segunda-feira, 12 de maio de 2014

SECA



Depois de conversarem por anos a fio, virou-se para a outra e disse, lacônica:

- Amor, minha querida, não existe. Isso é apelação de arte romântica. Uma relação sobrevive pela troca de interesses, necessidades recíprocas. Acabou o atendimento da demanda, by, by, a fila anda.

- O amor é o sentimento motor da vida humana.

- O motor da vida é a fome, querida... Sem essa de filuras sentimentalóides. São séculos de lero-lero de arte fajuta. Chega de embromamentos. O que move a vida é a fome de fome braba e fome de luxo, é o que move.

- E a paixão?

- Que que tem?

- Não conta?

- Fugacidade pura, meu bem! Trepou que chega, já era, vira lugar comum e se num tiver atendimentos objetivos a relação vai pro saco. Podem até seguirem juntos, por pura conveniência.

- Um casal não permanece junto se não tiver amor...

- Comida, roupa lavada, carro, casa, viagens, coisas e tais, empregada, babá, é que são os mecanismos estabilizadores. Sem isso a coisa pega. O ‘amor’ desaparece com a fome de qualquer um desses aí.

- Você já amou?

- Inúmeras vezes... Chorei às pampas, não podia ouvir determinadas músicas, morri de saudades.

- Então?

- Então o quê?

- Como você fala que não existe amor?

- Exatamente por isto! Puros delírios, fragilidades, expectativas trazidas por anos de aculturamento. No fundo, condicionamentos sociais forçados por anos de história.

- Você não ama mais então?

- Eu? Não.

- Seu marido, seus filhos, seus netos, seus amigos?

- Eles me são úteis e eu a eles... 

- Somos amigas há anos, tenho um profundo afeto por você, e você não sente o mesmo por mim?

- O que?

- Afeto?

- Você me faz companhia para ir ao teatro no domingo?

- Hein???!!!

- Você me empresta aquele vestido para eu ir ao casamento daquela minha colega de serviço...

- Espera, não pode ser só por isto!

- Tá bom, eu espero.

Depois, na semana seguinte, encontraram-se novamente.




Até breve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário