quinta-feira, 9 de junho de 2011

BENÇÃO

Não me recordo exatamente quando, jamais esquecerei o fato e seus desdobramentos. Estávamos almoçando, meus pais, alguns dos meus nove irmãos e eu. Eram sempre acalorados esses momentos, muito debate, muita conversa, muitos problemas. Eu na adolescência, isso me lembro, e como todos nessa época se achando, literalmente. Em certo momento dirigi-me a minha mãe e não sei o que eu disse, com certeza eu devo ter sido muito cruel, pelo que aconteceu imediatamente após. Minha mãe, tomada de uma imensa raiva pelo que havia ouvido, desferiu um violento soco na minha boca e gritou: ‘eu deveria ter te matado no dia em que nasceu’.
Dalí em diante fiquei anos sem falar com minha mãe. Quando tinha que me referir a ela usava o seu nome, jamais mãe.  Por diversas vezes fui severamente repreendido pelo meu pai e ainda assim, mantinha uma tremenda mágoa pelo que havia sido submetido. Repito, foram anos sem me dirigir a ela.
Um dia, eu estava diante da última página em branco de um caderno onde havia feito inúmeras anotações, pequenos escritos, poemas, pensamentos. Num impulso veio um título e eu o escrevi, demoradamente, no alto da página: À MINHA MÃE, sublinhando-o com dois traços. Abri aspas e tomado de uma emoção tamanha, escrevi o que reproduzo aqui na íntegra:
“Peço de todo coração, sincera e afetuosamente, que a paz divina encha a alma de minha mãe. Peço que seja inspirada e abençoada de todas as maneiras. Regozijo-me que o amor divino lhe flua através dos pensamentos, palavras e atos. Desejo-lhe sinceramente saúde, felicidade e todas as bênçãos da vida. Perdoo-a agora inteira e livremente. Está livre e eu estou livre. Sempre que penso em minha mãe, afirmo em silêncio: Deus esteja convosco. É o que eu tenho em mira. Sou sincero e meu subconsciente que é um aparelho registrador, está agora registrando a verdade do que eu afirmo. Perdoei a mim mesmo por ter abrigado pensamentos de ódio durante todos estes anos e resolvo nunca mais fazê-lo. Agradeço, sinto-me livre. Perdoo-a e estou perdoado porque me perdoei a mim mesmo. ’
Quando terminei o texto estava às lágrimas. Guardei o caderno numa gaveta escondida e tomei a decisão de ir ao encontro dela. Não foi possível, ainda fiquei longos meses sem me dirigir a ela, sei disso porque tenho os textos datados.
Dezenove meses depois de tê-la perdoado e a mim por extensão, num dia das mães eu fui convocado pelo quartel para ficar em guarda (eu servia ao Exército na época). Naquele dia eu saía bem cedo de casa e encontrei minha mãe no jardim regando as plantas. Quando passei por ela, dei-lhe uma folha de papel dobrada e disse-lhe: ‘Por favor, leia quando eu já tiver saído’.
“Um dia quando eu era só contigo e dormia na essência do teu ser, na glória do mais belo mistério divino, aconchegaste-me generosa e cálida, como rosa que desabrocha encerra a frágil gota de orvalho.
Tu me amavas sem me conhecer. Por mim te revestias de coragem, duplicando os sofrimentos da expectativa a doce esperança do instante do nascimento, quando brotariam do teu coração infindáveis caudais de alegria.
Não fostes tu, minha mãe, não poderia eu ouvir as promessas da vida nem depois falar delas a um pequenino ser que, palpitando em meus braços, prolongará a tua essência através de mim.
Pelo teu amor e pela tua coragem mãe, beijo-te as mãos calejadas no trabalho da vida e santificadas na missão de me apontar o caminho do bem.
Nada tenho para te dar. Nada sei te dizer, mas se bem reparares, hás de ver lágrimas em meus olhos, enquanto num soluço de ternura irei repetindo: benditas sejas mãe, por ter me dado a possibilidade de ver o mundo.
Seu oitavo filho.”

Naquele domingo eu estava de guarda numa guarita do quartel, quando um sargento veio me render dizendo que minha mãe estava ao telefone e era urgente. Eu relutei em sair da guarita dizendo que eu ligaria depois quando estivesse no meu intervalo de descanso. O sargento insistiu e eu fui ao gabinete do capitão e encontrei o fone fora do gancho. Peguei o aparelho e disse, abafado: Alô! Do outro lado da linha minha mãe com a voz muito baixa: meu filho... E mais não disse. Eu também fiquei calado, esperei por alguns segundos e depois coloquei o fone em cima da mesa, fora do gancho.
A quem possa interessar algo tão íntimo e tão distante? Meu desejo é que ultrapasse a minha catarse solitária e sirva à reflexão.
Até breve

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