Ontem ganhei uma flor de presente.
Definitiva. Marcante.
De quem falarei à exaustão, a ponto de você que me procura
não mais fazê-lo. Parecerá tão próximo, íntimo, particular, que seus pudores
vencerão o seu interesse e você não virá mais ao dasletra. Se o fizer, prepare-se: não será dela, da filha de minha
filha, que estarei falando, mas de tudo o que Liz simboliza.
“É
aquilo que diz respeito ao que é prioritário e vital. Diz respeito à
sobrevivência no seu sentido mais transcendente – que não tem a ver com o
indivíduo, mas com sua continuidade. Esta identidade possui, portanto,
características místicas. Trata-se da imortalidade não da alma, mas a imortalidade
da identidade. A permanência não daquilo que inexoravelmente se vai, mas de uma
visão de mundo, da obra, de cada um. Nossa obra-prima é um neto!” (*)
No final de 2010, eu e Ela embarcávamos em Confins com
destino a Punta Del Leste, Uruguai. Encontramos um casal amigo nosso que, também,
viajava para Punta. Quando chegamos a Montevidéu eu os convidei para ir conosco
de carro, que eu havia alugado.
Não me recordo de nenhum centímetro da estrada de Montevidéu
a Punta. Eu fui dirigindo o carro, mas com a atenção hiper concentrada no papo
que travávamos com Damião e Teresa. Adoráveis pessoas, riquíssimas, de humor
apuradíssimo e cultura invejável.
No início da viagem Damião comentou que acabara de completar
sessenta anos. E que, para comemorarem a data, resolveram gravar um CD em
família. Teresa sacou de sua bolsa um exemplar. Maravilhooooso!!! Tudo: a
idéia, a seleção das músicas, o clima da gravação. A interpretação surpreendente
de todos: a da mãe de Teresa, de Teresa, das filhas e de amigos e, sobretudo,
do próprio Damião.
Meu coração transbordou de desejo. Era imperioso copiar a
experiência do amigo. Não conseguia pensar noutra coisa. Quando voltei comentei
com minha turma. Houve uma euforia inicial, mas com o tempo a idéia perdeu
força.
A idéia de também gravar um CD foi modificando, buscando
alternativas, mas jamais arrefeceu o meu desejo de memorar-me. No início de
maio do ano passado meu filho Vladimir me provocou:
- “Por que você não faz
um blog, pai?”
Lancei o meu primeiro post propondo-me linguar. Na sequência,
postei escritos já prontos que estavam guardados pelas gavetas de inúmeros
armários de inúmeras moradas. Depois fui tomando gosto pela coisa e quando me
dei conta estava inexoravelmente vitimado pela idéia de me colocar a nu.
Passei
desde lá até hoje verdadeiramente ocupado não com o que escrevo, mas com que
inscrevo. Sobretudo em mim mesmo. Movimentei por demais o meu barro, mexi com
minhas entranhas, bulinei áreas íntimas. Vivi intensa, desavergonhada e
deliberadamente os meus sessenta anos.
Não poderia ocorrer ápice maior do que minha filha comunicar
sua gravidez. Especialmente a minha Pretinha. Perdi orientação dos meus textos,
da minha temática, do meu propósito que se fazia, ganhei um sentido. Entrei
pelo meu passado adentro, busquei minhas raízes, descobri a seiva que me
perpassa e nutre, estive com minhas memórias fósseis.
Ontem ganhei também ingresso para Barcelona e Real Madri no
dia 22 de abril, no Estádio Camp Nou, Barcelona. De quebra vamos fazer o
percurso que meu avô trilhou: Valência, Alicante, Elche e Cartagena.
Hoje meu primo, que já fez esse percurso, me disse que vai ligar
à noite para a casa do nosso primo, que mora em Elche e que tem o mesmo nome do
meu avô, para tramarem a viagem.
Vou ao encontro de repertório para contar as melhores
histórias para Liz.
Essa flor.
Até breve.
(*) Bonder, Nilton – Judaísmo para o século XXI: o rabino e o
sociólogo/ Nilton Bonder, Bernardo Sorj, - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2001 (in Sentados à mesa no século XXI, pag. 15)