quinta-feira, 11 de agosto de 2011

BANAL II

Fred e Elaine em agosto passaram a noite juntos. Para eles foi maravilhosa. Circularam pela cidade atentos às luzes, veículos, pessoas, alguns animais perdidos, coletores de lixo, fixadores de outdoors, trabalhadores que vinham, trabalhadores que iam, profissionais do sexo, do tráfico, de pequenos furtos, ambulâncias, resgates, viaturas.
Ao lado um do outro, trocavam confidências. O preço das coisas, aluguel, comida, roupas e sapatos, escapadas, e outras pequenas despesas. Depois da família: o irmão dele que estava preso já há cinco anos, tinha perdido o controle das surras que dava na mulher, numa noite bateu mais do que de costume e a companheira não resistiu. O outro irmão era policial, tinha sido morto num confronto com traficantes fazia pouco tempo. A irmã amasiada com um sujeito imprestável, que vivia à custa da mulher que era diarista em casa de família. A mãe sofria dos nervos, só de remédio consumia boa parte da pensão que o marido que a havia abandonado muito antes de morrer deixara. Uma sobrinha, filha de outra irmã que se prostituíra e morrera muito cedo, atropelada numa avenida do centro da cidade. Uma cadela fiel que lhe fazia festa quando ele voltava para casa. Uma última irmã, jovem, parece que sairia algo na vida, estudava o fundamental na escola municipal do aglomerado.
Depois ela foi falando também da família. Um irmão era porteiro noturno em prédio do centro, dois eram auxiliares de cozinha e trabalhavam em restaurantes diferentes e nas folgas atendiam como garçons em festas; uma irmã que era cabeleireira e outra que era garçonete numa lanchonete no centro da cidade.
Falaram dos seus sonhos. Ele se ganhasse na loteria, ficaria no mesmo lote da família, mas demoliria tudo, barracos e puxadinhos, e construiria um sobrado com duas lojas em baixo, uma para montar um bar e outra para explorar máquinas de azar. Para a cobertura de laje deixaria um acesso para que a irmã mais nova tomasse sol de biquíni.  Compraria um carro de quatro portas branco, podia ser usado, melhor se tivesse sido de um único dono. Viajaria para cidades que gostaria muito de conhecer: Rio de Janeiro, São Paulo e Piracicaba.
Ela, não, mudaria de onde morava. Aliás, independente de ganhar na loteria, ia se mudar um dia, mesmo que não fosse de sonho, mas por necessidade. A barra nas redondezas só piorava, então mudar de residência era mais por urgência do que por melhoria. Na verdade tinha pequenos sonhos, conhecer alguém que a tratasse bem, que a levasse para passear, adorava andar de barco no parque municipal, lanchar e dormir debaixo das frondosas árvores. Outro sonho que Elaine acalentava era de poder comprar um sapato alto, embora como ela nunca pudesse usar algum até então, não sabia se conseguiria manter-se, esse era mesmo um sonho alto. Alugar uma pequena lojinha e montar um salão com a irmã, ela ficaria no caixa e faria unhas dos pés e das mãos.
Riram muito quando ela perguntou se ele jogava na loteria. Ele respondeu que não.
Comentaram ainda sobre o que faziam nos dias de folga. Ele ficava mais por conta da mãe e da sobrinha. Levava a menina com freqüência ao zoológico e, na volta para casa, chupava picolé, ele de limão (mais barato) e a sobrinha de brigadeiro (bem mais caro). Às tardes, fazia pequenos reparos ou consertos em casa ou via futebol, ainda que desgostoso do time que há muito não tirava nenhum dos campeonatos que disputava. De resto, era isso, no caso dele.
Ela lavava roupas, arrumava o armário, fazia unhas e procurava conversar com aqueles da família que estavam em casa. Visitava uma ou outra amiga, trocavam meia dúzia de fofocas, os finais prováveis das novelas e muita intimidade, que para ele não teria coragem de abrir.
Por último falaram dos seus relacionamentos. Agora ambos estavam sozinhos, sem ninguém para estar e pensar. Ele falou daquelas que o marcaram mais, uma com quem viveu alguns anos, mas que era muito pouco confiável, a ponto de por força do ciúme e da suspeita ele faltara de serviço algumas vezes para tentar surpreender a mulher. Não disse se acontecera, isso ficou no ar. Outra, mais confiável, esteve sem regularidade, mas era muito chata, pegajosa e se metia muito nos problemas da família, um dia mandou à merda a mãe dele doente. Enfim, mulher para ele era mais transtorno do que alegria.
De parte dela, não, ela já se apaixonara algumas vezes e no geral não tinha a reclamar até o desfecho, quase todas às vezes por traição do companheiro. O último, de quem ela gostou mais, era casado e vivia dizendo que iria separar da esposa, até o momento que ela descobriu que ele não tinha uma, mas duas esposas e uma namorada firme em Cariacica, no Espírito Santo. Ela não estava desesperançada, mas procuraria escolher doravante melhor os seus amores, mesmo sabendo que homem tudo não presta.
Foi a última coisa que Elaine disse a Fred, quando desceu do ônibus e foi direto para a cabine do fiscal da empresa entregar-lhe a receita do dia.  Disse ao fiscal que Fred era um companheiro de trabalho muito legal e um excelente motorista. Tomara que ela, como trocadora, pudesse reencontrá-lo em outra escala de serviço.
Passou no toalete do bar próximo a cabine do fiscal, trocou de roupa, refez a maquiagem e voltou para casa. Até satisfeita pela noite.

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