quinta-feira, 10 de setembro de 2015

ÁPICE



A criança síria me fez calar. Minha visão, mais do que a fala, viveu estes dias obnubilada e inibiu a verve compulsiva de vir às letras. O atual é tão avassalador que nenhuma notícia, nem imagem, nenhum fato causa. Tudo sucumbe à efeméride.

Traduzindo, a Vida sucumbe.

Há alguns dias enunciei aqui uma fala do pensador francês Alain Badiou em que ele coloca que a realidade apresenta-se travestida de complexidade, mas a vida continua simples.

Não consigo caminhar por este raciocínio. Está cada vez mais complexo ir ao simples. Penso que estamos diante de um ciclo agudo e ímpar de transformações. E elas se dão no cerne daquilo que convencionamos chamar de Instituições.

Família, direito e propriedade são pressupostos da liberdade de cada indivíduo, instituições que, paradoxalmente, determinam o ser humano em seu nível mais íntimo e o mantém sobre tutela.

Instituições é o elemento fundamental para que seja possível a expressão do humano. Elas nos livram de nossa essência bárbara, nos protegem de nós mesmos. A liberdade só se torna possível sob a égide das instituições. Para Kant “as instituições estão a serviço da proteção da liberdade”.

Ocorre que, no entanto, há evidências e cada vez mais contundentes de uma generalizada fragilidade do arcabouço institucional. Por qualquer ângulo que se procura colocar uma lente, observam-se contornos de uma crise preocupante.

A Democracia, por exemplo, esse pacto que assegura a nossa existência social e cotidiana e desvela a argamassa que, a cada instante, nos impede de desabar. Mas, com isso, paradoxalmente, vemos ruírem um a um todos os personagens competentes que garantem o negócio da administração da Vida.

O Território, de que nos apropriamos por força de onde termos nascido e nos constituirmos por força dele. Circula na rede um vídeo de uma jovem inglesa que em visita à sua cidade natal se depara com uma passeata de muçulmanos. Ela aborda alguns dos manifestantes que bradam que todos que não são muçulmanos devem queimar nos infernos. Ela tenta argumentar que eles não têm o direito de se expressarem daquela forma na cidade onde ela nasceu, como se a ela e exclusivamente à ela pertencesse aquele lugar.

Ou, ainda, esse imenso fluxo dos novos bárbaros, esses mais de sessenta milhões de refugiados (segundo dados de ONGs internacionais) migrantes impelidos por cruéis conflitos armados, fome, epidemias e outra série de iniquidades.

A quem pertence a abundância, a liberdade, o direito à vida digna?

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no último capitulo (Convívio destruído) de seu livro Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos (*), escreveu:

“A unidade da espécie humana postulada por Kant pode ser, como ele sugeria, compatível com a intenção da Natureza, mas certamente não parece algo ‘historicamente determinado’. O continuado descontrole da rede já global de dependência mútua e de vulnerabilidade reciprocamente assegurada decerto não aumenta a chance de se alcançar tal unidade. Isso só significa, contudo, que em nenhuma outra época a intensa busca por humanidade comum, assim como a prática que segue tal pressuposto, foi tão urgente e imperativa como agora.
Na era da globalização, a causa e a política da humanidade compartilhada enfrentam a mais decisiva de todas as fases que já atravessaram em sua longa história.”

O Amor, esta Instituição fundante do Humano, agora líquido, sobreviverá?


Até breve.

(*) Bauman, Zygmunt, 1925 – Amor líquido:sobre a fragilidade dos laços humanos; tradução de Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

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