segunda-feira, 6 de junho de 2011

ESPERANÇA

“Que prevaleça em todos a consciência da vocação da espécie humana para realizar em sua vida temporal, a lei de compreensão mútua e a dignidade da pessoa humana.”
Essa minha amargura aos dezessete. Na época, era 1969, pouco depois do Ato Institucional número 5, baixado pelo governo militar. Ficávamos horas a fio, sentados no banco da Praça Duque de Caxias, debatendo sobre os caminhos da resistência. Ainda hoje penso se eu devo citar nomes daqueles que tramavam. Embora o perigo hoje seja outro, ainda não me convém.  Nesse mesmo ano, meu irmão dois anos mais velho viria a ser expulso do exército, vitimado por ter sido confundido com um membro da ALN - Aliança Libertadora Nacional, infiltrado nas fileiras do verde-oliva. Minha irmã estava presente no dia da expulsão e foi ela quem nos contou o acontecido num quartel da PE de Brasília. A tropa no pátio perfilada, meu irmão uniformizado a frente do batalhão. A corneta toca e a tropa toda dá as costas ao jovem indefeso. A solenidade prossegue com a bandeira nacional descendo no mastro e um oficial retira com a espada parte dos ombros do paletó do uniforme do rapaz que chora. Meu irmão tira o paletó, joga-o ao chão, arranca a bandeira do mastro e envolto nela grita: ‘se um dia eu tiver que defender o meu país, vou de calça jeans e sandália de dedo, mas não visto esse verde oliva nunca mais na minha vida!’ Romântico, o cara. Meus pais sofreram por demais nessa época. Lembro-me da carta de minha mãe endereçada ao general comandante para que libertassem o filho preso depois do episódio. No envelope, além da carta, seguiu também uma mecha dos cabelos encaracolados do meu irmão que ela, para seu cuidado e encantamento, mantinha na nossa infância e depois que cortava já na pré-adolescência, guardava de lembrança. Nunca mais recebemos de volta os cabelos encaracolados do nosso irmão.
Nossa trama era de outra ordem. Não nos interessava o homem e as suas circunstâncias históricas, ideológicas, econômicas, políticas. Não era o homem, produto da cultura e de seu tempo. Portanto, nossa questão essencial não era de nos ocuparmos com a ditadura, embora um ou outro, de quando em vez, sofria da pecha de subversivo ou comunista. Eu andava com um macacão jeans, camiseta, sandálias de couro com sola de pneu. Os cabelos nos ombros. Confundiam-me com todo tipo de tipo, o que para mim era indiferente, porque nossa idéia não era a de revolucionar o homem, mas o Humano. Nunca tive tino para questões partidárias, separatistas, adversárias. Um porre o debate comunistas e católicos, socialistas e imperialistas, comunistas e capitalistas. Estado e Igreja, nem pensar. Esquerda, direita, democratas, republicanos, monarquistas e conservadores, tudo isso um saco. Nossa questão era anterior, o elemento Humano, ainda que perpassado pela História.
Comia livros. Escrevia alguns, hoje impublicáveis, pois nem eu mesmo serei capaz de saber as entrelinhas. Nesse mesmo ano conheci a minha guia por quem, irremediavelmente apaixonado, abandonei a loucura. Com ela vieram os filhos e toda a vida doce que me permitiram.  No fundo, e por eles, adormeceu o poeta. Completamos, eu e minha guia, juntos aos nossos filhos e seus pares, no final do ano passado, num pic nic  nos jardins do Palácio de Versailles, 500 meses de aliança desde que os nossos olhos encontraram-se pela primeira vez na mesma Praça Duque de Caxias.
O que me traz aqui, já disse, é a proximidade dos sessenta e cada dia ainda mais perto do inevitável. Urge o sentido.  Foram mais de quarenta anos de forja, temperados pela vida extraordinária que a vida me proporcionou. É preciso voltar ao propósito original, urgente. Breve virão netos e, seguramente, abandonarei novamente a minha loucura. Minha paixão se deslocará.
Daí a razão pela qual trouxe a dinâmica de frases. Não posso dizer que compreendo absolutamente o humano apenas pela experiência trazida pela exposição de mais de 10000 pessoas. Posso dizer, por tudo que experienciei (a palavra quer um misto de vivência e ciência) que sinto quase uma desesperança de que seja possível um dia nos tornarmos humanos, demasiadamente humanos.
Não enxergamos o outro, não somos capazes de manter a nossa pessoalidade, somos belicistas quase selvagens, não somos confiáveis essencialmente e longe de sermos puros, somos capazes de nos matar uns aos outros e de diferentes formas e planos inclusive com frases e/ou olhares assassinos. E o pior, somos capazes de submeter, coagir, anular o outro que é sempre a nossa maior riqueza, como queria Guimarães Rosa: ‘Eu sou porque me diverjo.’ Como posso ser sem ser outro do outro, individuo? Dual, portanto.
A dinâmica me proporcionou outra observação importante. Não sabemos ler e olhem que os participantes em toda a sua maioria eram de graduados, pós-graduados e até doutores.
Que venham meus netos, porque quero esperar neles.
Até breve.

5 comentários:

  1. O inevitável traz a experiencia e a valoração "daqueles" que nos são as verdadeiras riquezas, e hoje estão por vir.. netos para vocês, filhos para nós!bjão Camila

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  2. Agulhô, seus textos sempre me emocionam! É incrivel poder conhecer, por meio do blog, um pouco do que vc pensa, alguma coisa sobre o que vc viveu e o tanto de juventude contida nas suas expectativas! Que venham os netos, logo!

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  3. Valesca, olha a responsabilidade!!!

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  4. Ah bao e a sua Fá, não conta???!!!

    Mas, de toda forma, já que vai ser o jeito de tirar ele da loucura novamente...

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  5. Se sua expectativa é contar todas as suas experiências, fico tranquilo que teremos muitas coisas ainda para serem lidas aqui.
    Sinto um maior prazer em ser seu filho.
    Que venham os netos....

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