quarta-feira, 27 de agosto de 2014

BORRACHO



“Na realidade o suborno sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, convenci-me de que o pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi rebeldes a resignados. Não se pode fazer nada, dizem as pessoas. Antigamente só usava de suborno aquele que queria conseguir algo ilícito. Até aí tudo bem. Agora aquele quer quer conseguir lícito também precisa subornar. E isso quer dizer confusão geral.

A resignação, porém, não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde, a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a célebre frase: ´Se os de cima levam o seu, eu também quero o meu´. Naturalmente o ex-resignado tem uma desculpa para a sua desonestidade: é a única forma para que os demais não levem vantagem. Diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque do contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e a cada passo mais se fechariam os caminhos retos a seguir. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir esta rota. Talvez seja também o mais bandido, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de honestidade.”

Este é um trecho do livro A trégua, publicado pela primeira vez em 1960 e que deu ao seu autor, o uruguaio Mário Benedetti, renome no cenário internacional das letras. Estava lendo-o quando decidi ir à padaria para comprar o lanche da tarde já que Pretinha estava em casa fazendo-nos uma visita.

Quando voltava da padaria, um bêbado me deteve no meio da rua. Não protestou contra o governo, nem disse que eu e ele éramos irmãos, nem tocou em nenhum dos inumeráveis temas da embriaguez universal. Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Me tomou pelo braço e disse, quase se apoiando em mim: “Sabe o que acontece com você? É que não vai a lugar nenhum”. 

À noite assisti ao debate dos presidenciáveis. Por volta da uma da madrugada, terminado o debate, fui dormir. Não sem antes de me lembrar da cena em que me encontrei com o bêbado na rua.

É que outro sujeito que passava naquele instante me olhou com uma alegre dose de compreensão e até me consagrou uma piscadela de solidariedade. Passadas sete horas do ocorrido eu me sentia intranquilo, como se realmente não fosse à parte alguma e somente naquela hora me houvesse inteirado disso.

Deve ter sido horrível viver no Uruguai nos idos de 1960.

Ou a trégua não passa de uma obra de ficção?



Até breve.

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