quinta-feira, 19 de junho de 2014

BOLA



Meu coração ficou triste, ontem.

Fui acometido entre os oito e os doze anos de idade (de maneira mais intensa, eu acho) por algo que me consumia sem saciar, que me tirou de todos os outros olhares e só queria que eu vivesse para ela.

Todos os meus pés descalços que andaram por ruas, também fugiram para gramados batidos de terra em terrenos baldios, campinhos de araques, ruas e ladeiras de pedra Pé de Moleque. Deixaram marcas indeléveis de dores e dores pelos tampos dos dedos ensanguentados cobertos de terra. Como herança ficaram unhas encravadas (dos dedões) porque não tiveram nunca oportunidade de crescer.

No dia seguinte eu estava lá à caça dela para correr-lhe atrás. Em que pesem as circunstâncias da época especialmente de minha zelosa mãe que me tentava impedir de todas as formas que eu fosse dragado pela paixão.

Já relatei isto aqui em outros posts, lembro apenas que entre os instrumentos de repressão havia o de me colocar vestidos de minhas irmãs para que eu não evadisse. Perdi aí a grande oportunidade de ser mais doce.

Desvencilhei-me de tudo e caí de quatro apaixonado intensa e desesperadamente. Passava horas nas ruas, procurando minhas turmas para jogar todas as peladas que pudessem haver no bairro.

Jogava bem, sei porque observava ao redor outros meninos comentarem ou mesmo adultos e sei deles porque o pé esquerdo na bola, um olho no gol e outro na iminente aproximação de minha querida mãe. Ela nunca conseguiu me pegar.

Ao final das tardes, início de noite, exausto ia embora por força de senha que minhas irmãs me levavam: “Mamãe vai te matar!”.

Foi essa paixão que vi ressuscitar em mim trazida por esta geração de meninos, não sem razão, patrícios de meus avós. Esses meninos que nos últimos anos ganharam pelos seus clubes ou pela Seleção Espanhola tudo e em todo lugar: local, regional, continental e mundial.

Esses meninos de coração valente.

Mel Gibson ganhou com este filme um Oscar, desbancando o magistral e, até então, desconhecido ator Massimo Troisi, do filme O Carteiro e o Poeta. Para quem não sabe: o Carteiro nunca existiu na história real do poeta chileno Pablo Neruda. Foi peça de ficção brilhantemente urdida pelo autor do livro Antônio Skármeta que inspirou o diretor Michael Radford à realização do filme.

Troisi faleceu um dia após o término das filmagens sem ter visto o filme editado, certo talvez de ter realizado seu grande sonho em vida: fazer algo que ficasse.

Isso é Paixão.

Foram irmãos nossos continentais, os chilenos, os algozes. Com uma alegria marota, meia louca, meia peladeira, governada por um careca baixinho argentino esses meninos enlouqueceram os quatros cantos do campo e demoliram uma Época.

Hoje derrotados amanhã voltarão a vencer, provavelmente, mas não acredito que os mesmos tornem a fazer o que já nos proporcionaram. Um ou outro, talvez. É pedir muito aos Deuses que já cumpriram seu papel.

Sim, porque estes garotos não são apenas eles, são todos aqueles que sabem o que é o futebol, o que é visceralmente o futebol, como uma poesia de Neruda. Esse é o lugar dos verdadeiros deuses, o da representação dos que padecem e sangram da mesma loucura.

Loucura inexplicável, inesquecícel, irrepreensível, magistral, perfeita traduzida pelo gol do menino australiano no segundo gol contra a Holanda. Meu coração disparou mais na hora. De madrugada acordei eufórico: eu fiz um gol exatamente igual no Clube Bom Pastor de Juiz de Fora. Quando saí de campo vieram, em tom de zombaria, querer beijar minhas chuteiras.

Benditos vocês todos meninos senhores da paixão que nos governa no mais fundo de nós; vocês que, como o poeta, vieram para nos embriagar de Alegria e Fascínio.

Trouxe da casa de Santiago de Pablo Neruda, transformada em Museu, um cartaz que mantenho fixado na parede da sacada que dá acesso ao meu quarto da casa de Santa Luzia.

ODA A LA ALEGRIA
...
No se sorprenda nadie porque quiero
entregar a los hombres,
los dones de la tierra,
porque aprendi luchando
que es mi deber terrestre
propagar la alegria.

Amanhece e o meu coração hoje é capaz de desviar o olhar e se colocar em outra direção. Hoje, Noninha vai inaugurar a pia com água instalada e saída encanada de sua casinha. Quero viver a experiência cada segundo como se fosse eu o autor do gol.



Até breve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário