quarta-feira, 8 de junho de 2011

PERSPECTIVA

Um único sapato branco. Não um par completo. Um único pé, o esquerdo, de sapato branco. Do momento que saiu da fábrica com a etiqueta de OK, contava dois anos. Passado por diversos lugares, tomado chuva e sol, limpo e lustrado inúmeras vezes. Guardado, esquecido, às vezes e de repente voltado, passear...
Agora lançado fora, ali junto a restos de tantas coisas, outras. Sem o par com que fez tantas andanças. Sozinho, esperando o que viria a ser, sem ser sapato de um par, de sapato branco. Meses, até que um dia, um cão farejando restos de alimentos o moveu e o colocou de borco. E, novamente, dias e noites, na mesma posição, acumulando restos de pó, todo tipo dele. Inerte. Chuva, sol, garoa, sereno, pó. Fizeram, certa vez, uma limpeza no terreno e afastaram todos os restos inclusive o pé de sapato branco. Imundo, misturado a tantos outros restos, entulhado num canto do terreno.
Algum tempo depois estiveram fazendo uma coleta seletiva. Ele ficou entre aquilo que poderia vir a ter alguma utilidade ainda. Foi lavado junto a tantos outros pedaços de coisas, outras. Jogados dentro de uma caixa de papelão. Meses a fio. Inerte. Por duas vezes em anos vasculharam a caixa a procura de algo. Ele movimentou-se um pouco, e só.
Certa vez retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa, entre elas o sapato branco, o pé esquerdo de sapato branco. Meses a fio. Inerte. Uma ou outra movimentação na caixa. Meses a fio. Inerte.
Certas vezes jogaram dentro da caixa outras coisas.
Um tempo depois retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa, entre elas o sapato branco, o pé esquerdo de sapato branco. Meses a fio. Inerte. Uma ou outra movimentação na caixa. Meses a fio. Inerte.
Outras vezes jogaram dentro da caixa outras coisas.
Alguns anos depois retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa, entre elas o sapato branco, o pé esquerdo de sapato branco. Meses a fio. Inerte. Uma ou outra movimentação na caixa. Meses a fio. Inerte.
Certas vezes jogaram dentro da caixa outras coisas.
Belo dia retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa. Nesse dia, entre as que foram levadas, estava o sapato branco, o pé esquerdo de sapato branco.
Foi colocado numa bancada. Separam o couro da parte de cima, a sola e o cadarço. O cadarço foi colocado num prego fixado na parede. Do couro da parte de cima foram feitas rodelas que foram fixadas com cola nos seis pés de um sofá. Os retalhos do corte das rodelas foram juntados a outros retalhos de tantas coisas e queimados.  A sola, toda ela, voltou para a caixa de papelão.
O cadarço ficou meses a fio no prego fixado na parede. Inerte. Um tempo depois foi usado para prender a uma escora galhos de uma árvore em formação. Depois que a árvore tomou aprumo, tiraram o cadarço, juntaram-no a tantas outras coisas e queimaram.
Enquanto isso, e por diversas vezes, retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa, entre elas a sola do sapato branco, a sola do pé esquerdo de sapato branco. Meses a fio. Inerte. Uma ou outra movimentação na caixa. Meses a fio. Inerte.
Certas vezes jogaram dentro da caixa outras coisas.
Belo dia, retiraram a caixa do local e a esvaziaram toda no chão. Algumas coisas foram levadas, outras voltaram para a caixa. Nesse dia, entre as que foram levadas, estava a sola do sapato branco, a sola do pé esquerdo de sapato branco.
Às vezes, olhada a vida na perspectiva da eternidade, eu penso que se assemelha.
Ou não?
Até breve.

Um comentário:

  1. Lembrei-me de uma frase: Morrer é muito fácil VIVER que é difícil.
    Talvez tenha lembrado dela pois para Viver é necessário estar em contante atiVIDAde, rompendo a inércia.

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