Conduzi o módulo de Liderança no
Programa de Preparação de dirigentes para a Privatização da Eletropaulo, de
setembro a novembro do ano anterior a efetivação do processo. Do seminário de
dezesseis horas participaram mais de 900 executivos, entre diretores,
superintendentes e gerentes de diversos níveis distribuídos em quinze turmas
cada uma com sessenta e poucos participantes. Uma maratona. O propósito do
módulo foi o de levar os dirigentes a pensarem os impactos trazidos pela
privatização e qual deveria ser a conduta deles enquanto líderes no processo. A
Eletropaulo pelo seu gigantismo e também por força das alterações nos marcos
regulatórios recém-promulgados do setor elétrico foi separada em quatro grandes
empresas, todas vendidas em abril do ano seguinte ao seminário.
Escolhi essa experiência para
ilustrar uma singela tese que venho desenvolvendo e que não será possível
esgotá-la aqui. Três palavras têm marcado a personalidade de milhões de
pessoas: Trabalho, Emprego e Empresa. Trabalho que nos dá a dimensão MORAL:
classificamos aquele que não trabalha como vagabundo, parasita, marginal.
Lembro-me que minha mãe ia me buscar puxando-me pelas orelhas nas peladas: vai fazer alguma coisa que preste, menino! Eu
corria para o quarto, abria uma folha de papel almaço e escrevia na capa:
TRABALHO de História. Emprego, que nos dá a dimensão TEMPORAL, na medida em que
estamos vinculados por um contrato que, se não rescindido antes entre as partes,
será concluído por ocasião da aposentadoria. Daí o FGTS: Fundo de Garantia por
TEMPO de Serviço. Empresa que nos dá a dimensão ESPACIAL, sendo o lócus do trabalho e o elo com que se faz o
vínculo. Quando ligamos no telefone para alguém que não nos conhece, do outro
lado da linha nos pergunta: Agulhô de onde?Não é sem razão que incorporamos ao nosso sobrenome a marca da Empresa: Agulhô da
Fiat, Agulhô da FDC, Agulhô do IBMEC... Somos, portanto, um sujeito moral num
tempo e num espaço. Isso nos constitui, e a sociedade nos cobrará por isso.
Não são poucos os casos de pessoas
que, diante da possibilidade ou efetivação da perda do emprego, entram em processo
de agudo estresse, algumas inclusive vêem cindida a sua própria personalidade.
De tudo que observei o dano maior não me pareceu o de natureza financeira, mas o dano moral e o da
identidade. Algumas pessoas ao perderem o emprego têm vergonha de voltarem para o seio da família ou de amigos, alem de
ser muito difícil para elas ficar sem um sobrenome.
O conceito de trabalho foi fundido
ao de emprego, de tal sorte e com tal intensidade, que algumas pessoas não
conseguem ver a distinção entre um e outro. O trabalho como energia, que possui
fórmula até na física (trabalho=força X distância), o emprego como uma das alternativas para aplicação
dessa energia. Assim se perguntadas o que é a pessoa que não trabalha, elas
responderão: desempregada. O trabalho, portanto foi vitimado enquanto bem de
produção, tornando até a estrutura do tempo condicionada a este ditame.
Nomeamos os dias de segunda a sexta-feira como dias UTEIS e o domingo como
REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. A sexta-feira, inclusive, serve ao happy hour, a nossa hora feliz é quando
abandonamos o trabalho.
“Esquartejaram a minha mãe em quatro pedaços.” ou “Dividiram a nossa família em quatro.”
Foram algumas das frases que ouvi ditas por executivos da Eletropaulo, no
seminário. Foram inúmeras as queixas das perdas e danos de pessoas que contavam
com mais de vinte e cinco anos de vínculo. Visceralmente vinculadas. Lembro-me
de um momento relevante acontecido em uma das turmas. Eu havia iniciado a
abordagem do tema e escrito no flip shart as três palavras. Ocorreu no
seminário um longo debate conceitual (impossível de discorrer aqui) sobre as
palavras, mas quando dizia que o emprego
é apenas uma das alternativas para aplicação de trabalho um dos
participantes interpelou-me abruptamente e disse: é a alternativa. Consultei o grupo se na opinião deles o
trabalho estava aumentando ou reduzindo: acabando!
Quase em uníssono. Argumentei que, em minha opinião, o trabalho estava
aumentando, nós nunca fomos demandados tanto quanto agora, nossa energia é demandada
física, intelectual, moral e espiritualmente como nunca. Então fiz a pergunta:
e o emprego, está aumentando ou reduzindo? Acabando!
Agora em uníssono e com variações do tipo: Capado, foiçado... Fui ao flip shart e fiz um grande X sobre a
palavra EMPREGO tentando com isso explicitar a opinião do grupo. Por ter
forçado a ponta do pincel atômico sobre o papel, saiu um som semelhante a algo
que se rasga. Ouvi um grito vindo do fundo da sala: Aiiii!!!! Era o mesmo participante que havia dito que emprego é a
alternativa. Ele levantou-se, passou por mim e olhando nos meus olhos, disse: senti como se cortasse na minha carne. Quando
olhei para o grupo percebi que ele havia sentido um profundo baque. Argumentei que o emprego está mudando,
evoluindo para outros mecanismos e alternativas de contratação. Fiz um
intervalo e fui ao encontro do executivo que havia saído. Encontrei-o estirado
num sofá, num dos saguões do local do evento e pudemos conversar durante todo o
intervalo.
Até breve.
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