A criança síria me fez calar. Minha
visão, mais do que a fala, viveu estes dias obnubilada e inibiu a verve
compulsiva de vir às letras. O atual é tão avassalador que nenhuma notícia, nem
imagem, nenhum fato causa. Tudo sucumbe à efeméride.
Traduzindo, a Vida sucumbe.
Há alguns dias enunciei aqui uma
fala do pensador francês Alain Badiou em que ele coloca que a realidade
apresenta-se travestida de complexidade, mas a vida continua simples.
Não consigo caminhar por este raciocínio.
Está cada vez mais complexo ir ao simples. Penso que estamos diante de um ciclo
agudo e ímpar de transformações. E elas se dão no cerne daquilo que
convencionamos chamar de Instituições.
Família, direito e propriedade são
pressupostos da liberdade de cada indivíduo, instituições que, paradoxalmente,
determinam o ser humano em seu nível mais íntimo e o mantém sobre tutela.
Instituições é o elemento fundamental
para que seja possível a expressão do humano. Elas nos livram de nossa essência
bárbara, nos protegem de nós mesmos. A liberdade só se torna possível sob a
égide das instituições. Para Kant “as instituições estão a serviço da proteção
da liberdade”.
Ocorre que, no entanto, há
evidências e cada vez mais contundentes de uma generalizada fragilidade do
arcabouço institucional. Por qualquer ângulo que se procura colocar uma lente,
observam-se contornos de uma crise preocupante.
A Democracia, por exemplo, esse
pacto que assegura a nossa existência social e cotidiana e desvela a argamassa
que, a cada instante, nos impede de desabar. Mas, com isso, paradoxalmente,
vemos ruírem um a um todos os personagens competentes que garantem o negócio da
administração da Vida.
O Território, de que nos
apropriamos por força de onde termos nascido e nos constituirmos por força
dele. Circula na rede um vídeo de uma jovem inglesa que em visita à sua cidade
natal se depara com uma passeata de muçulmanos. Ela aborda alguns dos
manifestantes que bradam que todos que não são muçulmanos devem queimar nos
infernos. Ela tenta argumentar que eles não têm o direito de se
expressarem daquela forma na cidade onde ela nasceu, como se a ela e
exclusivamente à ela pertencesse aquele lugar.
Ou, ainda, esse imenso fluxo dos novos
bárbaros, esses mais de sessenta milhões de refugiados (segundo dados de ONGs internacionais)
migrantes impelidos por cruéis conflitos armados, fome, epidemias e outra série
de iniquidades.
A quem pertence a abundância, a
liberdade, o direito à vida digna?
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
no último capitulo (Convívio destruído) de seu livro Amor Líquido – Sobre a
fragilidade dos laços humanos (*), escreveu:
“A unidade da espécie humana
postulada por Kant pode ser, como ele sugeria, compatível com a intenção da
Natureza, mas certamente não parece algo ‘historicamente determinado’. O
continuado descontrole da rede já global de dependência mútua e de
vulnerabilidade reciprocamente assegurada decerto não aumenta a chance de se
alcançar tal unidade. Isso só significa, contudo, que em nenhuma outra época a
intensa busca por humanidade comum, assim como a prática que segue tal
pressuposto, foi tão urgente e imperativa como agora.
Na era da globalização, a causa e
a política da humanidade compartilhada enfrentam a mais decisiva de todas as
fases que já atravessaram em sua longa história.”
O Amor, esta Instituição fundante
do Humano, agora líquido, sobreviverá?
Até breve.
(*) Bauman, Zygmunt, 1925 – Amor líquido:sobre
a fragilidade dos laços humanos; tradução de Carlos Alberto Medeiros – Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.
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