sábado, 25 de junho de 2011

FIAT IV

Na verdade Felipe era um especialista em trotes. Outro que ele aplicou foi num estagiário recém contratado para apoiar a nossa área. Felipe pediu ao rapaz que fosse ao galpão da mecânica buscar o motor do tecnígrafo (equipamento que substitui o conjunto régua T e esquadros). O tecnígrafo é fixado na prancheta em sua parte superior esquerda podendo movimentar-se por toda a área da prancheta. O menino rodou a fábrica inteira atrás do motor do tecnígrafo. Claro: o tecnígrafo não tem nenhum motor.
Inaugurada a fábrica, estabilizadas as relações, sedimentadas as estruturas a diretoria houve por bem analisar a configuração dos quadros. Em janeiro de 1978 eu fui novamente promovido, agora à Chefe de Serviço com o salário de Cr$28.000,00, portanto quase 28 vezes mais do que aquele da contratação. Mesmo considerando os reajustes coletivos foi até ali uma carreira meteórica. Desconsiderados os auto-elogios à performance do autor deste blog, desnecessários diga-se de passagem, a Fiat proporcionou a milhares de pessoas um desenvolvimento extraordinário. Já em 1978 começaram as substituições de italianos por brasileiros: lembro-me de Bogus, na área Comercial, que por sinal chegou à Diretor da Área. E não foi porque ele era primo do Armando Bogus, aquele ator famoso da Globo na época. Contracenou com Sônia Braga na novela Gabriela, fazendo o papel do turco. Lembro-me ainda de Garzon, esse um engenheiro da porra (estou escrevendo esse blog na varanda de uma pousada em frente da Praia das Conchas em Itacaré, me veio a idéia de usar uma expressão local). Garzon, eu já havia saído da Fiat, chegou também a Diretor Industrial. Praticamente todos os brasileiros tomaram  posições gerenciais. Enfim o projeto de instalar a fábrica com elevado índice de nacionalização inclusive da gestão já em 1978 tornava-se realidade.
Contrataram uma empresa de consultoria internacional para fazer a análise da estrutura inclusive da adequação dos efetivos quantitativa e qualitativamente. Surgiu aqui outro personagem marcante na minha carreira: Marco Pecore. Esse cara foi o responsável por eu adquirir um sonho: vir a ser consultor. Pecore era um sujeito brilhante. Magro, esguio, boa pinta, tinha uma pequena agenda onde anotava principalmente suas viagens. Um dia dei uma folheada e vi: Londres, Paris, New York, Berlin, etc. Ele viajava o mundo inteiro prestando consultoria. Colei nele e só desgrudava quando ele saía da fábrica para ir para o hotel. E o bacana é que o cara também me adotou.
Marco Pecore desnudou a fábrica. Sentávamos juntos à frente dos gerentes das áreas e ele fazia poucas perguntas e, com uma habilidade ímpar, apontava oportunidades de ganhos de produtividade expressivas. Ao longo de todo o ano de 1978 trabalhamos praticamente juntos e mapeamos todas as áreas apontando oportunidades de ajustes de quadros. Além de ampliar meus horizontes conceituais e metodológicos Marco Pecore me ensinou a abordar questões aparentemente complexas de uma forma rigorosamente simples e em bases matemáticas com a adoção do que ele chamava de parâmetros significativos. Todo trabalho pode ser medido através de parâmetros que dão a dimensão da demanda de tempo a ser despendido. Alguém que se interessar um pouco mais à respeito estou disponível para uma sessão de consultoria. Para leitores do blog faço módicos descontos.
É também em 1978 que ocorre um fato histórico para a Fiat brasileira. Durante as negociações para o acordo coletivo, o Diretor Industrial chegou do lado de fora da sala do Dílson e disse com ar de surpresa:
- ‘ Dr. Dílson, a fábrica estar parada!’
Eu estava em reunião com o Dílson e lembro-me que ele olhou para as luminárias e disse:
- ‘Como parada se há energia?’
- ‘Parada e todos os operários estão em frente das máquinas com os braços cruzados. ’
Somente meia-hora depois é que Dílson perguntou: ‘Será uma greve?’ Era. A primeira e pelo que me consta a única greve que a Fiat experimentou até aqui na sua historia. Dalí em diante foram registrados os mais grosseiros erros na administração de um movimento grevista. Fizemos tudo o que manda o melhor manual de como administrar uma greve buscando o desastre. Convocamos a polícia militar, que se apresentou com seus homens montados a cavalos com seus ‘cassetetes família’ roliços de mais de um metro de cumprimento. Eles postaram um ao lado do outro com uma distância de três a quatro metros contornando toda a fábrica. Foram infiltrados agentes do DOPS para identificar as lideranças que se misturavam aos operários.
Sobre isto alguns comentários que ouvimos passada a greve. Um ou outro agente consultara a um operário: ‘E aí, como você acha que vai ser nosso número?’referindo-se ao percentual de reajuste reivindicado. ‘O nosso a gente sabe. O seu a gente não tem a menor idéia e nem quer saber... ’ O problema foi que os agentes infiltrados entraram para dentro da fábrica de sapatos bico fino e fumando cigarro de ponta. Um desastre. Outro fiasco: determinamos que os chefes de equipe, grupo acima de encarregados, tinham que entrar para operarem as máquinas. Terminada a greve mandamos flores para as esposas para agradecer pelo sacrifício da ausência do marido no período. Várias mandaram telegrama, ligaram por telefone, dizendo que já não tinham mais nada com aquele sujeito, aquele safado, etc. Um horror.
Como os policiais guardavam as cercanias da fábrica os operários se aglomeraram no trevo da entrada da BR e ocorreu um atropelamento com vítima fatal de um dos nossos funcionários. Aí foi suficiente para agravar ainda mais a situação.
Passada a greve, terminado o conflito, fizemos uma profunda reflexão sobre todos os acontecimentos. Também aqui agradeço a vida por ter me permitido viver essa experiência.

Até breve.



Prancheta com tecnígrafo.

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