domingo, 8 de maio de 2011

SENHA



Ela tinha vinte e seis anos quando aconteceu pela primeira vez. A última, quando ela estava completando quarenta e oito anos.

Seria preciso relatar cada vez, pois embora as circunstâncias fossem similares, as motivações, intensidades e repercussões foram bastante distintas. Convém, no entanto, apenas classificá-las. Por natureza, talvez. Vamos considerar três: a primeira, NOTURNA; a segunda, DIURNA e a terceira, MATUTINA.

A NOTURNA: passa das vinte e duas horas, não chove, é sempre dia útil, de calça jeans, camiseta branca, tênis. Nenhum documento ou dinheiro nos bolsos. Apenas a caderneta, inseparável, para a anotação diária. Duas canetas esferográficas, uma preta, outra azul. O batom, inseparável. Duas barras de cereais: chocolate, avelã e coco. Telefone celular, máquina fotográfica, com baterias de reserva para ambos. Uma pequena agenda de nomes, endereço, email e telefone de alguns conhecidos, poucos amigos, como Clara, a preferida. Um pacote de lenços de papel, um molho de chaves. Uma latinha de pastilhas (para garganta) trazida de Budapeste, onde agora acondiciona vitaminas de ações antioxidantes. Tudo rigorosamente distribuídos em espaços na bolsa, a tiracolo. Na mão direita, garrafa PET de 300 ml de água mineral, sem gás e sem gelo. Perambula a esmo e a pé mais de quatro horas, entre seis e oito quilômetros de vagueios. 
Quase nunca para por mais tempo do que aquele suficiente para tirar uma foto e/ou fazer anotações na caderneta. Com a caneta preta temas melancólicos ou que a entristeçam. Com a caneta azul aqueles que a excitam ou a alimentam de esperança. Volta para o apartamento de dois quartos, sala pequena, cozinha minúscula, área com tanque e varal. No quarto de dormir, cama de solteira, criado mudo, abajur, pequena escrivaninha, lap top e impressora (antes, uma Olivetti STUDIO 46), maço de folhas de papel A4, latinha com canetas, algumas já há muito inúteis, com cargas secas ou mesmo totalmente esgotadas. O outro quarto, quase vazio, afora caixas de documentos diversos, escritos, cadernetas, coisas sobre as quais não punha muita lembrança e sentido. Qualquer hora dessas vão para a cesta de recicláveis do prédio de duzentos apartamentos iguais ao seu. Oito por cada um dos vinte e cinco andares, o dela no vigésimo segundo, de onde avistava outros tantos arranha-céus cinzentos repletos de alaridos, silêncios e ocorrências, muitas delas policiais: tráfico de drogas, órgãos, crianças, prostituição, assassinatos, bebedeiras e jogos de todos os tipos, azares, naipes, dados e roletas.

A DIURNA: entre quatorze e dezoito horas, também somente nos dias úteis, com os mesmos apetrechos na bolsa a tiracolo, algum dinheiro. Pega o primeiro ônibus coletivo, logo que se vê na avenida, não importando o itinerário, nem o destino. Nesse horário, há lugares no ônibus em que se pode assentar. Desce, aleatoriamente, em paradas várias e embarca em tantos outros pontos sempre sem se importar com itinerários ou destinos. O que lhe ocupa são os diferentes olhares de tantos rostos infantis e adultos, masculinos, femininos, que procura registrar na memória já que lhe constrange a idéia de fotografá-los. Registra com a caneta azul, na caderneta, os rostos que por alguma razão lhe encantam e, com a preta, outros que nem tanto. Registra ainda escutas ou falas esparsas. Fatos que despertam interesse ou a incomodam. Por volta das dezessete horas, aí sim procura se localizar e busca coletivos que a lhe enderecem ao Centro. Varia a hora da chegada nunca depois das dezenove e trinta horas. Abre a porta do apartamento, joga a bolsa a tiracolo no pequeno sofá, liga o pequeno aparelho de CD e cantarola junto com o artista, canções quase sempre profundamente tristes. Tira as peças de roupa e vai deixando-as pelo caminho entre a sala e a cozinha, onde retira de uma pequena geladeira água ou suco de caixinha. No pequeno banheiro já chega nua. Senta no vaso sanitário, solta um grito de satisfação com o primeiro jato de urina que lhe sai das entranhas. Evacua. Entra debaixo do chuveiro, apóia as duas mãos e encosta a cabeça na parede, sente a água morna escorrer pelo corpo. Algumas vezes, se masturba. Deixa o box, se enxuga, vai ao quarto de dormir, se deita. Adormece. Por volta das duas horas da madrugada, desperta. Vai à cozinha, como uma sonâmbula. Quase sem abrir os olhos, coloca num pequeno micro-ondas alguma comida, pouca. Janta. Toma um copo d’água, passa pelo banheiro, escova os dentes. Nunca se olha no espelho, até porque em todo o apartamento não há nenhum. Volta ao quarto de dormir, senta-se na cama faz um arremedo de oração de agradecimento pelo sabe-se lá o quê, deixa o corpo girar em torno de si mesma, deita-se e, pouco depois, sonha. Talvez ali encontre significados.

A MATUTINA: pelas manhãs de domingos, prepara-se. Substitui a bolsa a tiracolo por uma mochila. Transfere tudo da bolsa para a mochila, menos as barras de cereais. Numa vasilha de plástico coloca alguns sanduíches de presunto e mussarela, a água mineral e um tablete de chocolate meio-amargo. Sai do apartamento geralmente por volta das nove horas. Procura parques, jardins, mercado municipal, museus, corridas livres, maratonas, de bicicletas, de motos, de automóveis, estádios de futebol, e, mais recentemente, shoppings. Lugares onde haja aglomerações de pessoas. Vai, como nos vagueios noturnos ou nos passeios de coletivos às tardes, pelas manhãs de domingos para observá-las, fotografá-las e registrar na caderneta alguma questão sobre a qual possa refletir e buscar sentido. Volta ao apartamento. No meio da tarde, busca a síntese da semana. Percorre as fotos no lap top, seleciona algumas e as cataloga. Seleciona, também, da caderneta as observações mais relevantes e transcreve para o lap top um resumo, buscando nexo, vínculo, coerência e consistência para um texto. Já tarde da noite, saí à rua a procura de contato humano e conversa. Encontra em bares próximos ao prédio onde mora. Toma uma ou outra garrafa de cerveja, uma ou outra caipivodca, troca meia-dúzia de olhares vazios e retorna ao apartamento. Liga o aparelho de som. Deita-se no sofá e, quase sempre, adormece, ébria e disforme.

Numa quarta-feira à noite, Clara, a amiga preferida foi quem encontrou o corpo falecido há três dias em estado agudo de decomposição. O cheiro forte havia entrado pelos apartamentos e vizinhos buscaram localizar a amiga da mulher que morava há vinte e dois anos sozinha naquele apartamento de onde exalava o cheiro repugnante. Clara cuidou de tudo. Do enterro, da distribuição dos pertences, móveis, roupas, vasilhames e utensílios de cozinha, aparelho de CD, abajur, impressora, máquina fotográfica e livros.

Ficou com ela apenas o lap top. Passados alguns dias do enterro, numa noite, Clara tomou coragem e ligou o lap top. Acessa a única pasta de arquivo disponível com a nomeação: FOTOS E ESCRITOS – UMA SÍNTESE. Ao clicar, constrangida pela invasão, deparou-se com a palavra SENHA, dois pontos e o piscar da barra do cursor.

Ninguém saberá...


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