Meu coração ficou triste, ontem.
Fui acometido entre os oito e os
doze anos de idade (de maneira mais intensa, eu acho) por algo que me consumia
sem saciar, que me tirou de todos os outros olhares e só queria que eu vivesse
para ela.
Todos os meus pés descalços que
andaram por ruas, também fugiram para gramados batidos de terra em terrenos
baldios, campinhos de araques, ruas e ladeiras de pedra Pé de Moleque. Deixaram
marcas indeléveis de dores e dores pelos tampos dos dedos ensanguentados cobertos
de terra. Como herança ficaram unhas encravadas (dos dedões) porque não tiveram
nunca oportunidade de crescer.
No dia seguinte eu estava lá à caça
dela para correr-lhe atrás. Em que pesem as circunstâncias da época
especialmente de minha zelosa mãe que me tentava impedir de todas as formas que
eu fosse dragado pela paixão.
Já relatei isto aqui em outros posts, lembro
apenas que entre os instrumentos de repressão havia o de me colocar vestidos de
minhas irmãs para que eu não evadisse. Perdi aí a grande oportunidade de ser
mais doce.
Desvencilhei-me de tudo e caí de
quatro apaixonado intensa e desesperadamente. Passava horas nas ruas,
procurando minhas turmas para jogar todas as peladas que pudessem haver no
bairro.
Jogava bem, sei porque observava ao
redor outros meninos comentarem ou mesmo adultos e sei deles porque o pé
esquerdo na bola, um olho no gol e outro na iminente aproximação de minha
querida mãe. Ela nunca conseguiu me pegar.
Ao final das tardes, início de
noite, exausto ia embora por força de senha que minhas irmãs me levavam: “Mamãe
vai te matar!”.
Foi essa paixão que vi ressuscitar
em mim trazida por esta geração de meninos, não sem razão, patrícios de meus avós.
Esses meninos que nos últimos anos ganharam pelos seus clubes ou pela Seleção
Espanhola tudo e em todo lugar: local, regional, continental e mundial.
Esses meninos de coração valente.
Mel Gibson ganhou com este filme um
Oscar, desbancando o magistral e, até então, desconhecido ator Massimo Troisi,
do filme O Carteiro e o Poeta. Para quem não sabe: o Carteiro nunca existiu na
história real do poeta chileno Pablo Neruda. Foi peça de ficção brilhantemente urdida
pelo autor do livro Antônio Skármeta que inspirou o diretor Michael Radford à realização
do filme.
Troisi faleceu um dia após o
término das filmagens sem ter visto o filme editado, certo talvez de ter
realizado seu grande sonho em vida: fazer algo que ficasse.
Isso é Paixão.
Foram irmãos nossos continentais,
os chilenos, os algozes. Com uma alegria marota, meia louca, meia peladeira,
governada por um careca baixinho argentino esses meninos enlouqueceram os
quatros cantos do campo e demoliram uma Época.
Hoje derrotados amanhã voltarão a
vencer, provavelmente, mas não acredito que os mesmos tornem a fazer o que já nos
proporcionaram. Um ou outro, talvez. É pedir muito aos Deuses que já cumpriram
seu papel.
Sim, porque estes garotos não são
apenas eles, são todos aqueles que sabem o que é o futebol, o que é
visceralmente o futebol, como uma poesia de Neruda. Esse é o lugar dos
verdadeiros deuses, o da representação dos que padecem e sangram da mesma
loucura.
Loucura inexplicável, inesquecícel,
irrepreensível, magistral, perfeita traduzida pelo gol do menino australiano no
segundo gol contra a Holanda. Meu coração disparou mais na hora. De madrugada
acordei eufórico: eu fiz um gol exatamente igual no Clube Bom Pastor de Juiz de
Fora. Quando saí de campo vieram, em tom de zombaria, querer beijar minhas
chuteiras.
Benditos vocês todos meninos
senhores da paixão que nos governa no mais fundo de nós; vocês que, como o
poeta, vieram para nos embriagar de Alegria e Fascínio.
Trouxe da casa de Santiago de Pablo
Neruda, transformada em Museu, um cartaz que mantenho fixado na parede da
sacada que dá acesso ao meu quarto da casa de Santa Luzia.
ODA A LA ALEGRIA
...
No se sorprenda nadie porque quiero
entregar a los hombres,
los dones de la tierra,
porque aprendi luchando
que es mi deber terrestre
propagar la alegria.
Amanhece e o meu coração hoje é
capaz de desviar o olhar e se colocar em outra direção. Hoje, Noninha vai
inaugurar a pia com água instalada e saída encanada de sua casinha. Quero viver
a experiência cada segundo como se fosse eu o autor do gol.
Até breve.
Nenhum comentário:
Postar um comentário