Um amigo, de quem não se lembra
mais, o convidou para completar uma quebradeira. Ou seja, ele, o amigo e duas garotas. Nada
melhor, porque era sexta-feira e sábado se dorme, às vezes, até domingo para
segunda, bem cedo, se aceitar o basquete. A garota que sobrou para ele era ela.
Mais jovem menos sofrida e com maquiagem carregada, unhas dos pés e das mãos
com esmaltes de cores estranhas, saia justíssima, blusa fina que lhe deixava os
seios a mostra.
Disse que se chamava Ronaldo e ela,
já no final da aventura, apresentou-se como Beatriz. Tinha um rosto bonito,
dois olhos que alternava verde ou azul, dependendo da intensidade da luz,
debaixo de sobrancelhas negras bem aparadas, um nariz bem feito e cabelos
encaracolados, longos e espessos.
Quando saía do motel ele propôs continuarem
juntos por mais algumas horas, ele lúcido e ela, sem a maquiagem, topou.
Estacionou o carro próximo a uma praça, por onde circulavam pessoas fazendo sua
caminhada matinal. Ela se sentou num banco da praça, debaixo de uma árvore que
lhes proporcionava extensa sombra, e ele deitou a cabeça sobre o seu colo. Ela
lhe perguntou se ele havia falhado com mulheres outras vezes. À tarde, ela lhe
deu um beijo no queixo enquanto ele fitava com olhos perdidos o movimento dos
carros sobre um viaduto. Pouco depois, ela disse adeus, atravessou a avenida,
voltando-se de quando em vez.
Acreditava que não seria possível
revê-la. Na segunda, no escritório, por força de intensas demandas, não pode
sequer lembrar-se do final de semana. E assim foram as semanas seguintes.
Corretor de imóveis, expediente interno pela manhã e visitas a clientes à
tarde. Foi numa dessas visitas que reviu Beatriz. Ele foi visitar um cliente,
investidor e interessado em um dos empreendimentos que ele tinha na sua
carteira. O cliente a apresentou como sua secretária. Ela o cumprimentou, pediu
licença, saiu da sala. Terminada a reunião esperava estar com ela na antessala,
mas não, ela já havia deixado o escritório. Desde lá, viveu com a mulher a lhe
martelar o sorriso.
Numa noite, jogava boliche e bebia vodca,
alguém se aproxima por trás tapa-lhe os olhos: quem sou eu? Ninguém menos do que ela, os olhos de um
imenso azul sob as negras sobrancelhas, e apresentou-se como Angélica.
Estiveram por instantes no bar. Ele lhe serviu um drink e jogaram uma partida,
vencida por ele. Sorriam muito, principalmente ele, saíram de mãos dadas numa
ternura de adolescentes. Foi ele que disse pouco menos do que o necessário. O
silêncio tinha nomeado bastante durante todo o tempo da ausência. Pela troca do
nome, ele não via como rimar seus poemas de vodca, feitos no retorno das
madrugadas, em maços de cigarros. Zanzaram pela cidade e, ainda que não se
falassem, alguma coisa os unia o tempo todo. Vez por outra ele tentava se
justificar pela magreza, pelo rosto afunilado, que ela não conhecera assim,
pelo excesso de vodca a penetrar-lhe agora os olhos avermelhados e açoitados
por estranha tristeza. Passava das duas horas da madrugada e ele a convidou
para ir para a sua casa. Quando abria a porta ele a abraçou, deu-lhe um beijo
terno na boca, e disse que se chamava Alfredo. Ela sorriu e beijou-lhe, também
na boca, profissionalmente. Em silêncio deitaram-se ainda vestidos na cama. Ele
a abraçou e pediu que ela se aproximasse um pouco mais. Ela ficou de pé e
lentamente, com os olhos de um verde intenso, sob as negras sobrancelhas, fixos
nos dele, despiu-se. Depois, lhe acariciando devagar por todo o corpo,
tirou-lhe cada peça de roupa.
Somente foi o bastante para advir
meses e desejos latentes. Ela era dele e tão dele que já ficava em casa, às
vezes, até mesmo com os olhos postos na TV. Ele parecia mais um desses idiotas
que não via a hora de fechar o batente para voltar imediatamente para casa.
Valia à pena, isso é certo. Ela o recebia na porta, com abraço e beijo, feitos
na primeira noite. Ele falava do dia exaustivo e tumultuado do mundo dos
negócios imobiliários. Que estava cansado e farto e que belo dia largaria tudo
e iria para um monte.
Uma noite, convidou Beatriz para ir
a um cinema. Ela disse estar cansada e não aceitou. Ele insistiu, ela
irredutível. Ele disse que então iria sozinho, ela reclama que não é certo. Não
é certo por quê? Você me deixar aqui sozinha. De outra vez foi por um vestido,
apertado e decotado, deixando os seios à mostra. Mulher minha não anda assim.
Mas é de uma grife famosa... Ela tirou o vestido e o deu para uma amiga.
Daí ele se excede na vodca, no
boliche, nos amigos. Nas horas noturnas. Em casa discutiam, ora por uma coisa,
ora por outra. E os abraços e beijos da tarde eram tão raros quanto o sexo bem
feito à noite. Ela lhe falava das ausências, do descaso e alguma
irresponsabilidade dele, da falta de carinho para com ela. Ele reclama da falta
de compreensão, da falta do botão na camisa azul de listas finas pretas, do
café muito fraco...
Dias inteiros sem se falarem,
noites muitas sem se tocarem. Esse amor escoando-se com uma fincada aqui
dentro. As ofensas mútuas, as ameaças descabidas e o sexo voltando a não ser
exclusivo entre eles. As novas mulheres e os novos homens a demandarem algum
resto deles mesmos ou fontes de prazer. E eles se entregando a outros pela
falta do contato à moda de um rio de sede.
Até que um dia, ela saiu de casa,
altas horas da noite, com ele a dormir. Depois, passadas longas semanas a
encontrou deitada na cama, parecendo exausta. Como se a ausência tivesse
marcado novamente o que se não era novo era renascido, aproximou-se dela
repleto e cansado de vodca, beijou-lhe do lado esquerdo do rosto. Ela acordou e
olhou ternamente para ele. Ele gritou vagabunda e lhe desferiu um violento murro
que a lançou fora da cama, prostrando no chão com sangue no canto da boca, e
dos olhos, sob as negras sobrancelhas, emanava uma terrível cor cinzenta.
Canalha, animal. Ela pegou o pequeno aparelho de som e jogou em direção a ele,
depois o vidro vermelho de perfume, até que ele a agarrou e lhe deu um pontapé
decisivo no ventre.
Ela passou dois dias no hospital e
ele preso aguardando decisão da Justiça, foi liberado algumas semanas depois.
Perdeu a mulher, o emprego, o pequeno aparelho de som e o vidro vermelho de
perfume. Voltou ao boliche, reencontrou a vodca, amigos que lhe reconfortaram
dizendo que mulheres são foda.
Não se falou mais em Beatriz. Nem
em Angélica. Esteve com outras mulheres e em outros lugares. Mudou de emprego
algumas vezes. Comprou novo aparelho de som e não via muita razão para se
perfumar. Uma noite, no entanto, em casa, depois de um banho demorado, foi à
cozinha e preparou um sanduíche. Pegou uma cerveja na geladeira e, na sala,
sentou-se no sofá e lentamente bebeu a cerveja enquanto dava pequenas mordidas
no sanduíche. Pensa na solidão que o habita. Crê que a mulher ainda lhe
pertence. A tristeza fininha vem lhe tomando conta e só não chora porque não
sabe.
Saiu às ruas, a procura dela.
Procurou a amiga, deixando-lhe um bilhete. Procurou o ex-cliente investidor,
onde ficou sabendo que ela já não trabalhava ali e não tinham o paradeiro. Quem
era aquela mulher? O que era aquela mulher? Por que martelar tanto e como
nunca, o coração? Com quantas mulheres já estivera, e quantas o procuram
ainda... Mas por que essa mulher? Beatriz ou será Angélica?
Numa noite de muito calor, ele
voltou mais cedo. Chegando em casa, foi direto para o banheiro, tomou uma ducha
fria, enxugou-se e foi para o quarto envolto na toalha presa na cintura. Joga a
toalha na cama e, antes de vestir um short, a ouve dizer, entrando no quarto,
que já havia lhe pedido para não colocar a toalha molhada sobre a cama. Ele
pergunta secamente como ela entrara, e ela responde que ainda tinha as chaves
de casa. Depois se aproximou dele e disse que embora a sua vontade fora a de
não vê-lo mais, por diversas vezes rondara a casa com o desejo de entrar e só
não o fizera ainda por receio de como seria recebida. Ela diz que o ama, ele dá
de ombros e vai novamente ao banheiro. Quando volta ao quarto encontra-a na
cama, nua. O vestido e as peças íntimas sobre a pequena poltrona do lado
esquerda da cama, como de costume.
Ontem e amanhã se falará de cortes,
ministérios, bolsas de valores, copas do mundo e olimpíadas, grandes
empreendimentos, casas de chá e miséria, guerras, terrorismo, terremotos,
vulcões, desabamentos e inundações, assaltos e crimes hediondos, drogas e
contravenções várias, corrupção e celebridades. Falar-se-á que o coração humano
não é de músculos, mas de uma pelezinha que se arrebenta ao toque de um clarim,
e a saudade é uma falta em todos os rostos. Que a felicidade é um bebedouro
onde os homens escarram por não saberem a sua exata finalidade. Que há
estudiosos preocupados com algo que assola a humanidade, essa pasteurização de
pensamentos, que petrifica e arrasa a essência do cérebro, tornando-o um
coágulo de fios nervosos, à moda de um processador eletrônico.
Mas a verdade é que, ontem mesmo,
deitada sobre os seus braços, fitou-o com seus olhos agora num infinito azul,
sob as negras sobrancelhas, pediu perdão e disse se chamar Jane e que, dentro
de alguns meses, seria mãe.
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