Entrei o ano de 1979 como Chefe de Serviço de Planejamento Organizacional, com o salário de Cr$42.797,00 e responsável pelo desenvolvimento de estudos para evolução e adequação da estrutura organizacional, além da elaboração de todas as normas e processos administrativos da empresa. Contava com uma equipe de mais de quinze pessoas. Eliseu tornara-se Gerente de Organização e Salários, portanto, das áreas mais estratégicas da empresa binacional. Transferimos para o Roberto a gestão de todos os salários, mensalistas e horistas.
Nessa época a Fiat contratou outra consultoria organizacional, franco-alemã, um negócio de doido, ORGware 4, que chamava a ‘coisa’. Colei nos consultores e saí fazendo adaptações tupiniquins e tornei-me especialista no assunto. Deve ter sido o país que a ‘coisa’ recebeu mais transgressões. De tal maneira e tal expressão que quando os consultores deixaram a Fiat eles já não reconheciam o seu produto. Ficou massa e um grupo muito grande de gerentes que eu pude repassar a tecnologia ficaram feras no assunto. Aquilo passou a ser FIAT.
Dessa época tenho saudosa memória de um grande sujeito. Lyrio do Valle Filho, esse merece o nome todo. Não veio a ser meu padrinho, porque meu casamento já havia acontecido quando começamos a trabalhar juntos e mesmo que fosse à época eu não o teria convidado. Temia que ele pudesse aprontar na igreja. Lyrio era louco. Louco mesmo. Algumas demonstrações: nós morávamos no mesmo bairro e cedo pegávamos o mesmo ônibus da Fiat para ir para a fábrica. O ônibus sempre parava numa praça logo na saída do bairro e um jornaleiro já estava esperando o Lyrio para entregar-lhe o jornal do dia. Lyrio pegava o jornal pela janela, pagava o menino e separava o primeiro caderno para começar a ler o jornal. Colocava os demais cadernos do jornal na poltrona e sentava-se sobre eles. Diversas vezes eu vi pessoas pedindo a ele para ler e Lyrio sempre respondeu: ‘Quer ler, compre o seu. ’ Quando chegava à fábrica Lyrio punha todo o jornal dentro de uma gaveta e a trancava. Depois do almoço ele ia para sala, colocava os pés sobre a mesa e voltava a ler o jornal. Na medida em que acabava de ler, sempre na mesma sequência, ele rasgava em pedaços bem pequenos os cadernos do jornal. ‘Você quer ler, compre o seu. ’ Ele tinha ciúmes doentios de suas coisas: era bom não pedir nenhuma borracha, lápis, caneta ou até um clips. ‘Você quer, requisite o seu. ’
Com esse rigor ele era um dos meus mais caros especialistas em projetos de formulários que integravam as normas de procedimentos elaboradas por nossos analistas. Achei que ele poderia contribuir no ORGware 4. Tratava-se de um processo de racionalização e simplificação de processos, portanto, também de geração de formulários. Lyrio cismou com determinado processo da área de após-venda.
- ‘Agulhô, nós temos que acabar com aquela papelada inútil! Com aqueles arquivos de aço... ’
- ‘Vá com calma, Lyrio, o importante é que o gerente perceba e tome a iniciativa... ’ Eu ponderava.
Um dia fiquei sabendo que ele havia conseguido racionalizar de vez os arquivos que ele julgava desnecessários. Ele visitava a área e aproximou-se dos arquivos sobre os quais havia uma bandeja com duas garrafas cheias: uma de café e outra de suco de manga. Ele disse que avaliaria a adequação do arquivo e abriu todas as gavetas, de tal sorte que a primeira de baixo ficou totalmente aberta, a seguinte um pouco menos, a terceira um pouco menos ainda e a última a que ficou menos aberta. Pegou uma cadeira e ‘inadvertidamente’, ou melhor, ‘sem querer’ rodou a cadeira sobre o arquivo derrubando exatamente sobre as gavetas semi-abertas todo o café é suco de manga existente nas garrafas. Aquilo virou uma sujeira. A secretária disse que o chefe ia matá-la, pois aqueles documentos era o que ele mais prezava na vida. Se procurarem nos manuais franco-alemães do ORGware 4 não encontrarão tal procedimento de racionalização.
Em todos os anos que trabalhei na FIAT nunca fui mordido pela necessidade de voltar à escola. Na verdade, não havia como, trabalhei demais, viajei demais, aprendi demais, me dediquei demais. E estou certo de que nenhuma escola poderia proporcionar-me tamanho aprendizado. Foi um imenso privilégio que Eliseu havia proporcionado quando assumiu o risco da minha contratação contrariando a posição técnica da brilhante Etur, de quem me tornei depois um grande admirador e amigo.
Foram, portanto, anos de intenso trabalho e significativas vivências. No final de 1979 ele me chamou à sala dele, fechou a porta e eu senti que ele ia me dizer algo de muito sério.
- ‘Sente-se, Agulhô. ’ Colocando a sua mão no meu ombro e dirigindo-me para a poltrona à frente de sua mesa.
- ‘Acabou... ’ Disse lacônico, sentando-se na sua poltrona.
- ‘Acabou o que, cara?’ Perguntei preocupado.
- ‘Estou deixando a FIAT... ’
- ‘Você ficou louco, Eliseu? Disse o discípulo.
- ‘Vou assumir a direção da empresa do meu sogro, a avicultura... ’
Nós não somos fiéis às empresas, personalidades jurídicas, nem aos seus grandes e glamorosos slogans. Somos fiéis às pessoas com as quais criamos vínculos e propósitos. Queremos construir com pessoas com as quais temos afinidades de caráter e com as quais nós sentimos que valem à pena estarmos juntos. Queria que Eliseu soubesse, e ele sabe disso, que ele foi um dos líderes mais expressivos com os quais eu trabalhei até aqui e que devo a ele cinco anos preciosos do início da construção da minha vida adulta.
Vladimir veio em 1978. Valesca veio em 1979. Bernardo já estava a caminho, quando deixei a FIAT em 15 de abril de 1980, com um salário de Cr$88.507,00.
Muito obrigado, Eliseu. Muito obrigado, padrinho.
Até breve.
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