sábado, 30 de agosto de 2014

TREPADAOUTRA



Vou contar uma outra estória para vocês.

Era uma vez um reino e, por conseguinte, uma Rainha.

A Rainha tinha dois filhos, uma menina e um menino. Ocorre que, na verdade, somente o filho era legítimo. Uma outra menina, filha de uma vassala qualquer, foi colocada no berço logo depois da Rainha ter perdido a filha no parto. Ao nascer a criança, o Rei foi informado que se tratava de uma menina e reagiu violentamente aos gritos. “Eu queria um varão!” Constatada a morte prematura da criança que acabara de nascer a aia da Rainha tratou imediatamente de substituí-la por outra menina. “Majestade, assim o Rei acreditará que a senhora poderá ter outros filhos e que estes vingarão...” O menino nascera em um período de ausência do Rei que estava lutando pela manutenção do poderio do reino.

Enquanto o Rei esvaia-se em sangue à frente das batalhas, e nos intervalos participava de altos bacanais com mulheres trazidas a seu pedido, a Rainha se desdobrava para dar todo o carinho e atenção à filha, o que também lhe dava um alento. Não pela ausência do Rei. Mas pela paixão que nutria pelo cunhado, irmão mais novo do Rei, por quem desde a primeira vez que o viu quando chegou àquele reino trazida pelo pai, Rei de reino conquistado pelo futuro marido. O pior é que a Rainha era desesperadamente correspondida pelo cunhado.

Inúmeras vezes, especialmente durante as refeições, o cunhado a comia vorazmente com os olhos e ela se queimava toda. O Rei distante há meses. A cada refeição ela se acabando toda até que numa noite qualquer e apenas naquela noite, apareceu em pelo nos aposentos do cunhado.

Meses depois daquela noite, ao vesti-la, a aia pressentiu que algo crescia no ventre da Rainha. Sem dizer nada para sua Alteza tratou de contratar seis vassalos que à noite encapuzados entravam no castelo e iam, acompanhados pela aia, até próximo aos aposentos de Sua Majestade. Tratou de espalhar a notícia reino-a-fora de que inúmeros homens todas as noites iam estar nos aposentos para divertir a mulher dadivosa.

Para que os seis homens contratados não dessem com a língua nos dentes ameaçou-os de que, se isto acontecesse, ela mandaria cortar dois dos membros sexuais de todos eles.

Quando o Rei retornou do ciclo de batalhas não acreditou no que diziam fora do castelo. Quis saber da boca da própria esposa de quem era o filho. Uma Rainha diz. Ela confessou o imenso amor que nutria pelo irmão do Rei e que, em uma noite de demoníaca fragilidade da carne, teria ido ao encontro do amado.

“Quantas noites?” “Uma única noite, meu rei...” “Quantas vezes?” “A noite toda, meu rei...” “Ele é melhor do que eu?” “Por uma única vez, meu rei, não é possível comparar”...

A campanha recente de conquistas do Rei impunha que mandasse pessoas de sua maior confiança para que assumissem os reinos então conquistados. O Rei viu nisso uma oportunidade para resolver dois incômodos. A ocupação daqueles novos reinos e eliminar a possibilidade da Rainha ter outros momentos com o irmão para, afinal, encontrar parâmetros de comparação.

Poucos meses depois, quando retornava da missão o irmão do Rei foi vítima de uma emboscada. “Foi você que mandou mata-lo, covarde!” Teriam ouvido os serviçais os gritos da Rainha enquanto Sua Alteza quebrava todos os cristais de seus aposentos, arremessando-os contra o Rei.

Depois deste período o reino experimentou um longo tempo de paz, o que permitiu ao Rei ocupar-se integralmente com sua sucessão. Sim, porque não haveria de ser seu sucessor a menina, por razões óbvias. O menino estava fora absolutamente da parada. Mesmo que sendo seu sobrinho, o Rei optou pela crença de seus vassalos de que Sua Alteza não passava de uma vadia.

A Rainha entrou em depressão profunda, sem saber aquilatar o que mais a fazia sofrer. Se pela perda do amado ou se pela ausência do Rei na formação de seus filhos, isto é, de seu filho e de sua filha adotada.

Esta situação agravou-se ao extremo quando, anos depois, o Rei tomou a decisão de quem governaria o reino seria alguém escolhido pelo Povo. A Rainha, em desgraça, seria enxovalhada, senão queimada em praça pública como uma devassa. Na noite em que as ruas estavam repletas de alvoroço produzido pelos vassalos que se convertiam em Povo, a Rainha evadiu-se levando consigo o filho do cunhado do ex-rei e a filha de uma cidadã qualquer.

E assim foi o que se deu.

Há na História mineira - ou será estória? – um representante antológico da Política que dizia: “O que importa não são os fatos, mas a versão que se dão aos fatos”.

Qual será a da aia, e do cunhado? E a sua?

Até breve.


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

TREPADA



Vou contar uma estória para vocês.

Era uma vez um reino e, por conseguinte, um Rei.

O Rei tinha dois filhos, uma menina e um menino. Ocorre que, na verdade, somente a filha era legítima. O menino nascera em um período de ausência do Rei que estava lutando pela manutenção do poderio do reino.

Quando retornou aceitou o menino até porque, na época, as despesas – inclusive com aulas de inglês, futebol ou basquete, natação, reforço escolar, eram todas custeadas com recursos do reino, portanto, dos vassalos.

Enquanto o Rei esvaia-se em sangue à frente das batalhas, a Rainha preenchia seu tédio divertindo-se a valer com o que havia sobrado de homens que não foram deslocados para as fileiras do exército.

Depois deste período o reino experimentou um longo tempo de paz, o que permitiu ao Rei ocupar-se integralmente com sua sucessão. Sim, porque não haveria de ser seu sucessor a menina, por razões óbvias. O menino estava fora absolutamente da parada.

Rei é filho de Rei.

Portanto, o Rei saiu à caça daquele que, não tendo o seu sangue, deveria ter algo que pudesse compensar e de forma inquestionável esta prerrogativa. Até porque todos do reino sabiam que o menino não era filho do Rei e muito menos de quem era, já que a Rainha teria recebido à alcova zilhões de vassalos. Más línguas diziam que, também, vassalas.

Durante anos o Rei pesquisou, em todos os rincões do reino, aquele que poderia vir a ser, quando da sua falta, o seu sucessor. Entrevistou milhares de jovens de diferentes linhagens e, por mais que procurasse, não via em nenhum deles um Rei.

Recebeu inúmeros pedidos de mulheres, inclusive algumas integrantes do rol de celebridades, que fariam de um tudo por uma rapidinha conceptiva. O Rei, como todo Rei, negou.

De parentes, nem se fala, um horror. “Mas como? Ele é filho de seu primo, neto de seu tio?” Sem chance. Rei é filho direto de Rei.

A angustia, quase desespero, na medida em que o tempo passava e nada de encontrar seu sucessor, foi desgastando o Rei e as pesquisas de satisfação dos vassalos com sua governança apontavam índices preocupantes.

O Rei consultou assessores, especialmente aqueles que até então não haviam eles próprios se candidatado ao posto. Vários apontaram a solução mais óbvia, que o Rei tentasse outro filho com sua Rainha. Ocorre que, desde que retornara das batalhas e sabedor das estripulias gozosas de sua Rainha nunca mais pôs um olho sequer na mulher e muito menos outro membro indispensável à cópula.

Muito bem, pesquisado o reino, consultados os sábios de plantão, negados todos os pedidos pelas mais complexas e consistentes razões sob o juízo do Rei, afinal Ele concluiu por uma decisão imediatamente acatada por todos.

O Rei seria escolhido, em escrutínio direto, por todos os seus súditos. Para o Rei, doravante, o reino seria governado pelo Povo e para o Povo.

E assim foi o que se deu.

Alguns acreditam que nascia ali o que hoje se nomeia como a velha política ou, lembrando o Rei, questionam seus adversários na corrida pelo reino com o argumento de que governar não é para amadores.

“Ah, que saudade do Rei”, dizem outros.

Pobre do reino.



Até breve.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

HERMANA



Levantei hoje com um sentimento: eu não estou me cabendo em si.

Foi o que Rij nos disse depois de nos ouvir cantar, pelo celular, o parabéns pela sua data querida. Completa hoje seus sessenta anos e adentra, como eu já o fiz há quase três anos, o tempo para a colheita de nossos melhores ativos.

Rij é uma amiga.

O que pode ser a mais uma pessoa?

Dessas que dizem para nós aquilo que a gente quer, precisa, gostaria de ouvir. Dessas que dizem para nós aquilo que a gente preferiria, não gostaria, não precisaria ouvir. Dessas que nos olham nos olhos e é suficiente para saber quanto de seriedade, ternura, carinho e honestidade vem junto às palavras.

Dessas que nos ouvem com atenção, interesse e respeito.

Rij está misturada conosco e nossa família. Na história de cada um de nossos filhos estão incorporados trechos de dação que fizeram com que eles a nomeiem como tia.

Rij sabe de nós muito mais do que podemos imaginar e usa e abusa disso para nos fazer sempre no pouco, muito. Seus bordados, por exemplo. Seu humor, seu jeito de nos olhar, cuidando.

Talvez o que chegasse próximo do que possa dar conta de nossa relação seja o filme E se vivêssemos todos juntos? Mas não será necessária a arte para tentar dar conta. A gente sabe que ela mora ali, bem perto, sempre ao alcance do coração.

Não nos surpreende em nada que ela sinta que não caiba mesmo em si.

É a mais límpida, clara, singela e contundente verdade.

Rij nos transborda.

Querida: Todo o amor que tiver nessa Vida, seu principal ativo. Os trocados, para lhe dar garantia, como disse um de seus netos, deles você é rica demaaaiiiissss!!!



Até breve.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

BORRACHO



“Na realidade o suborno sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, convenci-me de que o pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi rebeldes a resignados. Não se pode fazer nada, dizem as pessoas. Antigamente só usava de suborno aquele que queria conseguir algo ilícito. Até aí tudo bem. Agora aquele quer quer conseguir lícito também precisa subornar. E isso quer dizer confusão geral.

A resignação, porém, não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde, a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a célebre frase: ´Se os de cima levam o seu, eu também quero o meu´. Naturalmente o ex-resignado tem uma desculpa para a sua desonestidade: é a única forma para que os demais não levem vantagem. Diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque do contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e a cada passo mais se fechariam os caminhos retos a seguir. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir esta rota. Talvez seja também o mais bandido, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de honestidade.”

Este é um trecho do livro A trégua, publicado pela primeira vez em 1960 e que deu ao seu autor, o uruguaio Mário Benedetti, renome no cenário internacional das letras. Estava lendo-o quando decidi ir à padaria para comprar o lanche da tarde já que Pretinha estava em casa fazendo-nos uma visita.

Quando voltava da padaria, um bêbado me deteve no meio da rua. Não protestou contra o governo, nem disse que eu e ele éramos irmãos, nem tocou em nenhum dos inumeráveis temas da embriaguez universal. Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Me tomou pelo braço e disse, quase se apoiando em mim: “Sabe o que acontece com você? É que não vai a lugar nenhum”. 

À noite assisti ao debate dos presidenciáveis. Por volta da uma da madrugada, terminado o debate, fui dormir. Não sem antes de me lembrar da cena em que me encontrei com o bêbado na rua.

É que outro sujeito que passava naquele instante me olhou com uma alegre dose de compreensão e até me consagrou uma piscadela de solidariedade. Passadas sete horas do ocorrido eu me sentia intranquilo, como se realmente não fosse à parte alguma e somente naquela hora me houvesse inteirado disso.

Deve ter sido horrível viver no Uruguai nos idos de 1960.

Ou a trégua não passa de uma obra de ficção?



Até breve.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

MICROFONIA



Ontem, no final da noite, recebi a ligação de uma pessoa aflita. A voz alterada eletronicamente não me permitiu identificar se era um homem ou uma mulher, jovem ou idosa. A pessoa estava aos gritos.

Pensei em desligar logo que atendi e supus tratar-se de um trote. Só que logo a pessoa foi dizendo que era de suma importância que eu a ouvisse, que somente ela teria tido a coragem de me ligar e me colocar a par de determinadas questões as quais, somente eu, poderia ser capaz de dar curso.

Insisti para que ela, a pessoa, se identificasse e que se não o fizesse eu desligaria. Ela respondeu que não havia a menor importância em se apresentar como alguém em especial, especifico, com nome, endereço, telefone e CPF, essas coisas.

O que fiz então foi me calar depois de ter perguntado uma ou duas vezes se a pessoa queria falar era a mim mesmo. Ela então reduziu sua aflição e, ainda que aos gritos, desordenadamente, continuou apontando as questões que “somente eu poderia dar curso”.

Peguei uma caneta e papel e, com dificuldade, passei a anotar aquilo que ouvia de um só fôlego da atormentada pessoa. Aos poucos, talvez por força do estridente som eletrônico da fala ou da natureza de seu conteúdo, eu passei a me sentir como que se estivesse sob o efeito reverso de anestesia, levando-me à intensa excitação.

Houve um momento, porém, que eu a interrompi. “Espere, pare de falar por um instante! Dê-me um tempo para pensar no que você acabou de dizer”. A pessoa suspendeu imediatamente a fala e eu passei a ouvir somente a sua respiração ofegante do outro lado da linha.

Quando ela voltou a falar estava, como se estivesse se aliviado, mais serena e me pediu desculpas por estar me abordando daquela forma. Pausada e muito mais clara do que fora até então fez uma síntese do que havia dito e retomou a abordagem das questões.

A ligação deve ter durado hora e meia com maior parte do tempo servida à pessoa. Eu fui de um momento inicial de surpresa, passando por euforia, depressão, incredulidade, torpor, aceitação, negação, piedade, revolta até que, abruptamente, a pessoa sem terminar uma frase e sem se despedir, desligou.

Eu fiquei alguns minutos em estado de catatonia pura com o olhar passeando sobre as linhas tortas das palavras que consegui anotar. De repente senti meu corpo movimentar-se na poltrona, eu teria estado durante todo o tempo da ligação com os músculos de tal maneira retesados que ao me movimentar senti dores nas articulações.

Levantei-me com dificuldade, estendi meus braços acima da cabeça e uni minhas mãos uma à outra tentando atingir o teto. Fui ao banheiro social e me fitei no espelho. Abri a torneira da pia e por diversas vezes banhei o meu rosto. Debrucei-me com as mãos postas sobre a pia e permaneci assim - por um tempo, paralisado -, fitando-me no espelho.

Dirigi-me à cozinha, abri a porta da geladeira, peguei a caixinha de suco de soja, sabor pêssego. Estendi uma das bandas da janela e olhei em direção à rua. Vazia, silenciosa, erma.

Minutos depois eu estava em minha cama. Dormi com a firme intenção de começar a tratar das questões que somente eu poderei dar curso.



Até breve. 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ADUBO



Por favor, vocês que estão aí deste lado. Peguem na terceira prateleira o recipiente de número JLAJ – 81.91.103.107.104. Tragam-no aqui e o coloquem sobre a bancada. Dentro daquele armário há folhas de cartolina branca, peguem, por favor, e coloquem uma delas aberta também sobre a bancada.

Fechem, por favor, todas as janelas e suas venezianas. Não convém que nenhum vento possa alvoroçar o que está dentro do recipiente.

Lavem suas mãos, depois as enxugue bem. Passe bastante talco e vistam as luvas que encontrarão naquela pequena gaveta da escrivaninha. Encontrarão também mascaras esterilizadas, por favor, as coloquem.

Agora se concentrem, por favor, no que vai se seguir.

Abram delicadamente o recipiente colocando-o sobre a folha de cartolina para que, se caso no abrir, alguma parte do conteúdo não possa se perder. Agora virem o recipiente para baixo e deixem que o conteúdo caia sobre a folha de cartolina. Batam levemente com as mãos sobre o fundo do recipiente e verifiquem que nada, nenhuma partícula por mais ínfima que seja do conteúdo ficou ali.

Deixem o conteúdo, por entre 23 e 27 minutos, do jeito que saiu do recipiente e caiu sobre a folha da cartolina. Passado este tempo comecem levemente, com apenas a mão direita, espalhar o conteúdo de tal sorte que cada partícula possa ficar absolutamente isolada, sem contato com nenhuma outra. Se necessário usem lupas. Ali naquele armário encontrarão algumas.

Sem pressa, por favor. Não há necessidade de construírem nenhum desenho ou forma específica, apenas cuidem para que cada partícula permaneça isolada. Tirem as luvas ao terminarem e as coloquem sobre a bancada fora da cartolina onde depositaram o conteúdo do recipiente com os eventuais fragmentos que se prenderam viradas para cima. Não tentem sacudir as luvas, ou mesmo, com a mão esquerda, tirar o conteúdo do recipiente que se prendeu lançando-o sobre a cartolina.

Lavem as mãos, joguem fora no cesto de lixo, as luvas e as mascaras esterilizadas. Deixem, por favor, o recinto e voltem aqui dentro de 30 minutos. Eu ficarei zelando para que ninguém bula e examinando, daqui, cada partícula deste novo formato sobre a cartolina branca.

Ao retornarem, caso me encontrem dormindo, não me acordem, esperem que eu mesmo desperte. Sobre a bancada encontrarão o relatório de análise de cada partícula, por favor, não o leiam em hipótese alguma. Coloquem as páginas escritas dentro do balde de alumínio que está naquele armário e as incinere. Peguem as cinzas das páginas do relatório e as misture com o conteúdo do recipiente distribuído sobre a folha de cartolina. Não antes de esperarem que esfriem as cinzas do balde.

Coloquem tudo novamente dentro do recipiente sem deixar perder nem uma partícula sequer. Voltem-no para a prateleira com o código virado para frente.

Quando meus entes queridos vierem buscá-lo digam que o meu desejo é que tudo se esvaeça sobre o solo de minha morada, terra onde, certa vez, disse que não retornaria nem de helicóptero.

Que assim seja.

É que Contardo Calligaris, em recente coluna na Folha, escreveu que somente há coisa de duzentos anos, os humanos deixaram de refletir sobre a finitude.



Até breve.

domingo, 24 de agosto de 2014

DESMELANCOLIR




Não é possível que não haja nada que valha a pena de presente. Não é possível ocupar corações e mentes só com perspectivas sombrias. Não é sã a suposição de que alguém possa se interessar pelo conjunto.

Já é passada a hora de um desligamento da agressiva vertente enviesada por uma praxis política denuncista, vazia, pedante e malvinda. Não é possível que não haja mesmo nada sobre o qual encantar-se o coração.

À luz do post anterior ficar, como a família Pig, que adora brincar na lama.

Basta!

Vamos desenhar um real azul de brigadeiro de chocolate pipocado de confeitos açucares. Vamos perder de vista o olhar esquêrdico, endireitar nosso campo de perspectiva e colocarmos ao gosto do prazer dos tempos que para esses a humanidade nunca teria atingido um ponto de desenvolvimento como o atual.

Por quê não abrir para um diário íntimo e agradecer a cada segundo as dádivas da Vida? Voltar a escrever viagens em balões, diálogos com Noninha, nascimentos de rebentos próximos. Camileta já gesta mais um. Outro dia mesmo a casa estava vazia, agora como diz Catarina, ela tem um amigo que se chama Agulhô, assim como se sobrenomearão um de seus priminhos.

Por quê?

Por quê não investir em tantos anos vividos em organizações de porte e setores os mais complexos e diversificados e deixar uma contribuição efetiva? Tantas teorias e instrumentos de gestão concebidos ao longo de uma carreira relativamente exitosa.

Por quê?

Por quê não comentar encontro com amigos queridos do presente e do passado como um Elias, lá pelos idos de 1974, há quarenta anos atrás portanto, e relembrar inúmeras noitadas de Drink Dreher e papos sobre a Vida. Estávamos em Alto Garças, Mato Grosso, empregados de uma empresa que construía uma estrada federal. Eu com os meus vinte e dois e ele próximo dos cinquenta anos de idade.

Ou com Dennis, Barreto e outros dos tempos da Fafich em que pelo olhar da música, da poesia ou da prosa iríamos inventar o novo.

Por quê não escrever um livro de romance doce? Compor uma canção? Fazer um verso? Um vídeo de Noninha fazendo Tim perder o fôlego às gargalhadas.

Por quê?

Algumas palavras, trechos de filme, pedaços de melodia, frases me marcaram indelevelmente por todos os meus dias. São essas tatuagens no meu espírito que ainda governam o meu estar.

Lembro, agora e sempre, de uma de Vladimir Maiakovisk:

"Minha mãe me pergunta como posso ser um revolucionário se não sou capaz de matar uma mosca. E eu a respondo: sou revolucionário porque luto por um tempo em que eu não tenha que matar uma mosca."

Ou como essa que ouço no Ipod, Clube da Esquina na voz de Milton:

"No claro do dia eu me encontrarei."



Até breve.

sábado, 23 de agosto de 2014

PEPPAR



Afinal o que quer a mídia? Toda ela, a impressa, a televisiva, a internética? O que quer? Transformar-nos a todos em sadomasôs? Perderam todos os escrúpulos por força da disputa por descérebros vulneráveis e/ou perversos?

Pornografia não é crime? A profusão de cenas explícitas de diferentes naturezas defloram retinas no cotidiano e formam caracteres doentios que nenhuma Santa Magra Igreja haverá de recuperar.

O que quer com isto afinal, a mídia?

No horário nobre, a campeã de audiência e de qualidade global, estampar integralmente o vídeo da jovem sendo agredida por uma cotovelada; a cena da criança de uns doze anos de idade do grupo de mais de um milhão de refugiados sendo alimentada pela mãe com uma tampa de garrafa de leite (neoPietá?); os rostos cândidos e juvenis de parte dos dez estupradores da jovem de Bauru?

Ou na internet a imensa variedade de cenas mais do que explícitas dos restos mortais das vítimas da queda do avião em Santos? A decapitação do jornalista americano?

O que quer com isto afinal, a mídia?

A cobertura completa da inauguração do Templo de Salomão da Igreja de todos os universos na capital paulista, construído ilegalmente sobre alvará de reforma e classificado como imóvel destinado à salão de eventos e que contou com a presença de autoridades estaduais e federais entre elas a da Presidenta? O que quer a mídia com esta cena de pornografia explícita exalando imagens contundentes de todos os cús?

Ou será tudo apenas o realzão?

Isto, então nos libera da sensação maldita de tirarmos gozo múltiplo e diário desta avalanche de cenas? A mídia apenas media e fica conosco a tarefa de trocarmos de canal?

Na programação de canais vamos senhar todos aqueles destinados aos noticiários, e jogar o código fora. Vamos acessar apenas a programação para os infantes. Assistir aquele da família de porcos.

Ronc... Ronc... Ronc...



Até breve.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

REDUNDO



“Ninguém quer mexer nas questões delicadas e profundas, porque isso afetaria o humor de todas as pessoas envolvidas, e provavelmente não para melhor. Porém, não dá mais para continuar guardando ressentimentos.

O grande perigo de perderes a capacidade de te indignar diante da ignomínia consiste em que também perderias a capacidade de te maravilhar diante dos espetáculos, objetivos e subjetivos, que a Vida te oferece. A sequência tão frequente de infâmias, pequenas e grandes, que o mundo anda produzindo acabou te anestesiando, pois existir em constante mau humor faz mal à saúde. O mal-estar é geral e ainda por cima há também as tuas questões particulares, que te fazem ficar de frente com verdades duras, reconhecimentos que não podem ser protelados. Cuida, então, para que te coração não se amargue, renova a confiança, recupera a capacidade de te maravilhar com pequenos assuntos, pois o dia em que teu coração se render à amargura terás dado o passo definitivo para te converteres naquilo que hoje desprezas.”

É de todo provável que nos reste resignar-se ou indignar-se. Ambos com efeitos inócuos na transformação da realidade objetiva. Resignar-me por força da consciência de que os fenômenos que constituem a ordem geral das coisas são de tal expressão que nada e nem ninguém será capaz de mudar o curso preocupante da História.

Indignar-me, além do impacto do mau humor á saúde, só servirá para afastar-me de eventuais amigos e leitores enfastiados com tanto denuncismo recorrente, pedante e exaustivo. Há quem já não acesse o dasletra por isto.

Abstrair-me destas questões e maravilhar-me com pequenos assuntos, como diariamente poder estar com meus netinhos, seria um bom caminho.

Escuto só dos nanicos, algo concreto. Privatizar empresas, como a Petrobras, mantendo o bem nobre (as reservas naturais) de propriedade da União. Taxar agressivamente a renda de pessoas com patrimônio superior a R$50 milhões e os lucros de bancos privados, com transferência imediata para riquezas econômicas e sociais, como infraestrutura, saúde, educação e segurança.

Efetividade na Justiça. Rapidez na apuração, penas curtas e detenções sumárias e exemplares. Construção de colônias produtivas para apenados que receberiam educação profissionalizante de qualidade e lições de empreendedorismo. Inclusão de crimes de desvios de verbas destinadas a programas sociais na categoria de crimes hediondos, portanto, sem direito a fiança, recursos ou embargos declaratórios e todo tipo de embromamentos jurídicos mais do que conhecidos.

Investimentos maciços em tecnologia e inovação com incentivo a descoberta e desenvolvimento de talentos em diferentes áreas do conhecimento e da ciência com programas de benchmark nas melhores escolas e centros de desenvolvimento do mundo.

Saúde preventiva com intensa ação sobre obras de saneamento básico e avançado, além de programas de educação alimentar, esportes para a criança e a juventude além de preparação para o envelhecimento.

Busca de parcerias internacionais para o desenvolvimento de ações efetivas no campo das relações diplomáticas em prol de mitigação nefasta de conflitos étnicos, religiosos, raciais e geográficos. Inserção da Nação na cena internacional como moderna e orientada à Vida.

Os nanicos não têm discurso político convencional porque sabem que ninguém os ouviria. Talvez por isto eles trazem estas propostas efetivas que poderiam ensaiar um processo real de enfrentamento das grandes questões do contemporâneo.

E a mim, com minha capacidade de maravilhar-me, o que resta? Noninha e suas bonecas que, enquanto escrevo este post, criançam sobre mim.

Um sentimento de que, há muito, só escrevo este post.




Até breve.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ETAPA



Misto de encantamento e preocupação. 

Assisti ontem a todos os programas eleitorais gratuitos na TV. Encantamento pelo perfil dos candidatos que se apresentam postulantes à Câmara de Deputados. Povo puro. Socorro Enfermeira, Chicão da Mecânica, Zezé dos Mendonça, e assim por diante.

Legal isso de, seja por sonho ou mesmo por paranoia, cair de cabeça, enfrentar todo tipo de restrição, botar uma graninha própria, filiar-se a um partido seja ele qual for, de idreologicia qualquer e estampar-se no vídeo. Vai que eu ganhe, tô com a vida arrumada.

Noutro patamar vêm os profissionais, que já estão no mercado e fazem parte do cassino há muitos mandatos. Apontam seus projetos aprovados pela Câmara com extraordinários impactos no vazio.

A ilusão democrática, a falácia da representação popular, o engodo de causa para além de interesses pessoais muitas vezes escusos, tudo isso junto é que me leva á preocupação.

Esta semana uma jovem de 17 anos foi estuprada por dez rapazes em Bauru. O médico famoso condenado a 278 anos de prisão foi detido ontem no Paraguai onde vivia com mulher e dois filhos. Nos EUA mais um negro foi morto pela polícia no Missouri. O Hamas recebe apoio financeiro para a reconstrução dos túneis destruídos pelos árabes.

A publicidade institucional nos convida à data mais importante de nossa vida. Muita gente já descarta de sua vida até a data mais importante. Por que será? Os eleitos serão pelos votos considerados válidos. Um país inteiro abdica-se de ir votar ou anula o seu próprio voto.

Um aparato legal, processual, administrativo, logístico, financeiro é montado para manter consolidado um imenso monstro ilusório que leva a milhões a cumprir o dever cívico de ir às urnas para ficar em dia com suas obrigações, embora saibam que nada acontecerá, de fato, depois disto.

Ou por outra, tudo mudará para ficar do mesmo jeito.

Se bem que segunda-feira Pretinha começou a tarefa de ajudar Noninha a deixar as fraldas.

Ela está fazendo um esforço enorme. Tem na escolinha a quem se espelhar. Quatro amiguinhas já passaram de fase.

Tim começa a sentar.

Tom cresce na barriguinha da mamãe que, junto ao papai, faz enxoval nas maiames.



Até breve.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

REVERBERAÇÃO



Terminei de ler Confissões de um Jovem Romancista de Umberto Eco que junto com Como Ler um Escritor de John Freeman ganhei do Vlad e da Fá como presente pelo dia dos pais.

Partindo da própria experiência como escritor, Eco examina as diferentes fases do processo criativo: preparativos, composição dos personagens, montagem da trama. Nos três primeiros ensaios, usa a ferramenta da semiótica para investigar questões relativas a uma teoria da leitura.

O primeiro se dedica especialmente a responder à pergunta “Como você escreve seus romances?”; o segundo examina como, e por que, interpretam-se textos – e revela, em anedotas, os caminhos incrivelmente excêntricos por onde alguns de seus leitores enveredam ao tentar interpretar os seus livros. O terceiro investiga o mundo criado pela ficção – o universo narrativo, eficaz a ponto de iludir o leitor, levando-o a esquecer de que não está no chamado “mundo real”.

Erudição pura do ensaísta e professor de linguística e semiótica, um dos intelectuais que deram rosto ao século XX.

Eco classifica os autores em dois grupos e os leitores também. Há os escritores modelo e os escritores empíricos e, da mesma forma, os leitores modelo e os leitores empíricos.

Os escritores modelo são pesquisadores, como ele próprio, para construírem suas obras. Antes de debruçarem sobre a pele nua das páginas, eles empreendem profunda pesquisa de cenários, datas, lugares, cronologias, ligações históricas e são rigorosos na exatidão de suas construções prosaicas. Eles terão leitores modelo que, controladores, os julgarão por tudo isto.

Os escritores empíricos podem até a vir pesquisar algo, mas sem o rigor dos escritores modelo. Despem-se de suas próprias construções fantásticas e não têm a menor preocupação com a exatidão ou coerência do conteúdo de sua prosa. Assim, leitores empíricos os lerão, muitos crendo que tudo narrado corresponde até aos fatos do real.

Acadêmico fervoroso, Eco demorou muito para poder escrever seu primeiro romance, julgava que escrever obras de ficção poderia lhe colocar em situação difícil perante os seus colegas.

O Nome da Rosa, seu primeiro romance escrito quando ele já tinha cinquenta anos de idade, é um texto carregado de referências, citações, pesquisas profundas, preparativos que dispenderam dois anos de intensos estudos. Uma engenharia e precisão de relógio suíço.

Não acredito que Vlad e nem Fá tenham lido o livro e que o presente tenha alguma razão específica e direta para me dar um toque. Não. Acho que ambos ora são leitores modelo, ora são leitores empíricos.

O que para mim significa que tenho algum espaço em suas leituras.



Até breve.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

ORÁCOLHAR



Agora vejam vocês. O destino, muitas vezes, escreve torto por linhas difusas. O coração de nós, brasileiros, pensa com muito mais pragmatismo do que sonha nossa vã filosofia.

A lágrima vertida meio assim do nada denota que algo está para nos encaminhar alguma decisão, muito mais refletida do que possa imaginar qualquer analista de contexto macro.

Se sentirmos algo vindo do mais fundo de nossa alma é porque faz sentido e provavelmente quer nos dizer que é puraí que devemos embrenhar nosso caminhar. E não é por pouco, sensibilidade comanda muito mais do que racionalidade, mesmo que fundada.

Os primeiros movimentos da classe, mesmo antes do líder descer os sete palmos, desenham a viúva como vice. Na linha abordada acima é pura sacada, mesmo que denunciada como marqueteira.

Seja lá como for, ninguém ficará imune à tragédia real e, depois, a mulher é brava auditora do TCE de Pernambuco. Não é uma dondoca e muito menos uma senhora fina do lar que materna seus cinco rebentos.

A família já resolveu para o partido.

Testado pelo meu sentimentômetro vai dar trabalho. Duas mulheres na cabeça de chapa é tudo que jamais poder-se-ia imaginar. Uma pela vida da natureza e outra pela vida dos ideais do querido marido de olhos azuis. Nitroglicerina pura.

Semana que vem, quando o corpo descer à final morada, se não for antes, já haverá comoção engendrada para que seja possível a manutenção e realização do propósitos do líder.

Afinal um cartaz novo em cena. E que script! Se isto será bom para o país, para o mercado, para a inflação, para o desenvolvimento?

Ora, quem está verdadeiramente preocupado com isto?

Eu, por mim, estou doido para começarem os programas eleitorais na TV. Estou precisando chorar e a partir daí iluminar minhas decisões.




Até breve.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

CAMPO


O acidente contempla ingredientes suficientes para classificá-lo como uma imensa tragédia. Um jovem de 49 anos completos no último domingo – Dia dos Pais – deixa órfãos cinco FILHOS o mais novo com oito meses portador da Síndrome de Down.

Miguel foi batizado com o mesmo nome do avô, líder histórico, principal referência para a construção dos ideais daquele que foi vitimado hoje junto a quatro assessores e dois profissionais da aviação.

Tragédia como esta nos faz duvidar dos desígnios na medida em que nos limita ao lamento e, para os mais próximos, a incomensurável dor.



Até breve.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

ROBIN



“Booommm Diiiiaaaa, Vietnã!!!!”

Concluí a leitura do livro de Cristiane Correa, Sonho Grande(*). Nele a competente jornalista descreve o que foi considerado um marco do capitalismo brasileiro, que serviu – e serve – de inspiração até hoje para diversas empresas.

Trata-se da ação de três banqueiros brasileiros que deram a sua primeira tacada na economia real em 1982, com a compra da Lojas Americanas. Menos de uma década depois, em 1989, foi a vez da cervejaria Brahma.

Em seguida arquitetaram a maior fusão que o Brasil havia visto até então, da Brahma com a Antarctica, criando a Ambev; a internacionalização que deu origem à InBev e, por fim, a tão sonhada compra da Anheuser-Busch, criando a AB InBev, a maior cervejaria do mundo.

Nos últimos anos, ainda se tornaram donos de outros dois ícones americanos: a rede mundial de lanchonetes Burger King, presente em quase oitenta países, e a marca de alimentos Heinz.

Simbólico um trecho do livro quando a jornalista descreve uma passagem de um dos protagonistas. Ele e seu companheiro de pescaria navegavam pela América Central quando o empresário começou a sentir um incômodo na região do abdômen. O mal foi diagnosticado por um médico nos Estados Unidos. O banqueiro tinha uma doença rara, porfíria, que consiste em uma espécie de envenenamento progressivo do sangue.


Lendo a Revista Cult (nº 193 deste mês) deparei-me com um poema, prá mim definitivo, do poeta e psicanalista paulista Lu Tomé.



A Sociedade pode estar, mas os poetas não estão mortos.

Há suspeitas de que, no caso do ator, depois de crises de alcoolismo e depressão, tenha sido suicídio.



Até breve.

(*) Sonho grande / Cristiane Correa; Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

FILHOS



Lembram de que meses atrás eu inventei de fazer uma seleção de cem posts, publicar livros com perspectivas de disputar o Nobel de Literatura de 2042 e irmos busca-lo em Oslo, eu vestido como uma libélula?

Pois é, até agora deu em nada aquele projeto.

Estou achando mais fácil tornar-me libélula do que editar livros e quando completar meus noventa anos ser reconhecido internacionalmente pelo gigantismo de minha obra.

No fundo, de certa forma, isso traduz um pouco do que, depois dos sessenta, eu tenho pensado e me ocupado. Tô pouco me lixando para compromissos de qualquer ordem, inclusive este de natureza intelectual.

Chutei o balde, literalmente. Tem também desilusão, mas é sobretudo por uma questão de escolha.

Segunda-feira assisti o Juca de Oliveira no Roda Viva. Ele está beirando oitenta anos e encenando, sozinho no palco, O Rei Lear, de Shakespeare. Em dado trecho do programa Juca diz de forma taxativa que nunca, jamais, em tempo algum um pai deve passar em vida o seu patrimônio para seus filhos, sob pena de, quando idoso, ser lançado por eles em asilo ou, como é chamado hoje, Casa de Repouso.  

A que ponto chegamos na questão de valores.

Não vou disputar Prêmios Nobeis de coisa alguma! Imaginem eu com noventa anos caquético e débil, todo ornado em libélulas vestes adentrando uma casa de repouso de periferia com minha plaquinha de Oslo e meus filhos e netos, claro, saindo dali todos em suas BMWs ou Naksumas de tetos solares e com destinos programados em computadores de bordo conquistados com minha polpuda herança.

Sem chance!

Vou continuar acreditando que o legado já está constituído, e a imortalidade do autor está nas escolhas de suas crias, independentemente quanto de valor autorizado pelo vil metal elas tenham amealhado ou conquistado.

A obra está posta.

E só por força desse privilégio hoje posso me ocupar de questões outras. Meus filhos me proporcionam a tranquilidade de poder pensar para além de meu seio familiar, enquanto ocupação ou preocupação.

Posso pensar e escrever sobre algo que me transcende, sobre mundos outros que me acometem, questões que me indignam ou que me angustiam. Posso pensar e escrever sobre o que se passa para além de nós mesmos, ocupando-me de Sírias, Iraques, Áfricas e/ou políticas e outras mazelas nacionais.

É que Vlad estará viajando no domingo e, por força disto, hoje à noite, meus filhos vão fazer um jantar em minha homenagem na casa de Pretinha para comemorar o Dia dos Pais.

Deles eu já tenho minha plaquinha. Minha herança já está neles.




Até breve.