sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

QUAL O SEU NOME AMOR?



Um amigo, de quem não se lembra mais, o convidou para completar uma quebradeira.  Ou seja, ele, o amigo e duas garotas. Nada melhor, porque era sexta-feira e sábado se dorme, às vezes, até domingo para segunda, bem cedo, se aceitar o basquete. A garota que sobrou para ele era ela. Mais jovem menos sofrida e com maquiagem carregada, unhas dos pés e das mãos com esmaltes de cores estranhas, saia justíssima, blusa fina que lhe deixava os seios a mostra.

Disse que se chamava Ronaldo e ela, já no final da aventura, apresentou-se como Beatriz. Tinha um rosto bonito, dois olhos que alternava verde ou azul, dependendo da intensidade da luz, debaixo de sobrancelhas negras bem aparadas, um nariz bem feito e cabelos encaracolados, longos e espessos. 

Quando saía do motel ele propôs continuarem juntos por mais algumas horas, ele lúcido e ela, sem a maquiagem, topou. Estacionou o carro próximo a uma praça, por onde circulavam pessoas fazendo sua caminhada matinal. Ela se sentou num banco da praça, debaixo de uma árvore que lhes proporcionava extensa sombra, e ele deitou a cabeça sobre o seu colo. Ela lhe perguntou se ele havia falhado com mulheres outras vezes. À tarde, ela lhe deu um beijo no queixo enquanto ele fitava com olhos perdidos o movimento dos carros sobre um viaduto. Pouco depois, ela disse adeus, atravessou a avenida, voltando-se de quando em vez.

Acreditava que não seria possível revê-la. Na segunda, no escritório, por força de intensas demandas, não pode sequer lembrar-se do final de semana. E assim foram as semanas seguintes. Corretor de imóveis, expediente interno pela manhã e visitas a clientes à tarde. Foi numa dessas visitas que reviu Beatriz. Ele foi visitar um cliente, investidor e interessado em um dos empreendimentos que ele tinha na sua carteira. O cliente a apresentou como sua secretária. Ela o cumprimentou, pediu licença, saiu da sala. Terminada a reunião esperava estar com ela na antessala, mas não, ela já havia deixado o escritório. Desde lá, viveu com a mulher a lhe martelar o sorriso.

Numa noite, jogava boliche e bebia vodca, alguém se aproxima por trás tapa-lhe os olhos: quem sou eu?  Ninguém menos do que ela, os olhos de um imenso azul sob as negras sobrancelhas, e apresentou-se como Angélica. Estiveram por instantes no bar. Ele lhe serviu um drink e jogaram uma partida, vencida por ele. Sorriam muito, principalmente ele, saíram de mãos dadas numa ternura de adolescentes. Foi ele que disse pouco menos do que o necessário. O silêncio tinha nomeado bastante durante todo o tempo da ausência. Pela troca do nome, ele não via como rimar seus poemas de vodca, feitos no retorno das madrugadas, em maços de cigarros. Zanzaram pela cidade e, ainda que não se falassem, alguma coisa os unia o tempo todo. Vez por outra ele tentava se justificar pela magreza, pelo rosto afunilado, que ela não conhecera assim, pelo excesso de vodca a penetrar-lhe agora os olhos avermelhados e açoitados por estranha tristeza. Passava das duas horas da madrugada e ele a convidou para ir para a sua casa. Quando abria a porta ele a abraçou, deu-lhe um beijo terno na boca, e disse que se chamava Alfredo. Ela sorriu e beijou-lhe, também na boca, profissionalmente. Em silêncio deitaram-se ainda vestidos na cama. Ele a abraçou e pediu que ela se aproximasse um pouco mais. Ela ficou de pé e lentamente, com os olhos de um verde intenso, sob as negras sobrancelhas, fixos nos dele, despiu-se. Depois, lhe acariciando devagar por todo o corpo, tirou-lhe cada peça de roupa.

Somente foi o bastante para advir meses e desejos latentes. Ela era dele e tão dele que já ficava em casa, às vezes, até mesmo com os olhos postos na TV. Ele parecia mais um desses idiotas que não via a hora de fechar o batente para voltar imediatamente para casa. Valia à pena, isso é certo. Ela o recebia na porta, com abraço e beijo, feitos na primeira noite. Ele falava do dia exaustivo e tumultuado do mundo dos negócios imobiliários. Que estava cansado e farto e que belo dia largaria tudo e iria para um monte.

Uma noite, convidou Beatriz para ir a um cinema. Ela disse estar cansada e não aceitou. Ele insistiu, ela irredutível. Ele disse que então iria sozinho, ela reclama que não é certo. Não é certo por quê? Você me deixar aqui sozinha. De outra vez foi por um vestido, apertado e decotado, deixando os seios à mostra. Mulher minha não anda assim. Mas é de uma grife famosa... Ela tirou o vestido e o deu para uma amiga.

Daí ele se excede na vodca, no boliche, nos amigos. Nas horas noturnas. Em casa discutiam, ora por uma coisa, ora por outra. E os abraços e beijos da tarde eram tão raros quanto o sexo bem feito à noite. Ela lhe falava das ausências, do descaso e alguma irresponsabilidade dele, da falta de carinho para com ela. Ele reclama da falta de compreensão, da falta do botão na camisa azul de listas finas pretas, do café muito fraco...

Dias inteiros sem se falarem, noites muitas sem se tocarem. Esse amor escoando-se com uma fincada aqui dentro. As ofensas mútuas, as ameaças descabidas e o sexo voltando a não ser exclusivo entre eles. As novas mulheres e os novos homens a demandarem algum resto deles mesmos ou fontes de prazer. E eles se entregando a outros pela falta do contato à moda de um rio de sede.

Até que um dia, ela saiu de casa, altas horas da noite, com ele a dormir. Depois, passadas longas semanas a encontrou deitada na cama, parecendo exausta. Como se a ausência tivesse marcado novamente o que se não era novo era renascido, aproximou-se dela repleto e cansado de vodca, beijou-lhe do lado esquerdo do rosto. Ela acordou e olhou ternamente para ele. Ele gritou vagabunda e lhe desferiu um violento murro que a lançou fora da cama, prostrando no chão com sangue no canto da boca, e dos olhos, sob as negras sobrancelhas, emanava uma terrível cor cinzenta. Canalha, animal. Ela pegou o pequeno aparelho de som e jogou em direção a ele, depois o vidro vermelho de perfume, até que ele a agarrou e lhe deu um pontapé decisivo no ventre.

Ela passou dois dias no hospital e ele preso aguardando decisão da Justiça, foi liberado algumas semanas depois. Perdeu a mulher, o emprego, o pequeno aparelho de som e o vidro vermelho de perfume. Voltou ao boliche, reencontrou a vodca, amigos que lhe reconfortaram dizendo que mulheres são foda.

Não se falou mais em Beatriz. Nem em Angélica. Esteve com outras mulheres e em outros lugares. Mudou de emprego algumas vezes. Comprou novo aparelho de som e não via muita razão para se perfumar. Uma noite, no entanto, em casa, depois de um banho demorado, foi à cozinha e preparou um sanduíche. Pegou uma cerveja na geladeira e, na sala, sentou-se no sofá e lentamente bebeu a cerveja enquanto dava pequenas mordidas no sanduíche. Pensa na solidão que o habita. Crê que a mulher ainda lhe pertence. A tristeza fininha vem lhe tomando conta e só não chora porque não sabe.
Saiu às ruas, a procura dela. Procurou a amiga, deixando-lhe um bilhete. Procurou o ex-cliente investidor, onde ficou sabendo que ela já não trabalhava ali e não tinham o paradeiro. Quem era aquela mulher? O que era aquela mulher? Por que martelar tanto e como nunca, o coração? Com quantas mulheres já estivera, e quantas o procuram ainda... Mas por que essa mulher? Beatriz ou será Angélica?

Numa noite de muito calor, ele voltou mais cedo. Chegando em casa, foi direto para o banheiro, tomou uma ducha fria, enxugou-se e foi para o quarto envolto na toalha presa na cintura. Joga a toalha na cama e, antes de vestir um short, a ouve dizer, entrando no quarto, que já havia lhe pedido para não colocar a toalha molhada sobre a cama. Ele pergunta secamente como ela entrara, e ela responde que ainda tinha as chaves de casa. Depois se aproximou dele e disse que embora a sua vontade fora a de não vê-lo mais, por diversas vezes rondara a casa com o desejo de entrar e só não o fizera ainda por receio de como seria recebida. Ela diz que o ama, ele dá de ombros e vai novamente ao banheiro. Quando volta ao quarto encontra-a na cama, nua. O vestido e as peças íntimas sobre a pequena poltrona do lado esquerda da cama, como de costume.

Ontem e amanhã se falará de cortes, ministérios, bolsas de valores, copas do mundo e olimpíadas, grandes empreendimentos, casas de chá e miséria, guerras, terrorismo, terremotos, vulcões, desabamentos e inundações, assaltos e crimes hediondos, drogas e contravenções várias, corrupção e celebridades. Falar-se-á que o coração humano não é de músculos, mas de uma pelezinha que se arrebenta ao toque de um clarim, e a saudade é uma falta em todos os rostos. Que a felicidade é um bebedouro onde os homens escarram por não saberem a sua exata finalidade. Que há estudiosos preocupados com algo que assola a humanidade, essa pasteurização de pensamentos, que petrifica e arrasa a essência do cérebro, tornando-o um coágulo de fios nervosos, à moda de um processador eletrônico.


Mas a verdade é que, ontem mesmo, deitada sobre os seus braços, fitou-o com seus olhos agora num infinito azul, sob as negras sobrancelhas, pediu perdão e disse se chamar Jane e que, dentro de alguns meses, seria mãe.

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