Ela tinha
vinte e seis anos quando aconteceu pela primeira vez. A última, quando ela
estava completando quarenta e oito anos.
Seria
preciso relatar cada vez, pois embora as circunstâncias fossem similares, as
motivações, intensidades e repercussões foram bastante distintas. Convém, no
entanto, apenas classificá-las. Por natureza, talvez. Vamos considerar três: a
primeira, NOTURNA; a segunda, DIURNA e a terceira, MATUTINA.
A NOTURNA:
passa das vinte e duas horas, não chove, é sempre dia útil, de calça jeans,
camiseta branca, tênis. Nenhum documento ou dinheiro nos bolsos. Apenas a
caderneta, inseparável, para a anotação diária. Duas canetas esferográficas,
uma preta, outra azul. O batom, inseparável. Duas barras de cereais: chocolate,
avelã e coco. Telefone celular, máquina fotográfica, com baterias de reserva
para ambos. Uma pequena agenda de nomes, endereço, email e telefone de alguns
conhecidos, poucos amigos, como Clara, a preferida. Um pacote de lenços de
papel, um molho de chaves. Uma latinha de pastilhas (para garganta) trazida de
Budapeste, onde agora acondiciona vitaminas de ações antioxidantes. Tudo
rigorosamente distribuídos em espaços na bolsa, a tiracolo. Na mão direita,
garrafa PET de 300 ml de água mineral, sem gás e sem gelo. Perambula a esmo e a
pé mais de quatro horas, entre seis e oito quilômetros de vagueios.
Quase nunca
para por mais tempo do que aquele suficiente para tirar uma foto e/ou fazer
anotações na caderneta. Com a caneta preta temas melancólicos ou que a
entristeçam. Com a caneta azul aqueles que a excitam ou a alimentam de
esperança. Volta para o apartamento de dois quartos, sala pequena, cozinha
minúscula, área com tanque e varal. No quarto de dormir, cama de solteira,
criado mudo, abajur, pequena escrivaninha, lap
top e impressora (antes, uma Olivetti STUDIO 46), maço de folhas de papel
A4, latinha com canetas, algumas já há muito inúteis, com cargas secas ou mesmo
totalmente esgotadas. O outro quarto, quase vazio, afora caixas de documentos
diversos, escritos, cadernetas, coisas sobre as quais não punha muita lembrança
e sentido. Qualquer hora dessas vão para a cesta de recicláveis do prédio de
duzentos apartamentos iguais ao seu. Oito por cada um dos vinte e cinco
andares, o dela no vigésimo segundo, de onde avistava outros tantos
arranha-céus cinzentos repletos de alaridos, silêncios e ocorrências, muitas
delas policiais: tráfico de drogas, órgãos, crianças, prostituição,
assassinatos, bebedeiras e jogos de todos os tipos, azares, naipes, dados e
roletas.
A DIURNA:
entre quatorze e dezoito horas, também somente nos dias úteis, com os mesmos
apetrechos na bolsa a tiracolo, algum dinheiro. Pega o primeiro ônibus
coletivo, logo que se vê na avenida, não importando o itinerário, nem o
destino. Nesse horário, há lugares no ônibus em que se pode assentar. Desce,
aleatoriamente, em paradas várias e embarca em tantos outros pontos sempre sem
se importar com itinerários ou destinos. O que lhe ocupa são os diferentes
olhares de tantos rostos infantis e adultos, masculinos, femininos, que procura
registrar na memória já que lhe constrange a idéia de fotografá-los. Registra
com a caneta azul, na caderneta, os rostos que por alguma razão lhe encantam e,
com a preta, outros que nem tanto. Registra ainda escutas ou falas esparsas.
Fatos que despertam interesse ou a incomodam. Por volta das dezessete horas, aí
sim procura se localizar e busca coletivos que a lhe enderecem ao Centro. Varia
a hora da chegada nunca depois das dezenove e trinta horas. Abre a porta do
apartamento, joga a bolsa a tiracolo no pequeno sofá, liga o pequeno aparelho
de CD e cantarola junto com o artista, canções quase sempre profundamente
tristes. Tira as peças de roupa e vai deixando-as pelo caminho entre a sala e a
cozinha, onde retira de uma pequena geladeira água ou suco de caixinha. No
pequeno banheiro já chega nua. Senta no vaso sanitário, solta um grito de
satisfação com o primeiro jato de urina que lhe sai das entranhas. Evacua.
Entra debaixo do chuveiro, apóia as duas mãos e encosta a cabeça na parede,
sente a água morna escorrer pelo corpo. Algumas vezes, se masturba. Deixa o
box, se enxuga, vai ao quarto de dormir, se deita. Adormece. Por volta das duas
horas da madrugada, desperta. Vai à cozinha, como uma sonâmbula. Quase sem
abrir os olhos, coloca num pequeno micro-ondas alguma comida, pouca. Janta.
Toma um copo d’água, passa pelo banheiro, escova os dentes. Nunca se olha no
espelho, até porque em todo o apartamento não há nenhum. Volta ao quarto de
dormir, senta-se na cama faz um arremedo de oração de agradecimento pelo
sabe-se lá o quê, deixa o corpo girar em torno de si mesma, deita-se e, pouco
depois, sonha. Talvez ali encontre significados.
A
MATUTINA: pelas manhãs de domingos, prepara-se. Substitui a bolsa a tiracolo
por uma mochila. Transfere tudo da bolsa para a mochila, menos as barras de
cereais. Numa vasilha de plástico coloca alguns sanduíches de presunto e
mussarela, a água mineral e um tablete de chocolate meio-amargo. Sai do
apartamento geralmente por volta das nove horas. Procura parques, jardins,
mercado municipal, museus, corridas livres, maratonas, de bicicletas, de motos,
de automóveis, estádios de futebol, e, mais recentemente, shoppings. Lugares onde haja aglomerações de pessoas. Vai, como nos
vagueios noturnos ou nos passeios de coletivos às tardes, pelas manhãs de
domingos para observá-las, fotografá-las e registrar na caderneta alguma
questão sobre a qual possa refletir e buscar sentido. Volta ao apartamento. No
meio da tarde, busca a síntese da semana. Percorre as fotos no lap top, seleciona algumas e as
cataloga. Seleciona, também, da caderneta as observações mais relevantes e
transcreve para o lap top um resumo,
buscando nexo, vínculo, coerência e consistência para um texto. Já tarde da
noite, saí à rua a procura de contato humano e conversa. Encontra em bares
próximos ao prédio onde mora. Toma uma ou outra garrafa de cerveja, uma ou
outra caipivodca, troca meia-dúzia de olhares vazios e retorna ao apartamento.
Liga o aparelho de som. Deita-se no sofá e, quase sempre, adormece, ébria e disforme.
Numa
quarta-feira à noite, Clara, a amiga preferida foi quem encontrou o corpo
falecido há três dias em estado agudo de decomposição. O cheiro forte havia
entrado pelos apartamentos e vizinhos buscaram localizar a amiga da mulher que
morava há vinte e dois anos sozinha naquele apartamento de onde exalava o
cheiro repugnante. Clara cuidou de tudo. Do enterro, da distribuição dos
pertences, móveis, roupas, vasilhames e utensílios de cozinha, aparelho de CD,
abajur, impressora, máquina fotográfica e livros.
Ficou com
ela apenas o lap top. Passados alguns
dias do enterro, numa noite, Clara tomou coragem e ligou o lap top. Acessa a única pasta de arquivo disponível com a nomeação:
FOTOS E ESCRITOS – UMA SÍNTESE. Ao clicar, constrangida pela invasão, deparou-se
com a palavra SENHA, dois pontos e o piscar da barra do cursor.
Ninguém
saberá...
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