quarta-feira, 19 de novembro de 2014

TRAMA



Estive, ontem, em companhia de treze outras pessoas em um jantar-cabeça. Seguinte: eu e mais três afins convidamos outros dez incautos para um papo tipo: e então? Todos acionistas e/ou presidentes de empresas que têm algo a dizer e estão dispostos a fazer alguma coisa.

O quê?

O local foi no recém-inaugurado Restaurante ALMA CHEF de propriedade do Felipe, jovem pupilo do Alex Atala e que cozinhou com o mestre no DOM durante três anos. Felipe contribuiu com o papo de forma expressiva. Pedi a ele que nos trouxesse uma palavra com a qual pudesse resumir a demanda. Ele disse que ia pensar e que antes de irmos embora ele nos diria.

No último número da Revista Cult(*) há uma entrevista do filósofo franco-argelino Jacques Rancière na qual ele declara: “Democracia quer dizer o poder daqueles que não têm nenhum título para exercer o poder. Em um certo sentido, esse poder é o próprio fundamento da política. Mas é desse fundamento que os poderes existentes sempre se utilizam para reprimi-la”.

E segue: “O fato fundamental é o crescimento da distância entre as decisões estatais e o controle popular. O sistema eleitoral tornou-se cada vez mais um simples modo de reprodução de uma classe de políticos profissionais, assessorados por especialistas totalmente alheios ao qualquer controle popular”.

“Os movimentos de rua recentes certamente revigoraram a ideia de democracia no que ela tem de específica: ideia de um poder dos anônimos como tais e a distância entre esse poder dos anônimos e o ‘poder do povo’ incorporado no Estado. Os slogans indignados (como ‘Vocês não nos representam’) são, nesse sentido, exemplares. Não é simplesmente uma denúncia voltada para os deputados que fazem mal o próprio trabalho. É a afirmação que a potência do povo e dos anônimos não se representa, que ela excede necessariamente a representação de tais ou tais grupos ou destes e daqueles interesses. A maneira como esses movimentos começaram é, nesse sentido, significativa. Existe aí uma experimentação de novas maneiras de se reunir e de estar junto, novas maneiras de se fazer povo à distância do jogo estatal.”

“Filósofos e sociólogos começaram a nos explicar que o conteúdo real da democracia é o poder dos indivíduos na sociedade de massa, e que a liberdade e a igualdade que esses indivíduos reivindicam eram direitos de consumidores egoístas, em todos os mercados e de todos os prazeres. Essa busca frenética de igualdade de prazeres pelos indivíduos democráticos teria o mesmo resultado que a busca, pelos comunistas, da igualdade coletiva. Ela seria, também, um novo princípio de totalitarismo que, para satisfazer a paixão narcísica do ‘indivíduo democrático’, arruína todas as formas tradicionais de relações sociais e humanas: família, religião, comunidade política, etc. A ironia da coisa é que, evidentemente, essas críticas encontraram o protótipo desses consumidores liberados naqueles que têm menos a consumir: os operários lutando por seus empregos ou os jovens desassistidos da periferia.”

E complementa: “O que nós chamamos de democracia representativa não é simplesmente um governo oligárquico mascarado por uma aparência democrática. É um governo contraditório, fundado sobre a dupla legitimidade (a do poder de todos e a do poder daqueles que “sabem” gerir o negócio coletivo). Isso quer dizer que se deve deixar um espaço para o exercício de um outro ‘poder do povo’, esse poder dos anônimos que excede as formas estatais de representação. A questão então é saber se é possível construir formas duradouras de exercício autônomo desse poder, de instâncias populares que tenham formas autônomas de informação, discussão, decisão e ação: formas de existência diferentes portanto daquelas dos partidos, estruturados para a tomada do poder, seja por um partido parlamentar ou pela organização revolucionária tradicional. Esta é a questão posta por todos os movimentos recentes que procuraram não apenas ocupar o espaço público, mas recriar uma vida democrática que tem seus órgãos autônomos, suas formas de vida própria em todos os setores.”
Saí ontem do jantar com um sentimento que há um espaço propício para a instalação de novos mecanismos de se fazer povo como foi manifesto por mais de um dos participantes: “Apesar do governo”.

Não sabemos como e nem exatamente o quê, mas já agendamos outro jantar que será próximo e no mesmo local. A principio, com os mesmos convidados de ontem.

Quando nos despedíamos encontrei-me com Felipe, o Chef, e pedi a ele a palavra síntese:

- Humanização.


Até breve.

EM TEMPO: Recebi de um dos participantes do jantar um vídeo que ajuda na reflexão:ZARAGOZA

(*)Vocês não nos representam – A democracia é o poder do povo que excede as formas institucionais, Revista Cult, Editora Bregantini, nº 196, novembro de 2014.

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