Estou só.
No silêncio da biblioteca, eu
penso.
A vida barulha ali fora, a procura
de destinos. Retorno da labuta, para descansos. Caminhos para o noturno, de
aulas, ainda.
Penso no que nos tornamos a todos.
Pela culpa, ou pela dívida, adoradores do vil metal que nos assola de manhã à
noite, da primavera ao inverno, do nascimento ao túmulo, o tempo todo.
Culto sem trégua e sem piedade.
Fomos perdendo as fragrâncias, as
cores, os ritmos, as dores, fomos idolatrando o oco do vazio, do avesso às
relações duradouras, das conversas de fim de tarde nos portões das moradias.
Escodemo-nos.
Tudo gira em torno de operar a subvivência,
como se nós transmutamo-nos todos em meios de produção. E só.
Bilhões, zilhões, quilhões, tulhões,
percentos, porcentos, trocentos, taxas, índices, cifras, números, validades,
temporalidades, escassez, retração, suspensão, pensão, exclusão, tarifários,
medidas demoníacas.
E toda a culpa naquele, agora naquela,
que nos governa.
Fosse possível, o diagnóstico mais
provável seria de aguda esquizofrenia social coletiva. Delirium tremens.
Não há sequer manicômios, hospitais
psiquiátricos para nos diferenciar de outros que, no passado cinzento,
nomeávamos como dementes, débeis mentais. O hospício abriu suas portas para as
ruas e entramos todos por todas elas.
Vias insanas. Urbes neurotizantes,
corredores aos berros. Drama.
Nem Deus apocalipsa.
Nem Sua Ausência ou seu opositor.
O Homem já não é capaz de um
Iluminismo que rompa o cinza, medievalidades transmodernas. Nenhuma arte é
capaz de humanizar, tudo sólido se desmancha telúricamente em um ar poluído.
Fosse possível, quem sabe um
Cazuza, morto há exato um quarto de século. Mesmo que em fragmentos.
“Canibais de nós mesmos
Antes que a terra nos coma
Cem gramas, sem dramas
Por que que a gente é assim?”
“Ninguém vai nos perdoar
Nosso crime não compensa.”
“Nas noites de frio é melhor nem
nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar
ou morrer.”
“E ser artista no nosso convivio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente nem vive
Transformar o tédio em melodia.”
“Você logo acha que a vida voltou
ao normal
Aquela vida sem sentido, volta sem
perigo
É a mesma vida sempre igual.”
“De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no
caminho
Que é escuro e frio, mas também
bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há
minutos atrás.”
“Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem
eu sou.”
Até breve.
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