Ontem, no final da noite, recebi a
ligação de uma pessoa aflita. A voz alterada eletronicamente não me permitiu
identificar se era um homem ou uma mulher, jovem ou idosa. A pessoa estava aos
gritos.
Pensei em desligar logo que atendi
e supus tratar-se de um trote. Só que logo a pessoa foi dizendo que era de suma
importância que eu a ouvisse, que somente ela teria tido a coragem de me ligar
e me colocar a par de determinadas questões as quais, somente eu, poderia ser
capaz de dar curso.
Insisti para que ela, a pessoa, se
identificasse e que se não o fizesse eu desligaria. Ela respondeu que não havia
a menor importância em se apresentar como alguém em especial, especifico, com
nome, endereço, telefone e CPF, essas coisas.
O que fiz então foi me calar depois
de ter perguntado uma ou duas vezes se a pessoa queria falar era a mim mesmo.
Ela então reduziu sua aflição e, ainda que aos gritos, desordenadamente, continuou
apontando as questões que “somente eu
poderia dar curso”.
Peguei uma caneta e papel e, com
dificuldade, passei a anotar aquilo que ouvia de um só fôlego da atormentada
pessoa. Aos poucos, talvez por força do estridente som eletrônico da fala ou da
natureza de seu conteúdo, eu passei a me sentir como que se estivesse sob o
efeito reverso de anestesia, levando-me à intensa excitação.
Houve um momento, porém, que eu a
interrompi. “Espere, pare de falar por um
instante! Dê-me um tempo para pensar no que você acabou de dizer”. A pessoa
suspendeu imediatamente a fala e eu passei a ouvir somente a sua respiração
ofegante do outro lado da linha.
Quando ela voltou a falar estava,
como se estivesse se aliviado, mais serena e me pediu desculpas por estar me
abordando daquela forma. Pausada e muito mais clara do que fora até então fez
uma síntese do que havia dito e retomou a abordagem das questões.
A ligação deve ter durado hora e
meia com maior parte do tempo servida à pessoa. Eu fui de um momento inicial de
surpresa, passando por euforia, depressão, incredulidade, torpor, aceitação,
negação, piedade, revolta até que, abruptamente, a pessoa sem terminar uma
frase e sem se despedir, desligou.
Eu fiquei alguns minutos em estado
de catatonia pura com o olhar passeando sobre as linhas tortas das palavras que
consegui anotar. De repente senti meu corpo movimentar-se na poltrona, eu teria
estado durante todo o tempo da ligação com os músculos de tal maneira retesados
que ao me movimentar senti dores nas articulações.
Levantei-me com dificuldade, estendi
meus braços acima da cabeça e uni minhas mãos uma à outra tentando atingir o
teto. Fui ao banheiro social e me fitei no espelho. Abri a torneira da pia e
por diversas vezes banhei o meu rosto. Debrucei-me com as mãos postas sobre a
pia e permaneci assim - por um tempo, paralisado -, fitando-me no espelho.
Dirigi-me à cozinha, abri a porta
da geladeira, peguei a caixinha de suco de soja, sabor pêssego. Estendi uma das
bandas da janela e olhei em direção à rua. Vazia, silenciosa, erma.
Minutos depois eu estava em minha
cama. Dormi com a firme intenção de começar a tratar das questões que somente
eu poderei dar curso.
Até breve.
Bravo! Excelente!!
ResponderExcluirÉ porque não foi você que atendeu a ligação.
ExcluirBrigado!