados.

Contrariando minha disposição procurei alguns dos principais editores para conversar e procurar entender o que poderia estar acontecendo. Melhor seria se eu estivesse ficado no meu canto cuidando apenas daquilo que me cabe.

O primeiro com quem falei, o editor de política, me deu náuseas. Acometido por uma sonolência demoníaca ruminou algumas sentenças desprovidas de sentido lógico para dizer que seu último texto INSTÂNCIA já teria sido suficiente para que os leitores entendessem o seu estágio.

- “Entreguei prá Deus, esta porra!” foi o que grunhiu.

E voltou-se para a TV.

- “Você já assistiu esta merda”?

- “House of cards? Sim.” De fato vi até agora parte da série.

- “No segundo episódio há uma cena em que o deputado se depara na calçada com um cidadão protestando, vai até ele e pergunta se a besta não percebe que ninguém está ouvindo porra nenhuma do que grita. ‘Não quer que eles te levem para casa’? Pergunta referindo-se aos policiais que haviam algemado o cidadão em um poste”.

- “Daí?”

- “Quer que eu mastigue? Vá à merda”!

Foi o suficiente para eu deixar o colega com seus olhos postos na TV e cuspindo seus marimbondos vermelhos.

Com o editor de Artes foi lacônico. O cara, quase sempre amargurado, estava transbólico. Não me perguntem o que vem a ser transbólico, porque exatamente o meu colega visitado é quem saberia dizer alguma coisa a respeito. E ele, na conversa de pouco mais de treze minutos, limitou-se à:

- “Tô sem interesse”...

Acreditei que poderia com o ficcionista obter melhor acolhida. Fui recebido calorosamente e quando lhe perguntei se estava produzindo ele me disse que a realidade já teria suplantado qualquer estória que se possa inventar.

- “As pessoas não encontram nas estórias algo que as prenda mais do que lhe contam dos fatos do cotidiano. Observar e viver o que se passa tornou-se muito mais interessante, dramático, aventureiro e adrenalítico do que qualquer conto ou romance, peça de teatro, filme, que tais”.

Capitulado e sem saber o que fazer para energizar o blog, embora não tenha a menor responsabilidade por isto contemplada no Termo de Compromissos Editoriais, recebo em casa o velho, avô babão, aquele que tenta através de suas historinhas marotas com seus netinhos desimportantes dizer qualquer coisa.

- “Pô, cara, num vejo a hora”?

- “De quê”?

- “Falei com Noninha no face ontem e ela me disse para eu levar muita roupa de frio e botas.”

O velho babão embarca para Lages – SC amanhã para a primeira visita aos netos que se foram em mudança com os pais há coisa de uns vinte e poucos dias, sei lá.

- “E os daqui”?

- “Antônio começa a falar e Helena, por favor, não espalhe, está maravilhosa”!

- “Vê se traz alguma estorinha bacana”... Apelei.

É, este blog agoniza.



Até breve.

sábado, 6 de agosto de 2016

CLAMOR



Talvez não caiba paralelo. Talvez seja mesmo esdruxulo. Talvez desproporcional. Mas faço. A passagem de um poetinha regional e o evento esplendoroso da abertura das Olimpíadas.

Onde cabem? No singelo e no extraordinário.

Vander Lee foi um letrista menor, de passagem no universo de tantas massas. Tem, no entanto, uma importância porque em vinte anos de carreira, nove produções, tentou deixar sua voz.

Viver como um menino, morrer poeta.

A cerimônia foi assim, pequena e exuberante. Sem nenhum reparo, nenhum desdém, nenhuma crítica que possa refutá-la, antes pelo contrário. Penso que nenhuma outra manifestação artística possa traduzir de forma tão ampla a brasilidade.

Acho que nem para aqueles que a conceberam tinham tanto. Foram fazendo, crendo uma gambiarra, como é próprio da nossa desimportância. Mas não, sofisticadíssima aparelhagem tecnológica com enredo e cadência primorosa deram às três horas de espetáculo um vigor incomparável a outras cerimônias passadas.

Matamos a pau. Assim com nossas idiossincrasias, nossas mazelas, nossa preocupação de estar fazendo o que devíamos fazer. Os diretores, em entrevistas, confessaram a preocupação da partida, quando poderiam ser vaiados.

Como?

Todos, seguramente todos, ficamos pasmos com tamanho esplendor. A gente brasileira vazou por todos seus poros e ritmos no imenso palco do monumental estádio anfitrião.

Fomos divinos. Perdeu importância o momento presente e conclamamos o mundo a refletir fundo no futuro. O que está em jogo não são nossas crises paroquiais, há uma crise infinitamente mais grave para a qual deveríamos centrar nossa preocupação.

A Vida, toda Ela, está em risco.

Ontem confesso que passei o dia sobre fina emoção. A notícia pela manhã da perda de Vander Lee e ter assistido a cerimônia de abertura foi bravo. Por que Vander Lee?

Sabe o que eu queria agora, meu bem?
Sair, chegar lá fora e encontrar alguém
Que não me dissesse nada
Não me perguntasse nada também

Que me oferecesse um colo ou um ombro
Onde eu desaguasse todo desengano
Mas a vida anda louca
As pessoas andam tristes
Meus amigos são amigos de ninguém

Sabe o que eu mais quero agora, meu amor?
Morar no interior do meu interior
Pra entender porque se agridem
Se empurram pro abismo
Se debatem, se combatem sem saber

Meu amor
Deixa eu chorar até cansar
Me leve pra qualquer lugar
Aonde Deus possa me ouvir

Minha dor
Eu não consigo compreender
Eu quero algo pra beber
Me deixe aqui, pode sair
Adeus.




Até breve.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

PIRAR



Quem deve acender a pira?

Evento inédito na América do Sul desde o advento da festa grega e, provavelmente, durante muitos e muitos anos ainda assim permanecerá.

Já disse inúmeras vezes da minha paixão por futebol e, como eu, qualquer um apaixonado pela pelota escolheria Pelé, inquestionavelmente. Atleta do Século XX.

Guga, sem dúvida uma grande escolha, até porque considerado pelo colega que ocupa atualmente o primeiro lugar no ranking, como o mais carismático tenista do mundo. Tri em Roland Garros.

Acho que os demais cogitados não se aplicam.

Por mim, entretanto, o COI convidaria o primeiro ilustre desconhecido transeunte que passasse na hora de acender a pira.

Penso que seria a melhor representação de bilhões de atletas que diuturnamente disputam os poli pentatlos da prova de sobrevivência.

Muitos até por uma mísera "sobra" de comida. Outros, mais favorecidos, por um resto de dignidade.

E, uma vez tendo acendido a pira, o cidadão desaparecesse. A mídia lhe daria o direito de continuar anônimo.




Até breve.

À posteriori: Fiquei muito feliz com a escolha de Wanderlei, mas continuo achando que a pira do povo poderia ter sido acesa por um transeunte.





terça-feira, 2 de agosto de 2016

NEWS



“Como opinar sobre um mundo tão fragmentado? Temos de nos contentar com narrativas parciais. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, artistas e pensadores vivem perplexos – não sabem o que filmar, escrever, formular.”

“... a busca de profundidade foi substituída por um vale-tudo formal em que a inteligência é substituída pela sacralização das irrelevâncias massificadas.”

Arnaldo Jabor em crônica publicada hoje no Estadão.

Pois é.

Desconhecer passa a ser a grande sacada, acompanhada por não opinar sobre nada e nem ninguém.

- Viu o que aconteceu ontem em...?

- Não.

- Como não?

- Não vi.

- Mas todo mundo viu e só se fala nisso...

- Hum...

- Você não se importa?

- Com quê?

- Com o que aconteceu ontem em...

- Não vi.

- Deveria ter visto.

- Hum...

- Como você consegue ficar tão alheia...

- A quê?

- Ao que está acontecendo, ora!

- Hum...

- Você não está bem, precisa procurar ajuda, um analista talvez... Sua alienação está me preocupando...

- Não se preocupe.

- Você não se interessa por nada, não quer saber de nada, não opina sobre nada... Nada... Nada...

- Opinar sobre?

- O que está acontecendo, caramba!

- Vamos conversar, então...

- Pois é, trocar ideias sobre as coisas, as pessoas, interessar-se...

- Tudo bem.

- Então?

- Então o quê?

- Não vai falar sobre o que está acontecendo?

- Luana Piovani ficou puta com a notícia que está se separando de Scooby.

- Puxa vida! Até que enfim um pouco de normalidade...




Até breve.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

PUPUQUINHA





- Vovô...

- O que é, Liz?

- Você é maluco?

- Eu?

- É que eu ouvi as duas conversando...

- As duas?

- Eu estava na sala brincando e a mamãe e a vovó estavam conversando na cozinha...

- Você anda ouvindo as conversas dos outros, Liz?

- E num pode?

- Podê num pode não, mas é legal né?

- Aí a mamãe disse que tá preocupada com as histórias malucas que você conta prá mim.

- Histórias?

- É, e aí ela perguntou prá vovó se isso podia ser ruim prá mim.

- E a vovó falou o que?

- Um monte que eu não entendi nada.

- De qual história a mamãe falou?

- A do balão.

- É que ela não viaja mais comigo...

- Mamãe já viajou com você num balão, vovô?!!!

- Muitas vezes, quando ela era pequena que nem você.

- Você me leva?

- Onde?

- Para passear em um balão, ora.

- Claro.

- Mesmo?!!! Que dia?!!!

- Quinta-feira.

- Falta muito?

- Passa rapidinho.

- Mas onde está o balão?

- Lá em cima na laje da sauna do sítio. Você já viu uma janelinha da casa que fica em frente ao pé de lichia?

- Sei.

- Pois é, ele fica guardado lá.

- Eu posso levar o papai e a mamãe?

- Claro.

- A vovó vai?

- Se você quiser que ela vá...

- Ela é demorona, né?

- Você acha?

- Vai querer passar uns batonzinhos na hora que o balão tiver saindo... KKKKKK...

- A gente fala com ela que nós vamos sair uma hora mais cedo.
- Mamãe falou que a gente num pode mentir.

- Mas não é mentira. É que o relógio da vovó anda sempre atrasado uma hora.

- Então tá. Eu posso levar todo mundo?

- Quem você quiser, eu já disse.

- Zuca... Laka...

- Pode.

- Matilde... Claudionor...

- Pode.

- Eu vou de mochila.

- Tá bom.

- Com meu tênis de luzinhas...

- Ótimo.

- A gente vai ver estrela?

- Só se anoitecer.

- Então eu vou levar casaco.

- Isso a vovó leva prá você.

- E repelente prá mosquito?

- Vovó leva.

- E creminho para o rosto?

- Vovó leva também.

- Deve ser por isso que ela atrasa sempre, né vovô?

- Pode ser.

- Eu vou pegar um monte de estrelas e trazer na minha mochila para eu por no meu quarto.

- E o que mais?

- Lá na lua tem umas pedrinhas que brilham, sabe vovô?

- Num tinha visto.

- Pois é, umas pedrinhas que brilham que eu vou trazer para por lá na minha casinha do sítio.

- E o que mais?

- Um buraco.

- Um buraco?!!!

- É... Pro Claudionor.

- Onde você vai colocar o buraco?

- Lá atrás da casa do sítio onde ele gosta sempre de ficar...

- Liz?

- O que foi, vovô?

- Você é maluca?

- Eu?

- É que eu ouvi as duas conversando...

- Duas?

- Eu estava na sala assistindo futebol na televisão e ouvi a sua mãe e sua avó conversando na cozinha...

- Você anda ouvindo as conversas dos outros, vovô?

- E num pode?

- Podê num pode, mas é legal né?


Estorinhas que escrevi para Noninha antes de ela nascer. Hoje ela está completando quatro aninhos. Ela está longe. Mudou-se junto com Valentin, o papai e a mamãe para Lages-SC. 

De saudades, num consegui escrever nada. Deu um nó na garganta.