quinta-feira, 16 de junho de 2011

CARREIRA IV

No ano seguinte ao serviço militar a crise era mais aguda. Em casa fervilhava de problemas de toda sorte. Decidi ir para o mais longe que eu pudesse. Fui parar, em janeiro de 1973, em Alto Garças, Mato Grosso, como auxiliar administrativo de uma empresa construtora de estradas.
Morei numa casa que havia sido a sede de uma fazenda desapropriada para construção da obra. Nomeamos como Baú dos Anjos. Éramos entre dez e quinze, pois flutuava muito a permanência. Engenheiros e pessoal da administração da obra. Grandes caras, aqueles. Estávamos no meio do nada e fizemos uma grande amizade. Lembro-me do Sr. Elias, topógrafo, sábio, que havia sido abandonado pela mulher e resolveu viver rodando as estradas, como diziam os trabalhadores da obra: ‘fervendo o trecho’. Para se ter uma idéia do local: o vizinho da república, de uma chácara aberta, veio um dia reclamar conosco que as galinhas estavam sumindo, se nós estávamos por acaso dando cabo delas. Embora fosse uma boa idéia, não éramos nós os larápios. Para mim, especialmente, seria uma tremenda regressão: de mula de contrabandista de jóias e relógios para ladrão de galinhas, era por demais. Uma noite, Luiz Carlos, um dos engenheiros da obra acordou todo mundo dizendo que estava ouvindo um barulho estranho fora da casa. Pegamos pau de vassoura, facas e outras ‘armas’ e saímos todos com lanternas. Depois de algum tempo vimos algo dando saltos e estava dentro de um plástico. Era uma jibóia de quase três metros de cumprimento. O sacana do Luiz Carlos tinha capturado dias atrás a víbora e a escondido dentro de um saco plástico em um caixote atrás da nossa casa. Teria sido ela a ladra de galinhas? Demos de presente ao vizinho e nos fartamos de sopa de jibóia preparada pela esposa do sujeito que de quando em vez levava também galinhas em diferentes cardápios. Essa foi a parte boa da permanência em Alto Garças.
A mim cabia a administração da obra. Pessoal, compras, serviços gerais de alimentação, transporte de pessoal, segurança patrimonial. Trabalho bravo de campo, convívio com todo tipo de pessoas, de diferentes regiões do país, de toda índole, com uma rotatividade alucinante. Havia casos de ‘fichar’ o sujeito num dia pela manhã e no final da tarde: ‘eu quero ir embora’. Principalmente aqueles enviados para a pedreira, ficavam o dia inteiro quebrando pedras com um malho de dezoito quilos. Era de doer.
No sábado, dia de pagamento, nos preparávamos para todo tipo de problema a partir das quatro horas da tarde. A turma ia para cidade e acontecia de tudo. E cabiam a mim as providências. No domingo, foram vários, eu ficava ainda na cidade por horas cuidando dos desdobramentos do sábado. Gente ferida, presa, alcoolizada, desaparecida, o diabo. Para casos mais graves, como de assassinatos, vinha um juiz de Rondonópolis. Ele ouvia meia dúzia de testemunhas, fazia uma pesquisa superficial sobre a vida pregressa do réu e determinava a sentença. Alguns eram transferidos para a cidade de origem, outros ficavam na região mesmo, jogados no precipício de uma serra, a Serra da Petrovina.
Eu estive lá, não para assistir execuções, mas à passeio. Maravilhoso lugar. No final da tarde estando no topo da serra era comum a neblina abaixar e tomar conta de todo o despenhadeiro e a gente tinha a impressão que, se dessemos alguns passos, entraríamos no céu.
No dia 04 de junho de 1973, apresentei minha carta de demissão ao engenheiro chefe da obra. Eu estava com os nervos em frangalhos. Na semana anterior à minha demissão aconteceram três episódios que, somados a tantos outros, esgotaram a minha tolerância. O primeiro: eu estava em minha sala quando chegou à janela um senhor e colocou sobre o parapeito uma das mãos enrolada numa camiseta ensangüentada e me disse: ‘Seu José, eu perdi o dedo’. Ele era operador de trator e para fazer o descanso regular de trabalho ia sair da máquina. Jogou-se de cima dela deixando a mão para trás, quando a aliança no dedo da mão esquerda prendeu-se em um dos comandos da máquina e decepou-lhe o dedo.
O segundo episódio: pelo rádio recebi a comunicação de que havia acontecido um acidente em um dos trechos da obra. Um caminhão carregado de pedras havia caído dentro de um riacho de águas rasas. Quando cheguei lá, máquinas estavam tirando os imensos blocos de pedras que destruíram a cabine do caminhão. O motorista e dois operários que estavam na cabine na hora do acidente viraram uma massa única de carne triturada e dois outros que vinham no baú de cargas ficaram soterrados por pedras dentro do rio.
O terceiro episódio: em um dos trechos da obra um grupo de operários estava reunido após o almoço. Eu estava lá e vi um fotografo tirando fotos da turma. Em dado momento, muito próximo de mim, ouço o rapaz gritar, viro-me para ele e vejo o seu desespero. À nossa frente um trator de esteira deu uma brusca marcha a ré e lançou um operário debaixo da esteira. Gritei para o operador que imediatamente puxou a máquina à frente. Corri para próximo, vi o corpo do operário em convulsão e, de uma grande fenda aberta em seu pescoço, saíram pedaços que me atingiram. Fiquei com a roupa com fragmentos de carne e sangue e desabei num pranto nervoso e interminável.
Podia ter poupado a mim e a vocês destes relatos. Perdoem-me.

Até breve.
Na foto:
Acima: Luiz Carlos, Sérgio e José Carlos
Abaixo: Eli, Walmir e eu

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