Óbvio: toda viagem é um deslocamento. Partimos de Lima ao nível do mar e atingimos 4000m de altitude na Ilha de Taquile em Puno. Este deslocamento impõe conseqüências físicas importantes: há impacto sobre o sistema respiratório, alguma dor de cabeça e perdas ocasionais de memória o que, para mim, já é algo incorporado. Por outro lado, desde o início da viagem há uma impregnação do esquisito (no sentido espanhol), do diverso, do local, do distinto.
Nosso oitavo e último dia no Peru foi em Cuzco. Hospedamo-nos no Hotel Monastério adquirido em 1999 pela Orient Express. Construído em 1595 sobre o Palácio do Inca Aman Qhala e fundado em 1598 como o Seminário de San Antônio Abad com o fim de formar sacerdotes católicos. Em 1692 tornou-se a Real Universidad Catolica, voltando a ser Seminário em 1816. Em 1965 foi restaurado por força de um terremoto ocorrido em 1950. Na década de 70 foi remodelado para converter-se em hotel. Uma maravilha!
Cuzco em quecho (idioma Inca) é COOSCO que significa centro do mundo. A cidade é localizada no centro das quatro regiões em que se dividia o Império Inca, a 3350m de altitude e declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1984.
Visitamos QORIKANCHA, templo maior do Império, reverência ao Deus Sol. Foi construído pelos Incas em 1423 com pedras buscadas, no braço, a 7 km de distância. Quando os espanhóis chegaram a Cuzco em 1532 e viram o conjunto de obras, entre elas Qorikancha, repletas de ouro, consideraram-nas como sendo obras do diabo, já que para eles os incas seriam animais desprovidos de conhecimento e sentimento. Pobres colonizadores.
Os espanhóis construíram sobre Qorikancha a partir de 1532 o Convento de Santo Domingo, revestindo de argila todas as paredes de blocos de pedras do Templo do Sol, construído pelos incas. Em 1950 ocorreu o terremoto e todo o segundo andar do convento, construído pelos espanhóis veio a baixo. Quando faziam a restauração reencontraram sobre os escombros as paredes de bloco de pedras construídas pelos incas. Intactas. Não ocorreu nenhum dano a elas que eram desconhecidas até 1950. É uma obra de engenharia sui generis. As pedras de encaixe, em vários modelos, foram colocadas em forma trapezoidal. Se você fica de pé com os dois pés juntos sua resistência é menor à queda, mas se você os coloca distantes um do outro, formando um trapézio, sua resistência à queda aumenta. Simples, não? Os espanhóis não sabiam.
Fomos a SAQSAYHUAMÁN. Um imenso parque arqueológico. Os Incas plantaram ali o monumento ao Deus Raio, e reverenciaram as lhamas e os pumas, animais símbolos da cultura, assim como o condor. A construção com perto de 700 metros de extensão em forma de zig zag (lembrando a descarga elétrica produzida por um raio) de dois platôs de quatro metros de altura construído com blocos imensos de pedra trazidos de jazida a 14 km de distância pensando até 120 toneladas, cada bloco. INACREDITÁVEL! O encaixe dos blocos foram milimetricamente estudados e as pedras polidas. Há duas composições na parede inferior: uma pata do puma e outra o corpo da lhama, dentro da composição de blocos cuidadosamente colocados uns sobre os outros.
Visitamos nas proximidades de Cuzco outros tantos lugares sobre os quais nada relatarei aqui, assim como inúmeras estórias contadas pelos guias ou nativos com os quais conversamos. No final de cinco horas de caminhadas fomos conhecer a Catedral de Cuzco. No geral ela não difere de outras tantas, mas há um particular: o sincretismo religioso, isto é, a convivência entre as duas culturas, Inca e espanhola. Os espanhóis tiveram que ceder muito aos operários e artistas nativos. A pregação católica colocou para os Incas que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Os quadros pintados e fixados nas paredes têm cavalos com corpos de lhamas e um Cristo de baixa estatura com as pernas cambotas e arqueadas, como os Incas. No suporte dos braços dos tronos do coral central, os “índios” artistas escandalizaram os espanhóis com as esculturas de mulheres com os seios desnudos e o ventre proeminente (deusa Terra). O Senhor dos Tremores colocado no altar tem hoje a coloração escura, quase negra, resultado das exposições externas em procissões onde o povo lança uma determinada flor cujo sumo altera a coloração da madeira, tornando-a numa coloração que se assemelha a dos nativos.
A provocação maior está no quadro que retrata a Santa Ceia. Uma tela de quase dezesseis metros quadrados. À mesa não está um cordeiro, mas sim um CUY (porquinho da índia, que era um animal comum no prato dos Incas). “Quem foi Judas?”, perguntou o artista ao espanhol responsável pela obra da Catedral. “Judas, foi o traidor de Cristo por dinheiro.” A representação de Judas lembra a todos os nativos o rosto de Pizarro, colonizador espanhol. Sobre a mesa, ainda, da Santa Ceia, duas garrafas de Chicha, suco de milho roxo, sem álcool, bebida típica cuzquenha. As imagens esculpidas das virgens são todas com a barriga enorme: grávidas.
A cultura Inca nasceu em 1200 d.C. e ao longo de mais de duzentos anos foi gestada a partir da síntese de várias culturas anteriores inclusive aquelas até 1000 a.C. Do início em 1200 até 1532, quando da queda do império, foram 14 Incas, o mais importante deles: PACHACUTIK. Todas as conquistas de Pachacutik foram pela via de intensa negociação com os povos, buscando o que havia de melhor na cultura tomada.
Ao voltar para o Brasil o que eu trouxe na bagagem além de singelos regalos para os mais próximos? Algumas palavras que servem a uma síntese dessa experiência dos últimos oito dias. Meu caminhar pelo diverso não tem a busca apenas no estético, mas e, sobretudo a que ele me remete. Uma primeira palavra: agradecimento.
Agradeço a Ela por ter sido, como sempre, a indutora da experiência. Foi dela o desejo de estar em Machu Picchu. Agradeço a agência de turismo, que nos proporcionou privilégios acima de nossas expectativas. Agradeço aos guias, Valéria, Rivelino, Armando, Conie e Wilma pelo carinho e o interesse demonstrado em nos inundar do que é mais relevante sobre sua cultura e sua terra. Agradeço aos motoristas das vans Antônio, Toshio e Walter, pela segurança proporcionada nos traslados terrestres. Agradeço, em especial, à Vida, por ter me proporcionado mais essa experiência.
Uma segunda palavra: RESISTÊNCIA. Os Incas nos deixaram um precioso legado. Sobre altitude, terremotos e outros desastres ambientais, fortes chuvas, intenso inverno, sol escaldante, configurações geológicas íngremes, vales de alto risco de desprendimento de rochas, falta de animais para transporte de cargas, e um sem número de outros obstáculos, ainda assim, em que pese todas essas restrições eles edificaram um patrimônio à humanidade deixando um tributo histórico de inestimável valor.
Foram colonizados, mas não perderam sua dignidade. Ouvi de um nativo: “Não tínhamos pólvora e nem cavalos, nos submetemos, mas eles não tiraram de nós as nossas tradições.” Esse parece ser o lema da essência da cultura Inca que é expressa numa palavra: KAIPAY, que em quecho significa RESISTÊNCIA.
Ontem, domingo, quando Conie junto com Walter nos levava ao aeroporto para regressar ao Brasil, passamos por uma praça no centro da qual está uma grande estátua.
- Pachacutik? Perguntei.
Conie respondeu que sim e pediu que eu observasse o dedo dele em riste apontado na direção de outra estátua (Cristo) que fica no topo de uma montanha à frente da praça. Os nativos dizem que Pachacutik aponta para o Cristo e o interpela:
- Você destruiu o meu povo, dilapidou nossa Cultura!
Ao que Cristo, com seus braços abertos, conciliador responde:
- Mas eu só vim de visita...
Incas em quecho é ENKAS. Significa: sábios.
Até breve.
Espero que ainda aceite meu comentário , pois como ja lhe disse , leio "Blogdasletras " fazendo esteira e não consigo ,fazer comentários .
ResponderExcluirTenho lidos todos a cada post .
A conclusão de tive e que , esta é uma terra de guerreiros , que mesmo subjulgados , massacrados e desrespeitados . Não fora conquistados , pois suas raizes , suas crenças e sua historia tem se rebelado mais forte , aos que lhes visitam , que os conquistadores dexaram .
Com certesa , vou ao Peru , não sei precisar , quando devido a reforma .
Gil