terça-feira, 31 de janeiro de 2012

BORRAR

Dizem os estudiosos da arte que há uma diferença entre o pintor e o escultor. Enquanto o pintor “concebe” a obra e se expressa lançando-se ao painel ou tela, o escultor “concebe” a obra e a retira da pedra bruta. A tela está “pronta” no interior do artista para ser exposta. A peça esculpida está pronta no interior da pedra bruta para ser extraída pelo artista.
E o escritor? Talvez fique mais próximo do pintor. Diante da folha ele opera sua expressão. Se bem que não é bem assim, de sempre. Às vezes, o escritor vai se deixando levar pelos meandros da folha e, num repente, flora um texto, seja verso, seja prosa, como se ele já estivesse de pronto. É, mas um texto sobre está página somente o será, se eu pincelar letras organizadas em palavras e estas, por sua vez, em frases.
A pintura moderna, ou contemporânea, borra a tela e fica para quem a consome a arte de criá-la. Nem mesmo o artista, muitas das vezes, “compreende” o que produziu. Tem tudo a ver com o nosso tempo de “liberdades”. Fica para cada um, também diante da tela, a tarefa ou o direito de resolver o que vê.
Tenho um irmão que, na infância, pintava. Na juventude, parou. Ficou puto porque achava que pintar não era espalhar tintas a esmo, era preciso que o quadro contasse uma história. Certa vez, minha mãe comprou uma tela e disse a meu irmão que ele faria um quadro para dar a ela de presente.  Na véspera do dia das mães ele trancou-se dentro do quarto e só saiu com um quadro pronto. Uma casinha modesta ao fundo, uma sombrosa árvore, uma velha senhora sentada sozinha com um terço na mão. Minha mãe gostava sempre de cantar uma canção cuja letra narrava a história de um filho que teria ido para guerra e a mãe ficava as tardes rezando, esperando pelo retorno do filho amado. Simples, assim.
Há outra expressão em arte: o cinema. Ontem assisti no Canal Brasil ao filme 180 graus. Ele será exibido novamente às 23:00 horas do próximo sábado, dia 04, não percam. Eduardo Vaismann dirige Felipe Abib, Du Moscovis e Malu Galli numa tela esculpida por uma narração profunda. Ao longo de toda a narrativa o espectador percorre possibilidades de desfecho, mas o que se dá ao final, não que surpreenda por demais, mas encanta e faz pensar.
A música também convida a refletir sobre o processo criativo, tornando-a arte. Tem uma nossa, por exemplo, reconhecida internacionalmente: “Águas de março” do escultor Tom Jobim. Há uma gravação dele com Elis Regina, antológica. Ambos fazem das palavras um mosaico de sons tornando a composição promessas de vida no coração.
Estávamos em um supermercado em San Andrés, na Colômbia, e minha filha ouviu quando passava pelo caixa a música de Michel Teló, Ai se eu te pego, tocando em uma rádio. A menina do caixa deliciava-se e quando minha filha disse que era brasileira a colombiana quis saber: o que é delícia?
É como explicar arte.
Juro que este texto não estava pronto.

Até breve.

sábado, 28 de janeiro de 2012

SEIVA II

José Lopes Agulhô, meu pai, era ignorante e sensível. Nasceu quando eclodiu a primeira guerra mundial e morreu, aos noventa e quatro anos, após quatro de batalha contra o mal de Alzheimer. Ao longo de toda a sua vida perguntavam prá ele, e aí? Ele sempre respondia: “Na luta.”
Foi privado de toda sorte de informação, não concluiu o curso primário e ao longo de toda vida não leu um livro sequer.  Desde sempre foi orientado ao trabalho de sustento. Aprendeu um ofício de mecânico industrial e torneiro com seu irmão Evaristo, outra besta.
Relatos de minha tia Modesta dão conta de que meu pai na juventude era bonito, musculoso e que jamais permitia qualquer gajo aproximar-se de suas irmãs. Talvez por isto ela, Modesta, tenha ficado solteira e Teresa tenha tido um único affaire.
Além da lida na pequena indústria de máquinas para cerâmicas de propriedade de meu tio Evaristo, ele gastava energias como lutador. Ele era o “Pegador Latino” nas lutas livres travadas na antiga Feira de Amostra dos Produtores, onde hoje é a Rodoviária de Belo Horizonte. Teria uma carreira promissora nos ringues não fosse a ira de minha avó. Certa noite ela foi ao ginásio onde ocorreria uma luta decisiva na qual meu pai disputaria a final de um campeonato. Quando meu pai entrou no ringue ela subiu e empunhando um guarda-chuva encheu-lhe de varadas botando-lhe a nocaute. Nunca mais meu pai voltou aos ringues.
Conheceu uma jovem que era o seu oposto. Criada em colégio interno, o Santa Maria, cheia de dengos, fricotes e salve-rainhas, orientada às prendas do lar. Com todas as rendas, bordados, sonhos femininos, paixão e caminhos de mesa, foram ao altar.
Belo dia minha mãe achou que o cunhado explorava o irmão. Disse que meu pai escolhesse: ou ela ou Evaristo. Meu pai optou por separar-se do irmão e montar sua própria oficina. Puta luta! Compraram uma cafua de três cômodos na Rua Salinas, no Bairro Santa Teresa. Na frente do barraco meu pai puxou um telhado meia-água e ali começou a sua vida.
Ao longo dos anos foi expandindo galpão da oficina e cômodos da cafua, na mesma medida que estouravam os rebentos. Ao todo dez, um após o outro. Além de abortos espontâneos. Num dava tempo de criá-los, quando muito supri-los com um alimento básico. Cada um que se virasse conforme suas capacidades. Para meu pai cabia-lhe a bóia. Tudo o mais era para que cada um conquistasse.
Lembro-me quando ele sentava-se à mesa para almoçar. Não lavava as mãos cheias de óleo e graxa, para ele não dava tempo. Minha mãe há muito abolira as toalhas de linho bordadas do enxoval e forrava com jornais a cabeceira da mesa. Ali meu pai assentava-se. Depois da refeição ele gostava de chupar laranjas serra d’água. Deixava sobre o prato as cascas da fruta imundas de graxa. Dava um grande arroto e voltava para a sua oficina.
Meu pai era extremamente demandado para a fabricação de equipamentos de cerâmica. Ele fazia os moldes em madeira, fundia em ferro, usinava as peças e montava toda a parte mecânica e elétrica dos equipamentos que pesavam toneladas. Nunca teve um ajudante sequer. Fixava em um torno (que ele próprio projetou e construiu)  imensas betoneiras, as usinava e transportava-as sobre roletes de aço até os caminhões que estacionavam a frente do galpão.
Teve três amigos: Zé Espingarda, Seu Pedro Ziviane e Inácio. Zé Espingarda era um sujeito de Formiga, cidade do interior de Minas Gerais, que de quando em vez aparecia na oficina para fazer pequenos reparos em suas armas de caça de pequenas aves. Meu pai trocava o direito do acesso às ferramentas e máquinas da oficina por alguns momentos de prosa com Zé Espingarda. Seu Pedro Ziviane era um sujeito polido, letrado, que tinha uma tremenda admiração pelo meu pai. Era nosso vizinho, morava a algumas quadras de casa. Foi ele quem testemunhou no antigo INPS sobre os anos de serviço para que meu pai conseguisse aposentar-se. Inácio era dono da fundição onde meu pai levava os moldes e fundia as peças para as máquinas que montava.
Meu pai era fascinado por cinema para onde ia todas as noites, no início do casamento. Depois se apaixonou por novelas. Diversas vezes o vi às lágrimas diante da TV, ou aos gritos: “Esse sujeito é um cafajeste! Ou “Essa mulher não presta!” Minha mãe, preocupada com o destempero do meu pai, sempre tentava acalmá-lo: “Calma Pêpe, isto tudo é novela... Não é a vida real...”
Duas outras paixões: carros e futebol. Quando ele melhorou um pouco de vida começou a comprar carros, negligenciando por vezes outras prioridades da casa, motivo pelo qual inúmeras brigas foram travadas com minha mãe. Já com cérebro totalmente comprometido pelo mal de Alzheimer uma das poucas coisas pelas quais reagia era quando perguntado pelo Cruzeiro ele, com dificuldade, balbuciava: “El mejor time del mundo!”.
Na velhice humanizou-se. Aos sessenta e oito anos conheceu o mar. Colocou pela primeira vez um calção de banho e banhou-se eufórico às margens da imensidão azul. Disse que sentia tonteiras e gargalhava atordoado como uma criança.
Há um episódio simbólico que guardo em minha memória. Quando montava o telhado da cobertura de minha casa em Santa Luzia eu o levei para ver a obra. “Coloque outra peça, senão o telhado vai selar...” Ele determinou ao carpinteiro que fazia o serviço.
Há muitos anos faço um demonstrativo financeiro dos meus ganhos e despesas mensais. Hoje, no meu laptop, a senha que abre o arquivo é: peleja.
Pois é, sempre tive o maior orgulho de meu pai.

Até breve.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SEIVA I

Pascoala era mesmo linda, acho que qualquer homem perderia sim a cabeça por ela, se mataria sim. Naquela época as pessoas se amavam e acreditavam que deveriam fazer um projeto que levasse a vida toda. Veridiano quando fugiu de Uberaba para ir ao encontro dela tinha presente que sua vida só faria sentido se fosse com sua menina de quatorze anos. Casaram-se, tiveram filhos e netos e viveram juntos a vida inteira. Sei que Pascoala era “arrasa quarteirão” por força de uma de suas netas, por quem vivi uma de minhas primeiras paixões.
Veridiano e Pascoala, meus tios responsáveis pela permanência no Brasil da família de meus avós paternos, eram mesmo diferenciados. Veridiano é da primeira turma de práticos que por força de lei de Getúlio Vargas pode fazer exames e se diplomar em Odontologia. Tomou bomba em prótese e tia Pascoala arrumou os trem para ir embora se Veridiano não voltasse para a escola.
Não me esqueço deles em duas oportunidades: uma, suas bodas de diamantes. Puta exemplo de propósito. Acho que esse episódio teve relevância no rol de minhas escolhas que fiz ao longo da vida. A outra: lembro-me de um dia que meus pais desentenderam-se e espalharam a filharada para os quaro cantos e eu e uma de minhas irmãs fomos levados para casa deles. Ficou desse dia o gosto do peixe que tia Pascoala preparou para o almoço. De Veridiano lembro-me que era gordo, bonachão, sempre assobiava alto quando chegava em qualquer ambiente. Reclamava apenas de que minha avó sempre exigiu dele solidariedade quando minha tia ficava grávida: minha avó dava a Pascoala e Veridiano a mesma dose de purgante.

Carlos, meu tio mais velho, na verdade não era filho de minha avó Manuela. Era fruto do primeiro casamento do meu avô, Ramon. Não o conheci, ele retornou para a Espanha na época da guerra civil, quando os comunistas foram perseguidos e torturados até a morte e, outros, não comunistas foram igualmente perseguidos, entre esses, meu tio Carlos.
Há um episódio marcante envolvendo-o. Ele foi denunciado, provavelmente por interesses escusos de um colega de profissão, como comunista. Ficou preso durante quatro anos, numa masmorra, com mais dez companheiros. Invadiram sua casa, carregaram tudo que nela se encontrava: equipamentos, materiais de construção. Sua esposa Frasquita, com o filho de colo, não resistindo entrou em depressão aguda a ponto de não poder criá-lo, confiando-o a uma amiga.
Frasquita, sem recursos de qualquer espécie, com a idéia fixa de salvar o marido dos horrores da prisão, onde os presos morriam de fome e de falta de cuidados médicos, fazia caminhadas de porta em porta pedindo comida. Em suas visitas diárias à prisão, onde lhe era permitido levar comida para o marido, ela conseguiu também alimentar os companheiros de Carlos. Não conseguiu, porém, salvá-los. Meu tio Carlos escapou da morte por fuzilamento. Foi julgado inocente e voltou às suas atividades.
Frasquita, contudo, não conseguiu livrar-se da depressão. Minha tia Modesta visitou a família em 1966. Encontrou Frasquita cuidando de trabalhos domésticos auxiliando uma nora, mas com sintomas expressivos das perdas no passado. Minha tia me contou que achou estranho que Frasquita guardasse, até então, num quarto, como relíquia intocável, um prato contendo restos de comida, ainda do tempo em que Carlos estava na prisão.

Modesta era, dos meus tios, a mais próxima de minha família. Por um episódio trágico na sua infância, quase ficamos sem ter o seu convívio. Quando da viagem da Argentina para o Brasil ela, então com quatro anos de idade, fugiu do controle de minha avó e, curiosa, foi conhecer a cozinha do navio e desapareceu. Cerca de quatro horas depois foi encontrada com um ferimento na base posterior do crânio. Havia caído do alto do convés em um emaranhado de tambores e outras coisas.
Dela, algumas lembranças. Ela era adolescente e havia concluído os trabalhos manuais na escola onde estudava. Dentre os trabalhos havia um chapéu de lã azul de crochê que nem todas as alunas haviam feito e, portanto, não receberiam a nota.  Uma amiga, que não gostava de trabalhos manuais, depois que Modesta já havia apresentado o chapéu à professora e recebido a sua nota, pediu à minha tia que lhe emprestasse e o apresentou novamente como seu. A professora deu a nota à amiga, mas reteve o chapéu, não fazendo nenhum comentário. Na saída pediu à tia Modesta que trouxesse no dia seguinte o chapéu, porque ela gostaria de ver apenas um detalhe na peça.
Tia Modesta ficou louca. Em casa minha avó percebeu o seu embaraço e mandou minha tia comprar lã azul e outros apetrechos. No dia seguinte, pela manhã, minha avó entregou o chapéu pronto para minha tia que, feliz, levou à escola. A professora ao recebê-lo disse: “Você ou alguém fez este chapéu durante a noite. Eu deveria dar-lhe zero, mas pelo sacrifício feito conservo a sua nota. Lembre-se, porém, de que na vida não se pode agir assim. Cada pessoa deve assumir seus atos e ser julgada por eles. Não se esqueça disso jamais.”
Outra passagem. Ela e meu pai (eram crianças) descobriram que muita gente apanhava paus de lenha que caiam dos vagões da Central Ferroviária, ao longo da linha férrea, nas proximidades da Praça da Estação, em Belo Horizonte. Duas vezes por semana, nos horários livres dos afazeres domésticos e da escola, eles passaram a pegar lenha que, na época, era muito cara. Por isso eram recompensados pela minha avó que, no final de semana, dava a meu pai e a minha tia uns trocados para eles irem ao cinema Floresta.
Assistiram a filmes de aventuras, seriados inesquecíveis, rodados uma vez por semana. Seus ídolos eram fortes e destemidos, defensores dos fracos e oprimidos, duros e inflexíveis com os corruptos. Vibravam com os atos de heroísmo. Os seriados se prolongavam por meses e a volta ao cinema era inevitável, pois, ansiosos, desejavam saber de tudo até o fim.
A família de meus avós morou em uma casa que foi construída por meu avô e meu pai, onde existia a mina d’água. A casa estava semi-acabada, sem reboco nas paredes internas e externas, sem piso revestido, sem portas internas. Um dia, Modesta subia a rua de casa e ouviu um vizinho comentar com outro: “Imagine, além de buracos, esta rua agora tem até casa sem reboco.” Chegando em casa comentou com minha avó que, achando graça na indignação da filha, a tranquilizou: “Você, no futuro, vai ter a casa rebocada e vai ajudar muita gente a lutar pela sua.”
Modesta não se casou, ou melhor, casou com sua infinita dedicação aos outros. Tornou-se a primeira Assistente Social de Minas Gerais, fundando e trabalhando em inúmeras instituições de apoio e desenvolvimento social no estado e no país. Na véspera de sua morte, chamou uma de minhas irmãs e deu-lhe diversas instruções a respeito do que gostaria que fosse feito a partir do dia seguinte. Terminando pediu a minha irmã que a levasse para um determinado hospital onde gostaria de morrer. Faleceu na madrugada.

As nuances da família paterna são marcas indeléveis no meu sangue. Senti-as presentes em viagens à Espanha e a Argentina. Numa praça em Sevilha emocionei-me profundamente ao ver, em um monumento referenciando Alicante, um azulejo que meu avô reproduziu e fixou na fachada da casa da rua Monte Carmelo, no Bairro Floresta, onde tinha uma mina d’água.
Agradeço à vida por ter me proporcionado alguns papos com Tia Modesta e colhido parte de seus escritos e, agora, poder estar fazendo esse singelo registro.

Até breve.

PS : De meus outros tios, Teresa, Evaristo, Antônio, Francisca (Paca), Irene e Ramonito não trago nada que possa guardar. De meu pai, essa é uma grande história que ainda será trazida aqui.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SEIVA

Fui marcado pelo nome do meu pai. Apresento-me desde muito jovem pelo meu último sobrenome. Meu pai recebeu esse último sobrenome de sua mãe, Manuela que, por sua vez recebeu do seu pai, meu bisavô. Em nenhum de meus primos e nem de meus irmãos foi colocado esse sobrenome, portanto sou a única e última pessoa viva no planeta que o carrega. Esse sobrenome acabaria em mim.
Limito-me, hoje, aos meus avós paternos.
Ao completar idade para servir a pátria, meu avô alistou-se no exército, nele permanecendo doze anos (1897 a 1906). Serviu em Alicante, Cartagena, Valência e Elche. Consta que esteve na guerra de Cuba até o seu término. Ao voltar aprendeu a profissão de albanil (pedreiro), tornando-se exímio profissional, especialista em azulejo, muito procurado por duques e condes. Sua vida de jovem foi marcada por um convívio muito grande e salutar com grupos locais de folclore; sabia dançar muito bem danças típicas como a “jota”, passo doble e outras.
Minha avó, que não conheci, foi um exemplo de otimismo e tenacidade. Sua alegria de viver era contagiante, sempre sorridente, todos ao seu redor riam e brincavam com ela. Muito espirituosa, sempre tinha alguma coisa a contar com muita graça e risos. Jamais reclamava das dificuldades da vida. O dia todo cantarolava, enquanto costurava, canções espanholas e argentinas, com uma voz bela e afinada, do tipo:
VOY POR EL MUNDO
Voy por el mundo, siempre cantando
Como las golondrinas, que van volando
Ai me dá pena estar lejos de tu vera
El sitio donde reposo el cuerpo de mi morena.

Jo soñaba a veces, já a veces soñaba
De ver que mi madre de mi se acordaba.

Ai me dá pena estar lejos de tu vera
El sitio donde reposa el cuerpo de mi morena.

Voy por el mundo siempre cantando
Como las golondrinas que van volando.

Uma tremenda recessão assolou a Espanha e um acontecimento imprevisto apressou a decisão de meus avós a deixar seu país natal. Meu avô ganhou na loteria e convenceu minha avó de que, a exemplo de tantas famílias que deixavam a Espanha, poderiam tentar melhor sorte em outras terras. Minha avó tinha, na ocasião, um primo padre, residente em Salto Argentino (Argentina). Quando em visita à Espanha, ele estimulou o meu avô a ir para lá, onde estrangeiros progrediam rapidamente. Empolgados e com dinheiro no bolso, caíram no mundo.
Partiram para uma grande aventura como tantos europeus em busca de melhores condições de vida. O embarque em Alicante foi a maior confusão: uma tia de minha avó levou-a para fazer compras e, como sempre, atrasaram-se e perderam o navio. Meu avô, possesso, teve que alugar uma barca pagando parte da fortuna recebida pelo prêmio da loteria para alcançar o navio em Barcelona.
Desembarcaram na Argentina em 1913, meu avô com 36 e minha avó com 26 anos de idade. Traziam cinco filhos com onze, oito, seis, quatro e um ano de idade.  Não haviam combinado nada com o primo padre e, para surpresa de meus avós, souberam que ele havia se transferido para o Vaticano.
Passaram a morar numa grande chácara onde não pagavam aluguel já que o acordo com o proprietário era manter tudo como estava zelando pela criação, pelo pomar com figos, maças, pêssegos, melancias, outras frutas e alfafa. Aos poucos a vida foi se acomodando. Meu avô trabalhava como pedreiro e tinha um de meus tios como ajudante.
A situação na Argentina, no entanto, não correspondia às expectativas de meus avós. Com o nascimento de mais dois filhos (meu pai em 1914 e minha tia em 1915), arrependido e desorientado meu avô decidiu vir para o Brasil, empolgado com o que dizia um brasileiro que recrutava imigrantes prometendo mundos e fundos. O sujeito acabou acertando a mudança de toda a família com as despesas pagas pelo Setor de Imigração do Brasil. Minha avó duvidava do que contava o brasileiro e temia um fracasso na nova empreitada.
O navio que os trouxe em 1916, SAMARA, era francês. Nele vieram muitas famílias imigrantes, como a de meus avós, acompanhadas pelo brasileiro, feitor de fazenda. Minha avó não queria nem ver o sujeito. Alguma coisa lhe dizia que ele não era honesto, mas continha-se na esperança de que tudo desse certo.
A viagem foi uma amarga aventura. O mundo vivia a primeira guerra mundial, nos mares os navios singravam temerosos de encontrarem seus inimigos prontos para o ataque. A rota que seria feita em três dias, normalmente, levou seis dias. No terceiro dia em alto mar surgiu um navio que, alguns longos minutos depois, foi identificado como aliado. Quando se cruzaram foi uma festa geral a bordo de ambos.
Meus avós desembarcaram no Brasil em outubro de 1916. O famigerado feitor depois das providências de praxe junto ao setor de imigração conduziu meus avós e os filhos, entre eles meu pai, para uma fazenda de café em Cravinhos (interior de São Paulo).
Lá junto com outros colonos, espanhóis e japoneses, meus avós foram escravizados. Obrigados a capinar e plantar, além de fazer a colheita do café, um trabalho estafante. Recebiam para alimentação: arroz, farinha e feijão.
Meu avô, bravo e corajoso, estimulado pela minha avó, decidiu fugir com o filho mais velho para Ribeirão Preto. O feitor procurava saber notícias deles e minha avó o despachava. Meu avô conseguiu trabalho em Ribeirão como pedreiro e voltou poucos dias depois para buscar a família. Na madrugada, em um carro de boi, fugiram todos às escondidas, temerosos de serem descobertos e ávidos em deixar aquele submundo, esperando por dias melhores.
Em Ribeirão Preto conseguiram viver melhor até que meu avô ficou gravemente enfermo. Sem trabalho o sustento da família tornou-se ainda mais difícil. Minha avó mantinha suas últimas economias e algumas poucas jóias e roupas guardadas em um baú trazido desde Espanha. Acompanhada por uma das filhas vendeu de porta em porta quase tudo. Com o dinheiro mandou vir da Espanha o remédio que curou meu avô.
Abrigavam, na casa onde moravam, outra família com oito pessoas, que havia fugido também de Cravinhos. Viveram com sérias dificuldades por mais dois anos em Ribeirão Preto. Meu tio mais velho soube de oportunidade em Uberaba, foi para lá e depois de algum tempo levou também meu avô. Mais tarde, com trabalho mais firme, eles voltaram para buscar o resto da família que havia ficado em Ribeirão Preto.
Em Uberaba foram mais felizes. Moraram em uma chácara de onde tiravam o próprio sustento e vendiam parte da produção na cidade. Meu avô fez um grande fogão e forno a lenha onde faziam panhocas deliciosas que eram também vendidas. Em Uberaba tiveram mais um filho e uma filha, que veio a falecer com oito meses de idade.
Com os filhos maiores, todos buscaram afazeres, lavar roupas, costurar, cuidar do pomar e da horta e, duas de minhas tias chegaram até a arrumar um trabalho numa fábrica de cigarros de palha.
A família toda foi acometida de gripe espanhola. Responsável por muitos óbitos a doença matou tanta gente que os enterros eram feitos, muitos deles, em carros de boi, uns atrás dos outros. Vencida essa crise meus avós resolveram voltar para a Espanha.
Feitas as economias e ajudados por uma quantia, enviada por uma tia de minha avó, conseguiram embarcar em 1921 em São Paulo com direção a Espanha. O navio fez  uma escala em Santos e que, por problemas técnicos, só partiria após uma semana. Ali apareceu um jovem de vinte e um anos, vindo de Uberaba, dizendo que estava apaixonado por uma de minhas tias (de quatorze anos) e que se mataria e mataria a minha tia antes da partida do navio, já que não poderia ir para a Espanha. Meu avô aconselhou o rapaz a voltar para casa e que poderia escrever para a filha e, quem sabe um dia, reencontrarem-se e se casarem. O jovem não desistiu e meu avô resolveu entregá-lo à polícia, mas minha avó demoveu-o da idéia, temendo que o jovem se matasse mesmo.
Meu avô relutou, ficou bravo, sem resultado. Enquanto isso, meu tio mais velho soube que em Belo Horizonte havia muitas oportunidades de trabalho e resolveu não seguir viagem e ficar no Brasil. Acertou-se, então, que todos ficariam no Brasil, pois minha avó não queria deixar dois filhos sozinhos em terra estrangeira.
Voltaram todos para Uberaba, exceto meu tio mais velho que se arrumou em Belo Horizonte. Pouco tempo depois meu avô veio morar aqui junto com meu tio em uma pensão. Em seguida, ajustadas as condições, como sempre, buscou toda a família, inclusive o casal apaixonado.
O jovem apaixonado formou-se em Odontologia depois de trabalhar como garçom, servente de pedreiro e outros biscates. Viveram juntos e eu estive na sua festa pelas bodas de diamantes. Minha tia faleceu lúcida aos noventa e cinco anos.
Meu tio mais velho decidiu voltar para a Espanha, quando da guerra civil, atendendo convocação de desertores que, perdoados, teriam todas as despesas pagas. E não mais voltou.
Meus avós tiveram ainda outros dois filhos em Belo Horizonte.
Meu avô deixou trabalhos dignos de admiração. O hotel balneário de Araxá foi todo azulejado por ele, assim como o Instituto Raul Soares e o Colégio Santa Maria, em BH, além de inúmeros trabalhos artísticos em diversas residências. No Instituto Raul Soares, em 1924, teve a infelicidade de perder o olho esquerdo quando tentava partir uma pedra. Uma lasca vazou-lhe o globo ocular, sendo obrigado a extirpá-lo incontinente. Por mais que o médico insistisse, meu avô não aceitou a anestesia e suportou a operação sem gemidos e contorções. A anestesia era a base de clorofórmio aplicada com algodão no nariz do paciente, muitos não voltavam do processo anestésico. Com os filhos pequenos, longe de sua querida Espanha, meu avô determinou ao médico: “Arranque logo a vista, porque não preciso de droga nenhuma de anestesia para superar a dor!” Assim foi feito e daí em diante ele passou a usar um olho de vidro.
Durante muito tempo meus avós moraram em uma casa no Bairro Floresta onde existia uma mina d’água. Meu avô assumiu a tarefa de fornecer água à vizinhança e famílias mais distantes, quando BH enfrentava sérios problemas de abastecimento. A mina, onde ele instalou uma bomba, era inesgotável, de fácil manejo, mas meu avô não deixava ninguém a não ser ele operá-la. Então, um por um, em filas de quarteirões, todos levavam sua água, não raro às vezes esbaforidos, pois quando havia confusão, aconteciam explosões nervosas do meu avô. Por isto ficou muito conhecido no bairro.
Morreu aos noventa e cinco anos.
Assim como a vida, a morte de minha avó foi edificante. Um mês antes do desenlace, hospitalizada, ela pediu a uma de minhas tias que fosse levada para casa, onde iria morrer. Nos últimos dias ela dizia estar muito feliz por ir num momento em que todos estavam bem.
Morreu, jovem e bonita, deixando os filhos solteiros (somente meu pai pode vê-la em seu casamento) às oito horas do dia 14 de agosto aos cinqüenta e quatro anos de idade, véspera do dia santo mais importante em Espanha. No caixão pediu que colocasse somente folhas de cada uma das cem espécies diferentes de begônias plantadas por ela e que floriam nos vasos colocados nas prateleiras do quintal.
Não fosse uma recessão, um prêmio de loteria, um padre conselheiro, um feitor escravagista, uma paixão de um jovem potencial assassino, de um tio determinado e, apesar das circunstâncias de guerras, endemias, miséria, escravidão, fome e perdas de visão, eu não poderia ser, ter filhos e em agosto desse 2012 tornar-me avô.
Pretinha, minha filha, apoiada por Claudinho meu genro, disse que se for menino vai receber o meu sobrenome e, diferente de mim, terá nome.
Que já se sabe.

Até breve.
PS > Sobre meu avô materno, que veio de Portugal, e minha avó materna é outra história.

sábado, 21 de janeiro de 2012

RIQUEZA

M. é tia dEla por parte de mãe. Está com setenta e três anos de idade. M. sempre diz que puxou o pai em tudo, inclusive na prática de pular a cerca. Até hoje ela mantém um romance com um homem casado. J. tem setenta e sete anos.
Há quarenta e tantos anos atrás M. foi procurada pela sua sogra, que era minha vizinha nos tempos de solteiro, para alertá-la: “Coitada da sua sobrinha, na casa daquele rapaz ninguém presta. Fala prá ela largar dele...” Fiquei devendo esta para M. até hoje. Ela não disse nada. Acho até pelo contrário, sempre deu a maior força para que sua sobrinha seguisse comigo.
Fizemos com M. e J. uma viagem a Salvador, agradabilíssima. M. e J. nos deram de presente mudas de palmeiras que foram plantadas, lado a lado, há quase vinte anos e estão hoje com mais de dez metros de altura, cada uma,  na entrada da nossa casa em Santa Luzia.
M. nos acompanhou na viagem que fiz com meu pai para a Argentina, logo após a perda de minha mãe. Ficou hospedada no hotel no mesmo apartamento junto com o meu pai. Numa noite, M. já havia se deitado. Ela preferia dormir colocando o colchão no chão. Meu pai, estabanado, não a viu, tropeçou e caiu sobre ela. Meu pai, puta puritano, ruborizou dos cabelos às unhas encravadas dos pés. No retorno ela contou para J. que disse que se encontrasse com meu pai iria matá-lo. Ainda nessa viagem M. saía com Ela para fazer compras e voltavam com várias sacolas. Meu pai perguntou a M. onde ela arrumava dinheiro para fazer tantas compras. “Com meus homens”, respondeu séria. Meu pai com muito jeito veio me perguntar se M. havia dito a verdade. Eu deixei meu velho sem saber.
J. é tipo malandrinho cocô. Minha filha sempre faz referência a ele como “bicheiro”. Certa vez ele foi com M. a nossa casa em Santa Luzia. Estava vestindo uma bermudinha branca, camisa aberta até o peito ostentando uma corrente com sei lá o que dependurado e calçava um desses chinelos de couro que já foram sandália franciscana. Contador de vantagem, macho pacas e tal. Na juventude foi amigo do meu sogro e conta que ambos aprontavam porque a família de M. não queria nem um nem outro rondando-as. Meu sogro conseguiu furar o bloqueio, J. não. Acabou casando-se com outra.
M. casou-se e foi morar fora de BH. Ficou por lá vários anos. Quando voltou J., ainda casado, partiu prá cima. Pouco tempo depois M. ficou viúva. Uma longa história poderia ser contada, dessas que merecem certo cuidado e juízo.
Estivemos, ontem, visitando M. em um hospital. Ela estava com riscos de uma embolia pulmonar e foi internada em regime de urgência. Rimos muito, como sempre, especialmente quando J. é o assunto. Uma das características marcantes do sujeito é o ciúme. Certa vez ele perguntou a M. se ela iria sair de casa e ela disse que não. J. colou sobre o solado de todos os calçados de M. um pedaço de fita crepe. No dia seguinte revisou a todos. Por sorte dela, naquele dia nada a havia estimulado a sair.
M., ainda no hospital, nos contou que J. sempre diz a ela que ela irá morrer primeiro do que ele. “Não vou deixar você prá nenhum outro”, ele diz.
J. se cuida muito. Corre cinco quilômetros todos os dias. Está inteiraço. É bom mesmo que ele se mantenha. Se M. puxou a mãe, vai beirar prá lá dos noventa.  Conversamos a respeito e ela com seu sorriso maroto de sempre: “Eu adoro a vida.”

Até breve.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

VINHO

Em meados dos anos noventa desenvolvi o planejamento estratégico dos Diários Associados. Extraí da experiência incontáveis e fundamentais ensinamentos pela convivência com pessoas, algumas delas, especiais.
Ricardo Noblat, na época Diretor de Redação do Correio Braziliense é uma dessas pessoas com as quais tive o privilégio de conviver durante um bom período. Guardo com o maior carinho um exemplar de seu livro (que ele tirou de sua biblioteca) Céu dos Favoritos – O Brasil de Sarney a Collor no qual ele escreveu à caneta: “Ao amigo estimado Agulhô, uma das mudanças no Correio, com a esperança que tudo dê certo, 17/9/96.” escrita na página onde ele faz a dedicatória do livro: A Rebeca, André, Gustavo e Sofia, meus favoritos. Rebeca é sua esposa, André, Gustavo e Sofia são seus três filhos hoje já adultos.
Nas orelhas de apresentação do texto, feita por Virgílio Moretzohn Moreira, há uma preciosidade quando cita Hannah Arendt: “A política é feita, em parte, da fabricação de uma certa ‘imagem’ e, em parte, da arte de levar a acreditar na realidade dessa imagem. Não vejo razão de unir aqui, Arendt a Platão, quando o filósofo, num momento exponencial, sentenciou que a obra prima da injustiça é parecer justa.” A citação é oportuna também para servir aos famigerados projetos SOPA e PIPA do Congresso Americano.
Céu dos favoritos, editado em 1990, é uma coletânea de artigos de Noblat publicados no Jornal do Brasil de 1985 a 1989, analisando os fatos e suas versões da política brasileira.
·         “O espaço político e social do país fica cada vez mais fértil para o surgimento de um falso Messias que prometa virar tudo pelo avesso. 25/01/88”
·         “Collor é um político capaz de fazer qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo para alcançar os objetivos dele. (...) Pode até conseguir se eleger presidente da República, assim. Mas que tipo de presidente será? 15/12/89”
Hoje Noblat mantém um blog visitadíssimo no “O Globo”. Recorri a ele quando fazia uma varredura em manchetes para registrar no post APELAÇÃO. Deparei-me com um dos tópicos do blog: Diários de Avô. Ele escreve crônicas desde dezembro de 2007 véspera da chegada de sua neta Luana, filha de Sofia.
A partir daí travei com Valesca (pretinha), minha filha, a troca de e.mails:
ü  Pretinha,
Entrei no blog do Noblat, com quem convivi alguns anos atrás nos Diários Associados. Veja que pérola o texto dele. 
Beijo.

ü  Pai, entao eu achei ne...vc tem q continuar escrevendo, vc escreve tipo ele...
Já ri até...
Bjos! 

ü  Pai,
E essa parte de um dos posts:

-“ Você não será tão diferente das outras. Mas caso prefira, me dê Luana para criar. Você poderá vê-la sempre se quiser. E até poderá voltar para casa. E se fizer muita questão poderá trazer Vitor também.”
kkkkkkkkk...ja to vendo vc falando assim comigo....kkkkkkkk
to lendo vários aqui...
bjos

Ontem, no início da noite, fui dirigindo o carro para levar Pretinha junto com Ela ao ginecologista. Claudinho, meu genro, está fora a trabalho. Consegui estacionar próximo ao edifício do consultório. Enquanto as esperava terminei de ler Gosto e Poder, livro de Jonathan Nossiter.
Nossiter referindo-se aos enólogos empolados que fazem análises da bebida tipo: “plenamente maduro, revela soberbas aromas de acácia, com nuanças de cassis, fumaças e ervas queimadas, expansivo e redondo, com textura aveludada, autêntica opulência e baixa acidez...” escreve:
Por absurda que seja, essa cientificidade de araque corresponde perfeitamente a uma cultura que reluta em aceitar que o julgamento crítico abalizado possa conviver com a ambigüidade e a complexidade. Essa cultura prefere os absolutos, com o que têm de especioso, uma linguagem infantil e incompreensível que não requer nenhum compromisso e um senso da democracia brandido como falso estandarte, falaciosa garantia de pretensos fatos. O mesmo fenômeno está presente no discurso político dominante desde Regan, nos televisores do mundo inteiro e até nos computadores dos guardiões de nossa cultura.”
Eu trouxe da lojinha do Restaurante Andrés Carne de Res de Bogotá um pendente em forma de coração com asas que decora e indica o número e nome de cada mesa do restaurante. Já o coloquei na cozinha de nossa casa em Santa Luzia. Por força do texto de Nossiter escolhi a palavra que vou escrever na peça: TERROIR, que vem a ser, a fonte de todo gosto, de toda identidade e de todo prazer.
Quando elas saiam do edifício onde fica o consultório do ginecologista olhei ansioso para ver como que a Pretinha e sua mãe estavam. Elas entraram eufóricas no carro:
- Pai, mó cabeçudo...
- Mozinho, cê precisa ver que gracinha, os bracinhos, os pezinhos...
- Pai, mó cabeçudo...
Todo mundo sabe que eu gosto a pampa de filme. Ontem assisti ao meu definitivo. Ela gravou com um Ifone cenas inenarráveis tomadas de um certo útero.
Ontem à noite, já em casa, falava cabeçudo e dava gargalhadas sozinho, até que fui sancionado por ela:
           - "Sua filha é mesmo uma Agulhôzinha!

Eu avisei, se vocês não contribuíssem com O QUE SE PASSA, eu voltaria ao meu cotidiano.

Até breve.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

RENDEÇÃO

Agradeço a contribuição ao dasletra do Julinho e do leitor anônimo que trouxeram ao QUE SE PASSA? questões entendidas por eles como atualidades. A do Julinho sobre a lei que será votada no próximo dia 24 no Congresso Americano sobre a questão da pirataria na internet e suas conseqüências sobre a liberdade de expressão. A do leitor anônimo que me pede para discorrer sobre os pecados capitais, inclusive atualizados recentemente pela igreja católica.
A princípio deveria investir um assunto em cada post, mas não me sinto aparelhado para manifestar-me nem sobre o primeiro e muito menos sobre o segundo. Vou arriscar palpite, aqui nessa conversa aberta, nutrida e possível, paradoxalmente, por algo que pode estar em risco após 24 de janeiro.
Sou avesso a normas, tenho horror a pilates. Nem as minhas próprias, quando as faço, cumpro. Toda disciplina me incomoda, tenho medo só de não pagar contas, especialmente aquelas quando não pagas no vencimento só são recebidas em agências bancárias. Por pura preguiça. Não gosto de fazer juízo conclusivo sobre nada, ainda quando o faça sinto muito pouca firmeza, até para permitir-me alterá-lo em seguida. Sempre acho que a razão é desnecessária, portanto ela pode ou não estar do meu lado. Eu sozinho me basto, por pura soberba.
Detesto fazer compras de qualquer espécie, enfrentar filas, disputar vagas em estacionamentos, atrasos dEla, você por isso e pouco mais me verá possesso em pura ira. Tenho duas casas, uma em lote de dois mil metros quadrados e outra em região nobre da cidade onde vivo. Dois automóveis, um que eu uso e outro que divido com Ela. Poderia viver em um único lugar, ter ou não ter automóveis, mas os tenho por pura avareza.
Não padeço de gula. Jamais relatarei, nem em Juízo Final, meus melhores sonhos de luxúria. Sei andar sozinho aos sessenta anos, o que denota minha pura vaidade.
Portanto, sou puro.
Todo juízo é arbitrário e tem sempre uma referência que o governa. Para reduzir crimes que se institua a pena de morte. Para que se preserve a pureza que se institua o pecado. Para que se saiba o mal que se aponte o bem. Puta sacanagem humana, para não dizer do barro que somos feitos, untados pela crueldade intrínseca.  
Vamos combinar.
Deixe-me livre. Toque a sua vida, tire a dor e a delícia de ser o que é, e fôda-se o mundo. Esse deveria ser um lema para minha modernidade. O outro que escolha matar ou morrer, furtar ou doar, gozar ou sofrer, ser ou não ser.
Permita-me, contudo, a sua experiência. Preciso dela para construir a minha própria pessoalidade, digna ou indigna. Eu sou porque me diverjo, como queria Guimarães Rosa e estarei sempre atento aos seus atos.
Se construir algo que sirva verdadeiramente a alguém e que ele possa deliberadamente fazer uso que faça. Se descobrir, se inventar, se criar, se compor, se tocar, se filmar, se brincar, se apontar, se denunciar, se for lá o que for, que seja absolutamente aberto, para todos, amplo, geral e irrestrito.
Mesmo que sejam mais amargas que já são as nossas verdades.
Mais, até dia 24, você poderá encontrar nos “cantos da internet” e, por favor, tome cuidados de como fará uso.

Até breve.
PS> O título do post é mesmo RENDEÇÃO, para que eu possa brincar com o anônimo que pediu REDENÇÃO. Eu me rendo.
Instrumento de tortura - Museu da Inquisição Cartagena

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

APELAÇÃO

Não havendo nada que a mim mesmo interesse registrar do meu cotidiano e, ainda que não tendo como compromisso postar, fui ao encontro do cotidiano mais amplo. O que se passa? Quais são os acontecimentos dignos de nota e que possam interessar? Estaria com isto prestando um serviço aos meus leitores, se é que se faça necessário e se é que alguém que me procura me procure por isto. Acho que não.
De qualquer forma penso que devo afastar-me um pouco, ver se encontro algo sobre o que eu possa comentar, criticar, opinar, fora do meu dia-a-dia. Talvez buscando fatos que sejam de maior interesse eu reduza, por tabela, a minha angústia detectada por Júlio em seu comentário (http://www.blogdoagulho.com.br/2012/01/colon.html).
Sobre o quê, e de maneira geral, é imperioso estar sabendo? Nem que seja para comentar nas rodas de bar, no escritório, na praia, em encontros com amigos. Você soube? Você viu? Você leu? Para se ter uma sensação de conexão com a vida, uma inserção no tempo e no espaço.
Conclamo aos meus queridos leitores para ajudar-me nesta tarefa. Via Comentário vocês poderiam trazer MANCHETES para que pudéssemos ampliar o nosso interesse pelo que se passa. Vale qualquer assunto, mas que possa despertar o interesse de outros.
Se bem que, de pronto, sinto que vou alargar minha frustração. Podem alguns supor que com isto eu esteja querendo ampliar o meu repertório de assuntos para poder postar, dando um gás no dasletra, e não enviarem nenhuma MANCHETE. Mas, e se não houver mesmo nada sobre o que vale a pena saber?
Claro que estou falando de acontecimentos, de fatos importantes na cena local ou global. Não de conhecimentos que melhorem nossa performance, compreensão ou outras questões que melhorem a nossa operação do dia-a-dia. Por exemplo, ah... Isso todos sabem.
Gostaria de começar nossa tarefa e coloco um nome na empreitada: O QUE SE PASSA? Ficou até legal o nome, dando um sentido duplo, o que está acontecendo e o que cada um passa ao outro para que esteja sabendo. É importante que a manchete tenha veracidade, não produto da nossa imaginação, quase sempre fértil. Não é necessário apontar as razões para essa ou aquela MANCHETE. Claro que Blog é aberto, então fica à vontade, pode até justificar porque no seu entendimento é importante que se saiba.
Eu espero que participem e que me inundem de interesse. Que me apontem a atualidade como um momento histórico com fatos relevantes que ampliem a nossa satisfação de fazer parte, ainda que como espectadores.
Em uma pesquisa rápida, no dia de hoje, das manchetes principais nos melhores veículos de mídia impressa, colhi:
·         Mercado de combustível cada vez mais irracional
·         A China atinge 505 milhões de usuários da internet
·         Barrichello parou
·         O capitão abandonou o navio
·         Não esperem muito da reforma ministerial
·         Cientistas criam ‘detector de mentira’ para pessoas em dieta
·         No sábado, no BBB, não ocorreu penetração
·         Padre de Las Vegas é condenado após apostar US 650 mil da igreja
·         Mulher morre após cirurgião tirar órgão errado
·         Cientistas listam quatro descobertas recentes sobre o Universo
Se continuar assim, ou se vocês não colaborarem com O QUE SE PASSA, volto ao meu cotidiano.

Até breve.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

CÓLON

Fico pensando, às vezes, se justifica ocupar espaço na rede com minhas questões e/ou meus textos assistemáticos. No turbilhão de informações vale ocupar espaço com o cotidiano de uma pessoa qualquer ou com seus despretensiosos e, as vezes enigmáticos/nebulosos textos?
Falar, por exemplo, dos últimos quatro dias: assisti na segunda-feira, no Canal Brasil, a 400 contra 1, filme brasileiro que trata do conflito de presos comuns e políticos no presídio Cândido Mendes (Ilha Grande) na época da ditadura; na terça-feira, à Mensageiro, no Cine Cult,  filme árabe que convida aos nossos sonhos mais infantis e portanto sérios e, na quarta-feira, no Belas Artes, ao último do Almodóvar, A pele que eu habito, instigante, surpreendente, cinema.
Ou talvez comentar os livros simultâneos que agora eu belisco, como de passagem, tirando poeira que assenta sobre armários. Ao “Variações sobre o prazer ”, de Rubem Alves, que a Clara me deu de Natal, onde o autor cita Roland Barthes: “E o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde partimos e conhecê-lo então pela primeira vez. Os caminhos da alma são circulares, voltam sempre ao princípio. Ao final de sua longa caminhada de toda a vida pelos caminhos da ciência, ele se descobre chegando ao lugar de onde partira: o lugar da criança.”
Ou “Gosto e Poder”, de Jonathan Nossiter, autor nascido nos EUA, naturalizado brasileiro que escreveu e dirigiu o belíssimo filme Mondovino (2004). Na contracapa do livro outro escritor, também americano, apresenta o texto: “Em dois mil anos de escritos sobre vinho e comida, Gosto e poder é único. Não é para qualquer um. Se você compra caixas de vinhos, se os coleciona, se fica entusiasmado ao combinar o vinho com a comida, se acha que um jantar não fica completo sem uma taça, se é membro daquele grupo seleto que bebe mais vinho que água e considera essa bebida tão importante quanto a própria comida: este livro não é para você. Este é um livro para pessoas que sofreram algum problema. É para pessoas que não vêem apenas líquido numa garrafa, mas um excesso de significados. Que vêem história e identidade. Este livro é para pessoas que não fazem idéia de por que ficam tão abaladas.”
Na terça-feira, fui submetido a exame de colonoscopia. É um exame no qual se introduz o aparelho de colonoscopia ou colonoscópico via anal, para avaliar a parede interna do reto, intestino grosso (cólon) e a porção distal do intestino delgado (íleo terminal) e quanto necessário e possível, a realização de tratamento. O procedimento é feito sob anestesia geral venosa para evitar que o paciente sinta dores ou desconfortos abdominais.
Na quarta-feira, um dia após o exame, depois de assistir ao A pele que eu habito, fomos jantar. Pedi um chopp. No primeiro gole achei que deveria consultar ao Gilberto se poderia. Liguei para ele. “Aí, hein, Agulhô descobriu o que tem dentro do seu interior...”
Hoje passei todo o dia mergulhado em uma sessão de planejamento estratégico com uma organização da área de construção pesada.
Afora colonoscopia e planejamento estratégico, ficam aqui algumas sugestões que podem contribuir sim para uma descoberta interior.
Ah, bom!

Até breve.

domingo, 8 de janeiro de 2012

A/OCASOS

Desembarcamos em Belo Horizonte na madrugada de sexta-feira. Embriagados ainda de alegria por quatorze dias inesquecíveis de viagem. No vôo apenas um incidente que acabou, felizmente, com um final feliz: na poltrona da fila de assentos ao lado e imediatamente atrás da nossa, embarcou uma senhora de oitenta e dois anos. Vinha de Cuba acompanhada pelo marido e por vários outros membros de sua família. Logo que o avião decolou observaram que ela estava paralisada e com os olhos arregalados. Várias pessoas gritaram por médicos a bordo. Surgiu um homenzarrão vestindo uma dessas camisas cheias de verdes, amarelos, azuis e tal de Porto Rico, apresentando-se como médico. Minutos depois a senhora, hipertensa, estava recuperada do mal súbito. Durante a viagem conversei com o marido dela que me falou do quanto eles haviam se encantado por Cuba, apesar de. Eu disse que também já havia estado em Cuba e quanto me impressionara a experiência.
No sábado, em Santa Luzia, fazíamos compras em um supermercado e encontramos com uma amiga. Comentava sobre nossa viagem e ela, viajante internacional assídua, disse: “Eu sou muito ruim de América Latina, praticamente não conheço nada. Na verdade, acho que não damos muito valor ao que é nosso.”
À noite, assistimos no Telecine Cult ao clássico O OVO DA SERPENTE, cinemão de 1977 produzido por Dino de Laurentiis, com a direção de Ingmar Bergman e protagonizado por Liv Ullmann e o impagável David Carradine. O filme é ambientado na época pré-Hitler e aponta as circunstâncias vividas então na Alemanha. Degradação ampla, ausência de perspectivas, desconfiança coletiva no futuro, depravação moral generalizada e, sobretudo, medo. Imenso medo. Abel Rosemberg (David Carradine) judeu, trapezista, tenta sobreviver após o suicídio do irmão, também trapezista com quem Abel fazia dupla em um circo. Filme não se conta, no máximo comenta-se ou recomenda-se. Para mim é importante registrar aqui que o ambiente é marcado fundamentalmente pelo medo.
Na sequência, talvez acordados pelo O Ovo da Serpente, assistimos ao programa de Serginho Groisman, na Globo, em cujos intervalos comerciais celebridades dizem o bordão: “o programa inteligente na madrugada”.  Os participantes foram: Boni, Pedro Bial, Caetano Veloso, Gal Costa, Cláudia Leite e depois, mais para o final do programa, a modelo Isabeli Fontana. Perguntas da platéia, constituída apenas por jovens, foram endereçadas aos convidados. Aponto aqui algumas respostas ou comentários:
·         Para Boni, a TV sofrerá sensíveis mudanças com o advento das redes sociais e estaremos livres da programação restrita e determinada pelas emissoras. Todo conteúdo estará disponível em diferentes modelagens no momento em que o interessado assim o quiser para fazer uso e deleite.
·         Para Bial, ex-correspondente internacional em conflitos armados, o BBB é um excelente programa.
·         Para Cláudia Leite, apoiada por Caetano, os artistas da Axé Music são atletas. Ela já ficou em cima de um trio elétrico por doze horas ininterruptas. A média é de seis horas e, para Caetano, eles tocam e cantam bem o tempo todo.
·         Para Isabeli Fontana, ela só não gosta do conceito de beleza no mundo atual da moda. Há muita anorexia.
Então, não há medo nas circunstâncias presentes, o que nos desobriga de um salvador, como no Ovo da Serpente. Ocorreu, no entanto, um momento particularmente interessante no programa a altas horas: um jovem de uns quinze ou dezesseis anos, o mais novo a se manifestar, fez com imensa dificuldade uma pergunta dirigida à Caetano: “Como você vê as músicas de hoje que só têm amorzinho, florzinha, queridinho e não há composições como aquelas da época da ditadura engajadas com propostas de transformação social?” Caetano respondeu que 90 a 95% das músicas em todos os tempos só tratam de florzinha, amorzinho, queridinha e que só o restante é “diferente”. Serginho Groisman interpelou o jovem que havia feito a pergunta dizendo que o rapaz não deveria ter saudade do que não viveu.
Fiquei pensando. Afinal o que é melhor para o advento do Humano: a presença ou a ausência de medo?
Caetano continua nos 5 ou 10%. Vem com seu filho Moreno e com Gal num projeto embalado por arranjos eletrônicos. Uma das faixas é Neguinho. Começa assim:
“Neguinho não lê, Neguinho não vê, não crê, pra quê
Neguinho quer saber.
O que afinal define a vida de neguinho?”
Acho que este post foi inspirado por inúmeras placas que observei em fachadas de lojas na Colômbia: MISCELANEAS.
Apenas.

Até breve.