Por volta dos sete anos comecei a ter atividade remunerada para, por força das circunstâncias, engrossar o orçamento doméstico. Eram doze bocas em casa. Meu pai mecânico tinha uma pequena indústria de máquinas de cerâmica num galpão construído por ele em frente à nossa casa, com demandas que oscilavam com freqüência e ele não conseguia suprir a tudo. Até os sete anos, então, me limitei a ajudas domésticas convencionais: varrer quintal, regar plantas e cuidar do jardim, raspar com palha de aço os tacos do piso das salas e dos quartos da casa, encerá-los e lustrá-los com um escovão que até hoje sinto o peso. Enceradeira veio só muito mais tarde e lustrar o piso ficou reservado às irmãs. Lavava pratos e talheres, a cozinha e o banheiro (me lembro que pintei com pincéis de esmalte de unhas os espaços de rejunte dos azulejos por causa do casamento de uma das irmãs). Ajudava meus irmãos, de quando em vez, a arrumar a oficina de nosso pai. Minha mãe vivia inventando ‘puxadinhos’ e junto com ela dividíamos as tarefas de servente de pedreiro. Buscava água em baldes num quartel na Praça Duque de Caxias, na época era muito comum a falta de abastecimento de água. Catava arroz, feijão, descascava batatas e fazia compras na padaria. Outros serviços correlatos.
Mas depois dos sete anos, sem prejuízo das tarefas acima, caí no mundo da troca por dinheiro. Foram inúmeras as atividades empreendidas. Tínhamos no quintal de nossa casa dois abacateiros e uma jabuticabeira extraordinariamente férteis que davam várias colheitas/ano. Na safra, junto com meu irmão mais velho (o que mais tarde veio a ser expulso do exército), montávamos com caixotes uma bancada em frente de casa. Aos domingos, próximo à nossa casa, era instalada uma feira livre e como nossa casa ficava numa das ruas principais do bairro, dava muito movimento de pessoas em direção às compras tanto na ida quanto na volta. Meu irmão, mais forte do que eu, e esperto com as matemáticas, cuidava das vendas e do caixa. A mim cabia toda a logística: colheita dos produtos na fonte, lavagem e arrumação dos mesmos na bancada. Cabia também a persuasão a clientes que passavam do outro lado da rua, ia buscá-los puxando pelas mãos insistindo para que vissem nossas suculentas mercadorias. Fui várias vezes à feira tirar clientes na frente de bancas de abacates ou de jabuticabas argumentando que nós tínhamos colhido no pé naquela manhã e eram doces, etc. e tal. Ganhei alguns pescoções de feirantes por isso, mas não me arrependo. Na verdade sempre achei que essa tarefa deveria caber ao meu irmão.
Simultaneamente ou mesmo fora da safra de abacates e jabuticabas, vendi pelas ruas do bairro inúmeros produtos, a maioria em bandejas ou tábuas com pirulitos, chup chup, picolé, bolinhos de feijão, brevidade, pasteis, empadinhas e outros correlatos. Lembro-me de um crime que cometi nessa época contra clientes, pelo que hoje eu seria punido pelo Código do Consumidor. Eu estava, no dia, com uma bandeja de bolinhos de feijão e acabara de pegá-la junto à senhora que produzia e me pagava comissão por aqueles que eu vendia. Sempre recebi a comissão integral porque eu ficava na rua até o último bolinho de feijão ser vendido. Nunca comi nenhum e toda a féria do dia eu entregava, inclusive os centavos, à minha mãe. Aos domingos à tarde ela presenteava-me com ‘uns trocados ‘para matinê do cinema e um pacote de balas de goma. Ah, sim, o crime: eu estava então com a bandeja cheia de bolinhos de feijão andando por uma rua onde sempre ficavam estacionados alguns caminhões de onde pingava no chão óleo das suas máquinas. Eu tropecei e cai. Eu andava sempre descalço, sapatos só para a missa e matinês aos domingos. A bandeja escapuliu, fiquei só com o paninho que cobria os salgados na minha mão e vi, desesperado, os bolinhos rolarem lentamente sobre o óleo imundo. Imediatamente recolhi todos e os joguei dentro da bandeja cobrindo-os com o paninho. Olhei para os lados e percebi que ninguém havia prestado atenção à minha queda. Comecei a chorar e a pensar como seria a volta para casa. Como eu iria pagar os bolinhos para a senhora que os produzia e como eu explicaria para a minha mãe que naquele dia eu não havia conseguido nenhum dinheiro. Sentei-me no meio fio de uma rua mais distante do local da queda, parei de chorar, e limpei cada um dos bolinhos na minha camisa e na calça-curta, recolocando-os um a um de volta na bandeja. Quando me levantei bateu a culpa: eu não poderia vender os bolinhos com aquela qualidade arranhada. O medo foi maior do que a culpa, provavelmente eu perderia a fornecedora além de minha mãe ter uma forte justificativa para a surra do dia que ela alternava entre vara de marmelo e chicote curto. Ocorreu-me de ir a garage de ônibus onde sempre encontrava mecânicos fregueses. Lá vendi todos com o coração aos saltos e a consciência em frangalhos. Lembro-me quando ia saindo e um dos mecânicos me abordou: ‘Menino que diabo de tempero a dona colocou hoje nesses bolinhos, tá com um gosto danado de óleo... ’ Num repente olhei para as mãos do cliente insatisfeito e lhe fulminei com: ‘também o senhor pegou os bolinhos com essas mãos imundas de óleo... ’ Fiquei um bom tempo sem voltar àquela garage e, quando voltei, jamais levei bolinhos de feijão.
Esse batido foi até perto dos onze ou doze anos de idade, pois a partir daí as ocupações ficaram mais regulares ou fixas. Um dia eu passava à frente de uma loja de tecidos do bairro onde morava e vi um monte de fardos de madeira que embalaram tecidos entregues. Eu recolhia parte deles, serviriam exatamente para bancadas de nossas feiras. Um senhor aproximou-se de mim e interpelou-me. Tomei um susto, achando que não poderia recolher os fardos. Ele me perguntou então se eu gostaria de trabalhar na loja. O susto foi maior ainda.
Fiquei lá na loja de tecidos por um bom tempo. A altura do balcão era pouco inferior à minha, portanto eu deveria aguardar um tempo para vir a ser vendedor. Fazia de tudo na loja, menos vender e operar o caixa. Limpava balcões e prateleiras, pisos e banheiros. Buscava e levava mercadorias nas casas de clientes, entregava carnês a domicílio. O meu sonho, no entanto, era ser vendedor como Jaime o melhor vendedor da loja. Ficava sempre a espreita dele, vendo como ele media, cortava, dobrava e embrulhava os tecidos que vendia. A cordialidade com os clientes, tratando-os pelo nome, perguntando sobre a família, os sãos, os doentes, as vitórias e as conquistas, as dores e alegrias dos clientes. Levava-os invariavelmente até a porta da loja, eu ficava intrigado com o procedimento que se aplicava a todos, inclusive àqueles que compravam apenas um retrós ou uma agulha. Foi Jaime que me pediu para atender uma senhora que queria ver um tecido para forro de vestido. Eu olhei para ele incrédulo e ele olhando para a cliente disse: ‘Dona Fulana o menino vai atendê-la, a senhora se importa?’ Ela olhou para mim e disse: ‘Vamos rápido, meu rapaz, que eu estou com pressa!’ Ali começava a minha primeira venda. Só não cortei o tecido, mas todo o procedimento cumpri a risca, até acompanhar a cliente à saída da loja e despedir-me dela solenemente. Quando voltava para o interior da loja com os olhos marejados pude ver a satisfação do Jaime. Corri até ele e o abracei calorosamente.
Não é verdade que por isto acima eu não tive infância. Antes pelo contrário, foi ali que eu aprendi a maior lição da minha vida que até hoje renovo: buscar tirar o maior prazer em tudo o que estiver fazendo. Curti, intensa e apaixonadamente, tudo o que fiz até aqui, inclusive agora este blog. Nos intervalos entre a escola e os afazeres, entre o escovão, a palha de aço e as bandejas de salgados, picolés e assemelhados, eu ia à rua. E como eu vivi as ruas, meu Deus? Tudo, praticamente tudo, o que uma criança pode viver eu vivi. Fiz todos os meus brinquedos, nunca ganhei nenhum, nem mesmo no natal. Fiz todos: carrinhos de guia, fincas, manivelas, jogos de botão, traves de futebol, bolas de meia, pipas (milhares delas e de todos os tipos), caminhões e carrinhos miniaturas de madeira, tábuas de sebo sobre as quais descia em alta velocidade as ladeiras calçadas por pedras pé-de-moleque. Brinquei de tudo que a criançada da minha geração brincou: pula-toco, bentialtas, rouba-bandeira, pegador-de-lata, pic-esconde, polícia e ladrão, pau-de-bosta, faroeste, pau-de-sebo e um sem número de traquinagens. Se alguém interessar-se eu posso depois descrever cada um em detalhes.
O futebol, no entanto, era a minha maior paixão. Joguei todas as peladas que ocorreram no meu bairro durante a minha infância. Todas. Onde tinha uma bola (qualquer coisa esférica e chutável) eu estava na de dentro ou na primeira de fora. Deixava tudo de lado, por diversas vezes nas minhas andanças para venda dos salgados e outros trens escondia a bandeja num canto, jogava minha peladinha e depois ia dar cabo dos produtos. Isso naturalmente demandava tempo e eu voltava para casa todo dia muito tarde e, impressionante a disciplina materna, minha mãe sempre me aguardava no portão e descia o cacete. Tinha descoberto que uma surra mesmo de chicote ou vara de marmelo só doía na hora, no dia seguinte eu estava pronto prá outra. Uma coisa irritava-me na minha mãe quando ela me dava a surra diária: ela mandava eu parar de chorar e eu sempre dizia: como posso parar de chorar se a senhora está me batendo?
As brincadeiras foram tornando-se mais raras. Cessaram de vez quando eu fui contratado pela loja de tecidos e passei a estudar à noite. Meu colégio ficava a uns quatro quilômetros e eu fazia o percurso a pé, de ida e de volta, todas as noites. Aos sábados e domingos era direto na rua e minha mãe aposentou a vara de marmelo e o chicote.
Por volta dos quatorze anos o dono da loja de tecidos me chamou ao escritório que ficava nos fundos da loja. Passei pelo Jaime, que abaixou a cabeça. Havia uma crise, a loja do começo da avenida no centro da cidade tomava todos os nossos clientes, eu já havia percebido antes do dono da loja justificar como sendo a razão pela qual se encerraria ali a minha promissora carreira de vendedor de loja de tecidos.
Dos quatorze aos quinze e poucos anos me virei como pude, tinha que pagar a mensalidade da escola onde estudava. Nessa época peguei um biscate para distribuir folhetos de propaganda no centro da cidade. Fiquei algumas semanas nisso até que um dia meu saco estourou. Pela manhã eu carregava um monte de pacotes fechados com os folhetos. Deixava-os num canto da portaria do Edifício Acaiaca, por gentileza dos porteiros, pegava alguns pacotes e ia distribuir os folhetos ali na esquina da Avenida Afonso Pena entre Tamóios e Espírito Santo durante praticamente o dia todo. Numa noite dormi mal e achei que minha carreira de propagandista também estava no fim. Levantei no dia seguinte, passei no escritório onde apanhava todos os dias os pacotes com folhetos e fui para o centro da cidade. Subi até o vigésimo terceiro andar do Edifício Acaiaca. Abri todos os basculantes, retirei o invólucro dos pacotes e arremessei todos, literalmente todos, lá do alto. Foi lindo, mas estressante. Desci correndo as escadas, observando a caída dos folhetos. Já na rua fui parar nas escadarias da Igreja São José de onde ainda deu para eu ver alguns poucos folhetos bailando no ar. Sumi no mundo, temeroso que me pegassem por ter coalhado a principal Avenida de Belo Horizonte de folhetos de propaganda.
Foi por esta época que aconteceu o episódio com minha mãe que narrei no post BENÇÃO. Fui morar num quarto de despejo nos fundos da casa de uma das minhas irmãs que havia se casado recentemente.
Acho que por hoje está por demais.
Até breve.
Brigado Serginho pelo incentivo. Estando você em BH ou eu em BSB quero muito ouvir suas duas histórias. Prometo-lhe escrevê-las, sempre e quando puder citar a fonte. Grande abraço.
Fiquei aqui pensando, como vc, meu pai, nossos avos, desde crianças participavam dos fazeres, assumiam pequenas responsabilidades, participavam da lida domestica. Cresceram homens e mulheres dignos, trabalhadores, honestos, perseverantes e justos.
ResponderExcluirHoje minhas filhas, geraçao Z;Y (Shuf), crias do Estatuto da Criança, da TV Globo e da Malhacao, custam a arrumar a propria cama. Amigas, terapeutas e professoras torcem o nariz e me chamam de brava e exigente quando coloco as responsabilidades para elas e compartilho algumas decisoes do orçamento domestico ou escolher entre a roupa de marca ou uma sem griffe, qdo cobro notas da escola, etc
Vejo vc e a Vera com seus filhos, sempre admirei com encanto sua familia, desde que conheci a Valesca, e observo neles o fruto da educacao que vcs 2 construiram.
Agora ao ler seu depoimento fiquei mais tranquila e mais feliz.
Estou indo em um bom caminho.
Um beijo!
Izabela
Ah, que pena. Estava esperando chegar no vendedor de livros. Muito legal.
ResponderExcluirLozinho, como diria a mamãe, "você é triste mesmo, venceu até a vara de marmelo!?"
ResponderExcluirAbraço, Julio