domingo, 12 de junho de 2011

CARREIRA II

Minha irmã fez o melhor que pode para adaptar o quartinho de despejo, nos fundos do quintal da casa dela, para ser a minha nova morada. A casa ficava numa rua paralela a da casa de meus pais, de tal sorte que a mudança não foi tão grave. Dormíamos eu e Bronco, um poodle inteligentíssimo que ficava me observando durante as horas que eu debruçava sobre livros. Inúmeros, lia-os vários e simultaneamente. Durante o dia ia para biblioteca da Escola de Medicina e os devorava e fazia calhamaços volumosos de anotações e resumo das obras pesquisadas. Meu objeto de interesse era a origem do Homem. Se me perguntarem hoje sobre qualquer dos conteúdos lidos e anotados não serei capaz de construir um enunciado sequer. Até alguns anos atrás eu guardava todo o material dentro de uma caixa.
Para levantar algum dinheiro fiz diferentes trabalhos esporádicos, como a de faxina de uma loja de calçados na Galeria do Edifício Dantês. À noite eu ia à pé para o colégio dar conta do curso regular.
Um irmão de meu cunhado arrumou um emprego para mim no escritório regional de uma grande empresa nacional do setor têxtil. Fiquei fascinado com o edifício, com as salas do escritório, com minha mesa, cadeira, arquivo, porta lápis, clipes e canetas e também com a pequena copa que ficou sob a minha responsabilidade, já que a mim caberia fazer e servir o café aos demais funcionários e eventuais clientes que visitavam o escritório. Aos quinze anos eu tinha um posto de trabalho, um supervisor, uma jornada regular semanal e uma Carteira de Trabalho com o meu primeiro registro de emprego. A empresa tinha sua matriz em São Paulo e veio de lá por malote a minha documentação: carteira funcional, contrato de trabalho, apólice de seguro de vida em grupo e a Carteira de Trabalho do Menor assinada pela empresa com a data de admissão de 02 de outubro de 1967.  
Nesse dia voltei à noite para casa. Minha irmã deixava a porta dos fundos de sua casa aberta para que eu pudesse tomar banho e fazer um lanche. Ela estava sempre dormindo quando eu voltava da escola. Quando entrei no meu quartinho e acendi a luz o Bronco veio me receber pulando nas minhas pernas. Eu segredei a ele um monte de planos futuros, entre eles mudar de escola, comprar uma calça jeans, duas camisas, um par de sapatos, dois pares de meia e três cuecas. Juro, comprei tudo, menos o par de sapatos, na mão do Jaime da loja de tecidos que, para sobreviver, ampliara seu portfólio de produtos e passou a vender moda feminina e masculina, adulta e infantil.  
Minha vida ficou plena. Trabalho, escola, salário. E a solidão do quartinho de despejo me levou à escrita. Por esta época comecei a colocar no papel algo de meu. Guardo até hoje um rol de cadernos de anotações, poemas, pensamentos...
À casa dos meus pais ia geralmente aos sábados e nos finais de mês contribuía sempre com uma caixa de suprimentos: arroz, feijão, café, açúcar cristal e refinado, alguma lataria, ovos e manteiga.
No escritório além das atividades de copa eu cuidava da expedição de cartas, arquivo de documentos e serviço externo de bancos. Meses depois da admissão, por força do meu interesse e insistência, o supervisor passou a elaboração de mapas estatísticos de vendas para a minha responsabilidade. Adorava fazê-los e por força disso comecei a entender o ciclo comercial do escritório. Dava notícia de tudo, no momento do giro do serviço de café consultava os colegas sobre o trabalho de cada um e ia fazendo minhas conjecturas sobre a engenharia dos processos internos. A noite, em casa, à minha maneira, transcrevia para o papel. Bronco, inteligentíssimo, ficava olhando para o menino falando em voz alta sobre o encaminhamento de primeira via de requisição para a seção x, cópia de pedido para o almoxarifado da central, Nota Fiscal arquivada em ...
Um belo dia observei um fluxo de jovens da minha idade no escritório e perguntei ao meu supervisor do que se tratava: estamos recrutando, ele limitou-se a dizer. Poucos dias depois ele me levou à sala do Gerente Geral do Escritório, com quem eu interagia muito pouco. O executivo colocou as duas mãos nos meus ombros e disse em tom solene: você deixa hoje de ser Office-boy e passa a fazer parte do quadro de funcionários auxiliares do nosso escritório. Parabéns, Lopes. Eu deixei de fazer e servir o café, não fazia mais o serviço externo e me deram um curso integral de datilografia avançada.   
 Foi assim a minha primeira promoção.
Até breve.

3 comentários:

  1. Penso que todos imaginamos e criamos muita expectativa em relação a uma profissão e investimento na carreira. Esses pensamentos ultrapassam a realidade e a certamente nos perdemos entre aquilo que imaginamos e aquilo que executamos. Você descreve muito bem a sua carreira e a sua primeira promoção...e cada momento teve o seu valor a agregar. beijos

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  2. Saber de sua origem e onde chegou nos torna mais convicto que precisamos muito imaginarmos para conseguir o que almejamos.
    Ser reconhecido é uma virtude sua, pois isso mais uma vez:
    VOCÊ É O MELHOR EM TUDO O QUE FAZ, PRINCIPALMENTE NO PAPEL DE PAI!!!
    Obrigado.

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  3. Estes posts sobre a sua vida são os meus preferidos! Aguardo continuação!

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