quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SEIVA

Fui marcado pelo nome do meu pai. Apresento-me desde muito jovem pelo meu último sobrenome. Meu pai recebeu esse último sobrenome de sua mãe, Manuela que, por sua vez recebeu do seu pai, meu bisavô. Em nenhum de meus primos e nem de meus irmãos foi colocado esse sobrenome, portanto sou a única e última pessoa viva no planeta que o carrega. Esse sobrenome acabaria em mim.
Limito-me, hoje, aos meus avós paternos.
Ao completar idade para servir a pátria, meu avô alistou-se no exército, nele permanecendo doze anos (1897 a 1906). Serviu em Alicante, Cartagena, Valência e Elche. Consta que esteve na guerra de Cuba até o seu término. Ao voltar aprendeu a profissão de albanil (pedreiro), tornando-se exímio profissional, especialista em azulejo, muito procurado por duques e condes. Sua vida de jovem foi marcada por um convívio muito grande e salutar com grupos locais de folclore; sabia dançar muito bem danças típicas como a “jota”, passo doble e outras.
Minha avó, que não conheci, foi um exemplo de otimismo e tenacidade. Sua alegria de viver era contagiante, sempre sorridente, todos ao seu redor riam e brincavam com ela. Muito espirituosa, sempre tinha alguma coisa a contar com muita graça e risos. Jamais reclamava das dificuldades da vida. O dia todo cantarolava, enquanto costurava, canções espanholas e argentinas, com uma voz bela e afinada, do tipo:
VOY POR EL MUNDO
Voy por el mundo, siempre cantando
Como las golondrinas, que van volando
Ai me dá pena estar lejos de tu vera
El sitio donde reposo el cuerpo de mi morena.

Jo soñaba a veces, já a veces soñaba
De ver que mi madre de mi se acordaba.

Ai me dá pena estar lejos de tu vera
El sitio donde reposa el cuerpo de mi morena.

Voy por el mundo siempre cantando
Como las golondrinas que van volando.

Uma tremenda recessão assolou a Espanha e um acontecimento imprevisto apressou a decisão de meus avós a deixar seu país natal. Meu avô ganhou na loteria e convenceu minha avó de que, a exemplo de tantas famílias que deixavam a Espanha, poderiam tentar melhor sorte em outras terras. Minha avó tinha, na ocasião, um primo padre, residente em Salto Argentino (Argentina). Quando em visita à Espanha, ele estimulou o meu avô a ir para lá, onde estrangeiros progrediam rapidamente. Empolgados e com dinheiro no bolso, caíram no mundo.
Partiram para uma grande aventura como tantos europeus em busca de melhores condições de vida. O embarque em Alicante foi a maior confusão: uma tia de minha avó levou-a para fazer compras e, como sempre, atrasaram-se e perderam o navio. Meu avô, possesso, teve que alugar uma barca pagando parte da fortuna recebida pelo prêmio da loteria para alcançar o navio em Barcelona.
Desembarcaram na Argentina em 1913, meu avô com 36 e minha avó com 26 anos de idade. Traziam cinco filhos com onze, oito, seis, quatro e um ano de idade.  Não haviam combinado nada com o primo padre e, para surpresa de meus avós, souberam que ele havia se transferido para o Vaticano.
Passaram a morar numa grande chácara onde não pagavam aluguel já que o acordo com o proprietário era manter tudo como estava zelando pela criação, pelo pomar com figos, maças, pêssegos, melancias, outras frutas e alfafa. Aos poucos a vida foi se acomodando. Meu avô trabalhava como pedreiro e tinha um de meus tios como ajudante.
A situação na Argentina, no entanto, não correspondia às expectativas de meus avós. Com o nascimento de mais dois filhos (meu pai em 1914 e minha tia em 1915), arrependido e desorientado meu avô decidiu vir para o Brasil, empolgado com o que dizia um brasileiro que recrutava imigrantes prometendo mundos e fundos. O sujeito acabou acertando a mudança de toda a família com as despesas pagas pelo Setor de Imigração do Brasil. Minha avó duvidava do que contava o brasileiro e temia um fracasso na nova empreitada.
O navio que os trouxe em 1916, SAMARA, era francês. Nele vieram muitas famílias imigrantes, como a de meus avós, acompanhadas pelo brasileiro, feitor de fazenda. Minha avó não queria nem ver o sujeito. Alguma coisa lhe dizia que ele não era honesto, mas continha-se na esperança de que tudo desse certo.
A viagem foi uma amarga aventura. O mundo vivia a primeira guerra mundial, nos mares os navios singravam temerosos de encontrarem seus inimigos prontos para o ataque. A rota que seria feita em três dias, normalmente, levou seis dias. No terceiro dia em alto mar surgiu um navio que, alguns longos minutos depois, foi identificado como aliado. Quando se cruzaram foi uma festa geral a bordo de ambos.
Meus avós desembarcaram no Brasil em outubro de 1916. O famigerado feitor depois das providências de praxe junto ao setor de imigração conduziu meus avós e os filhos, entre eles meu pai, para uma fazenda de café em Cravinhos (interior de São Paulo).
Lá junto com outros colonos, espanhóis e japoneses, meus avós foram escravizados. Obrigados a capinar e plantar, além de fazer a colheita do café, um trabalho estafante. Recebiam para alimentação: arroz, farinha e feijão.
Meu avô, bravo e corajoso, estimulado pela minha avó, decidiu fugir com o filho mais velho para Ribeirão Preto. O feitor procurava saber notícias deles e minha avó o despachava. Meu avô conseguiu trabalho em Ribeirão como pedreiro e voltou poucos dias depois para buscar a família. Na madrugada, em um carro de boi, fugiram todos às escondidas, temerosos de serem descobertos e ávidos em deixar aquele submundo, esperando por dias melhores.
Em Ribeirão Preto conseguiram viver melhor até que meu avô ficou gravemente enfermo. Sem trabalho o sustento da família tornou-se ainda mais difícil. Minha avó mantinha suas últimas economias e algumas poucas jóias e roupas guardadas em um baú trazido desde Espanha. Acompanhada por uma das filhas vendeu de porta em porta quase tudo. Com o dinheiro mandou vir da Espanha o remédio que curou meu avô.
Abrigavam, na casa onde moravam, outra família com oito pessoas, que havia fugido também de Cravinhos. Viveram com sérias dificuldades por mais dois anos em Ribeirão Preto. Meu tio mais velho soube de oportunidade em Uberaba, foi para lá e depois de algum tempo levou também meu avô. Mais tarde, com trabalho mais firme, eles voltaram para buscar o resto da família que havia ficado em Ribeirão Preto.
Em Uberaba foram mais felizes. Moraram em uma chácara de onde tiravam o próprio sustento e vendiam parte da produção na cidade. Meu avô fez um grande fogão e forno a lenha onde faziam panhocas deliciosas que eram também vendidas. Em Uberaba tiveram mais um filho e uma filha, que veio a falecer com oito meses de idade.
Com os filhos maiores, todos buscaram afazeres, lavar roupas, costurar, cuidar do pomar e da horta e, duas de minhas tias chegaram até a arrumar um trabalho numa fábrica de cigarros de palha.
A família toda foi acometida de gripe espanhola. Responsável por muitos óbitos a doença matou tanta gente que os enterros eram feitos, muitos deles, em carros de boi, uns atrás dos outros. Vencida essa crise meus avós resolveram voltar para a Espanha.
Feitas as economias e ajudados por uma quantia, enviada por uma tia de minha avó, conseguiram embarcar em 1921 em São Paulo com direção a Espanha. O navio fez  uma escala em Santos e que, por problemas técnicos, só partiria após uma semana. Ali apareceu um jovem de vinte e um anos, vindo de Uberaba, dizendo que estava apaixonado por uma de minhas tias (de quatorze anos) e que se mataria e mataria a minha tia antes da partida do navio, já que não poderia ir para a Espanha. Meu avô aconselhou o rapaz a voltar para casa e que poderia escrever para a filha e, quem sabe um dia, reencontrarem-se e se casarem. O jovem não desistiu e meu avô resolveu entregá-lo à polícia, mas minha avó demoveu-o da idéia, temendo que o jovem se matasse mesmo.
Meu avô relutou, ficou bravo, sem resultado. Enquanto isso, meu tio mais velho soube que em Belo Horizonte havia muitas oportunidades de trabalho e resolveu não seguir viagem e ficar no Brasil. Acertou-se, então, que todos ficariam no Brasil, pois minha avó não queria deixar dois filhos sozinhos em terra estrangeira.
Voltaram todos para Uberaba, exceto meu tio mais velho que se arrumou em Belo Horizonte. Pouco tempo depois meu avô veio morar aqui junto com meu tio em uma pensão. Em seguida, ajustadas as condições, como sempre, buscou toda a família, inclusive o casal apaixonado.
O jovem apaixonado formou-se em Odontologia depois de trabalhar como garçom, servente de pedreiro e outros biscates. Viveram juntos e eu estive na sua festa pelas bodas de diamantes. Minha tia faleceu lúcida aos noventa e cinco anos.
Meu tio mais velho decidiu voltar para a Espanha, quando da guerra civil, atendendo convocação de desertores que, perdoados, teriam todas as despesas pagas. E não mais voltou.
Meus avós tiveram ainda outros dois filhos em Belo Horizonte.
Meu avô deixou trabalhos dignos de admiração. O hotel balneário de Araxá foi todo azulejado por ele, assim como o Instituto Raul Soares e o Colégio Santa Maria, em BH, além de inúmeros trabalhos artísticos em diversas residências. No Instituto Raul Soares, em 1924, teve a infelicidade de perder o olho esquerdo quando tentava partir uma pedra. Uma lasca vazou-lhe o globo ocular, sendo obrigado a extirpá-lo incontinente. Por mais que o médico insistisse, meu avô não aceitou a anestesia e suportou a operação sem gemidos e contorções. A anestesia era a base de clorofórmio aplicada com algodão no nariz do paciente, muitos não voltavam do processo anestésico. Com os filhos pequenos, longe de sua querida Espanha, meu avô determinou ao médico: “Arranque logo a vista, porque não preciso de droga nenhuma de anestesia para superar a dor!” Assim foi feito e daí em diante ele passou a usar um olho de vidro.
Durante muito tempo meus avós moraram em uma casa no Bairro Floresta onde existia uma mina d’água. Meu avô assumiu a tarefa de fornecer água à vizinhança e famílias mais distantes, quando BH enfrentava sérios problemas de abastecimento. A mina, onde ele instalou uma bomba, era inesgotável, de fácil manejo, mas meu avô não deixava ninguém a não ser ele operá-la. Então, um por um, em filas de quarteirões, todos levavam sua água, não raro às vezes esbaforidos, pois quando havia confusão, aconteciam explosões nervosas do meu avô. Por isto ficou muito conhecido no bairro.
Morreu aos noventa e cinco anos.
Assim como a vida, a morte de minha avó foi edificante. Um mês antes do desenlace, hospitalizada, ela pediu a uma de minhas tias que fosse levada para casa, onde iria morrer. Nos últimos dias ela dizia estar muito feliz por ir num momento em que todos estavam bem.
Morreu, jovem e bonita, deixando os filhos solteiros (somente meu pai pode vê-la em seu casamento) às oito horas do dia 14 de agosto aos cinqüenta e quatro anos de idade, véspera do dia santo mais importante em Espanha. No caixão pediu que colocasse somente folhas de cada uma das cem espécies diferentes de begônias plantadas por ela e que floriam nos vasos colocados nas prateleiras do quintal.
Não fosse uma recessão, um prêmio de loteria, um padre conselheiro, um feitor escravagista, uma paixão de um jovem potencial assassino, de um tio determinado e, apesar das circunstâncias de guerras, endemias, miséria, escravidão, fome e perdas de visão, eu não poderia ser, ter filhos e em agosto desse 2012 tornar-me avô.
Pretinha, minha filha, apoiada por Claudinho meu genro, disse que se for menino vai receber o meu sobrenome e, diferente de mim, terá nome.
Que já se sabe.

Até breve.
PS > Sobre meu avô materno, que veio de Portugal, e minha avó materna é outra história.

4 comentários:

  1. O acaso...O que seria se tivéssemos feito outra escolha em qualquer situação da vida?! Onde estaríamos hoje?! Não sei, sei que não tenho no nome, mas sou considerada uma Agulhozinha...

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  2. Nossa, essa historia daria até um filme! E dos bons!

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  3. Que história linda! Daí se vê de onde vem essa determinação, esse amor imensurável, essa dedicação a todos que fazem parte da sua vida! Beijo enorme! Orgulhosa de ter um amigo assim.Clara

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  4. Que legal ! adorei conhecer um pouco mais da sua história.
    Abraço

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