Recebemos ontem à noite, em nossa
casa de Santa Luzia, a visita de uma grande amiga que nos brindou com passagens
significativas de sua vida ímpar.
- “Minha vida dá um livro ou até um
filme.”
Ela tinha quinze anos, em meados da
década de sessenta, e faria seu debut
para a sociedade tradicional belorizontina com cobertura da melhor imprensa
local. Frisson geral nas melhores famílias da cidade.
Ela teria que ter um par para a
valsa além do pai e do irmão, naturalmente. Em paralelo os pais prospectavam
candidatos pertencentes à mesma ou à melhor estirpe e pedigree da família.
- Então, minha filha, quem vai
dançar a valsa contigo?
- Não esquentem que eu vou
arrumar...
Dez dias antes da festa do glamour
ela estava no clube freqüentado pela nata social e se deparou com uma figura
masculina, seleção brasileira de vôlei, olhos azuis, louraço.
- “É esse!”. Determinou-se.
Só que o alvo estava acompanhado de
uma lourinha inoportuna. Ela não se fez de impedida e partiu prá cima. Ao se
apresentar disse que queria que ele dançasse a valsa com ela. O alvo foi
fisgado e achou o máximo poder estar com ela em um ambiente alguns (muitos)
patamares acima do seu na escala social. A lourinha era irmã do belo.
- Então filha, com quem?
- Vou trazê-lo aqui em casa para
vocês conhecê-lo...
- Ele é de que família? O pai é
quem e o que ele faz?
- Perguntem para ele no dia que ele
vier aqui.
Os pais dela levantaram o dossiê
completo do pretendente e ele foi reprovado em vários dos quesitos analisados.
Acontece que o jovem era bem jeitoso, diplomático e passou no teste só para a
valsa.
- Entendeu, minha filha?
Dia do debut. Ela desceu as escadas do Clube da Hípica ao som da época e
ocasião sob os olhares de beldades super produzidas e cavalheiros smokatos com
toda pompa e circunstância. Ela estava tão mais linda do que quando conheceu o
louraço, que só havia a visto de uniforme escolar, que ele passou por ela no
salão e não a reconheceu.
- Ei , rapaz, sou eu aqui!
E foi assim.
A vida não reservou só a valsa. A
paixão cresceu recíproca e ultrapassou em muito o debut. E a família dela não aceitou “Romeu”. Não aceitou prá valer,
quem viveu a época sabe como eram as normas da TFM – Tradicional Família
Mineira. Em mil novecentos e setenta e poucos a coisa era inspirada no período
medieval. Por exemplo: hora para chegar em casa, dez da noite, senão era o
horror.
Teve um dia que aconteceu. Ela
havia ido a um aniversário de uma amiga e voltou para casa depois do limite
estabelecido. Tocou a campainha várias vezes e os pais não a atenderam. Ela foi
dormir na casa de uma outra amiga.
Desnecessário relatar para quem
viveu na época ou mesmo para quem não a viveu imaginar o clima doméstico. No
entanto, nada pode ser tão ruim que não possa piorar.
Uma noite os pais foram a um
casamento e ela calculou que eles voltariam para casa bem tarde. Estava sendo
inaugurada uma nova boate na cidade e ela estava louca para ir dançar com seu
“Romeu”.
Seus pais saíram de casa as oito e,
às dez horas da noite daquele dia, ela estava dentro do fusquinha vermelho do
seu amado com destino à dança.
A coisa tava tão boa na boate que
ela só voltou as três da madruga. Quando ela chegou em casa viu, de dentro do
fusquinha, seu pai na porta com um revólver em punho. O pai deu quatro tiros.
Um em cada pneu do carro do “filho da
puta do ladrão de jovens de boa família”. Ela foi tirada do carro a força
pela mãe que empunhava um cinto largo do marido. Ela entrou em casa tomando a
maior surra de sua vida. Enquanto isto o pai apontava o revólver para "Romeu" para que ele não impedisse a mãe de espancá-la. Da cabeça aos pés ela ficou com
as marcas da fivela do cinto e teve que ser medicada.
Seus pais a trancafiaram em um
quarto e ela ficou incomunicável. Indignada a família de “Romeu” resolveu
interceder e acionou um amigo militar que adentrou a casa dela para salvá-la do
cativeiro. Retiraram-a do quarto e a colocaram dentro de um taxi em direção a um
médico para examiná-la. Quando ela entrou no taxi o chofer, assustado com os
ferimentos da jovem, perguntou:
- Ela estava no ônibus do acidente?
Havia ocorrido um acidente no
Viaduto das Almas envolvendo um ônibus que resultou em várias vítimas,
inclusive fatais.
Anos e vários conflitos depois
deste episódio eles ficaram noivos e marcaram casamento. A mãe não moveu uma
seda e nem um cetim. O pai disse que não queria saber nada a respeito.
Ela mesma costurou o seu vestido de
noiva e os das damas. Arrumou espaço em salão e para recepção contratou para
que se servisse chocolate e champagne, face às restrições agudas de orçamento.
“Romeu”, por sua vez, havia comprado um ninho de dois quartos na Francisco
Deslandes.
- Uma gracinha! Eu adorava aquele
apartamento...
Dias antes do casamento os pais
viajaram e não compareceriam ao evento. Amigos e familiares sugeriram a ela que
entrasse na igreja acompanhada por um de seus tios e ela disse:
- Eu vou entrar sozinha, e pronto!
Soava o primeiro acorde da marcha
nupcial quando a solitária noiva deu o seu primeiro passo em direção ao altar.
- De que lado eu fico?
- Do esquerdo...
O pai, com olhar severo, entrou sem
dizer mais nada e ela achou que tudo poderia ser melhor a partir dali. No
entanto, encerrada a cerimônia o padre deu a última benção e ela,
emocionadíssima, virou-se para o interior da igreja. Seus pais já não estavam
mais lá.
O casamento durou mais de trinta anos.
Ela está divorciada há doze.
A noite de ontem, regada à scoth e à
narrativa de nossa amiga, ficará na memória como mais um dia especial em Santa Luzia. Eram dez horas da noite quando nossa querida amiga
olhou o relógio e:
- Nossa, já são dez horas?!!! Eu
tenho que ir embora...
Até breve.