domingo, 8 de maio de 2011

OCASO



Era uma vez um coração partido. Por duas razões, essenciais. Uma, por ter sido abandonado. A outra por não compreender por que.

Teriam se encontrado no Trocadero, quando da exposição sobre os irmãos Lumiere comemorativa pelos cem anos de cinema. Paris luzia como nunca e tudo convidava ao inevitável de paixões fulminantes. Foi o que lhe arrebataram aqueles olhos e cabelos dourados à luz. Ele descia e ela subia as escadarias quando se cruzaram. Ele só e ela acompanhada por um grupo de seis ou sete pessoas, hoje não se lembra mais, três homens quatro mulheres, talvez. Passado o impacto do breve encontro de olhar, depois de alguns passos virou-se e sem se surpreender viu que ela também fez o mesmo e, apesar de tantas outras pessoas que circulavam pelo local, fitou-o intensa, deliberada e definitivamente. Ele confessa hoje que, naquele momento, o corpo perdeu o equilíbrio provavelmente porque aquele coração, hoje partido, não bombeava o sangue na intensidade ou pelas vias normais. E, pior, quando ela desvencilhou-se do grupo que a acompanhava, desceu as escadarias e ficou próxima e tão próxima que ela teria sido capaz de sentir a respiração dele descompassada e ofegante. Pior, ainda, quando ela deixou-lhe um sorriso avassalador, fixou seu olhar nos olhos dele, depois no nariz e colocando as mãos atrás da nuca dele, afagou-lhe os cabelos, parou alguns segundos o olhar endereçado aos lábios dele e os beijou leve, suave e demoradamente.

Algo que ocorre assim é por demais, mas foi só o daquela noite. Sem dizer nenhuma palavra, ela deixando-lhe os lábios ainda molhados, abriu os olhos lentamente e descendo as mãos da nuca para os ombros, dali para os braços, depois as mãos, apertou-as. Soltou a mão direita com a qual lhe fez um aceno de despedida e, suavemente, deixou que o dedo menor da mão esquerda fosse o último pedaço de si a desvencilhar-se dele. Uma eternidade foi necessária para que ele recuperasse o senso de espaço e tempo, quando isso foi possível, ela já havia desaparecido no meio da multidão. Ele, então, deitou-se no parapeito do largo do Trocadero e fitando a torre embriagou-se de luz a ponto de perder a exata configuração do monumento. Permaneceu ali alguns minutos e depois, caminhando, voltou ao hotel.

Nos quatro dias que se seguiram saiu cedo do hotel e voltou próximo da meia-noite. Esteve em Versailles, Dorsay, Notre Dame, Louvre, Moulin Rouge e em lugares com grande concentração de pessoas. Vasculhou a procura dela na multidão, mergulhado ainda na sensação deixada pelas mãos dela acariciando-lhe a nuca, o gosto de seus lábios, o perfume e o calor do corpo dela colado ao seu. Na noite do quarto dia voltou ao Trocadero e circulou ali por um par de horas. Depois retornou ao hotel dizendo a si próprio que aquilo não fazia sentido. No dia seguinte, deixou o hotel bem cedo foi para o aeroporto e voltou para casa.

Nos meses que se seguiram todos os assuntos, preocupações, interesses, prazeres, amigos, projetos profissionais, mulheres, futebol, lugares, compromissos financeiros e não financeiros, tudo se tornou secundário em relação à presença dela impregnada nele a partir da lembrança do seu perfume, da delicadeza de suas mãos, do gosto de seus lábios e do calor de seu corpo.

Nos anos que se seguiram, ele esteve em tantos lugares e com tantas mulheres que, na medida em que o tempo avançava foi confundindo o dourado dos cabelos dela, o perfume, a delicadeza das mãos e o calor do seu corpo. Santorini, Atenas, Mikonos, Varadero, Havana, Caio Largo, Luxemburgo, Londres, Genebra, Monsaraz, Bruges, Bruxelas, Toledo, Alhambra, Madri, Barcelona, Sevilha, Viena, Nuremberg, Dresden, Heidelberg, Thaithong, Taipei, Toquio, Los Angeles, Nova York, Miami, Chicago, Lisboa, Porto, Coimbra, Évora até que um dia Veneza.

A mulher que o acompanhava na viagem não se interessou: Stagione Concertista, Interpreti Veneziano, Mostra de Instrumenti Antichi, Capela de San Bartolomeo, às 20:00 horas. Ele foi sozinho. No altar/palco um quinteto de cordas, com destaque ao que ele supõe ser, se lembra, um violoncelo. Não o instrumento, mas o músico quem tirou daquelas cordas algo inesquecível. Ficou durante todo o tempo da apresentação extasiado pelo desempenho do grupo de artistas, pelo programa escolhido, com o som dos instrumentos e especialmente com a belíssima iluminação da capela à luz de candelabros que davam um toque extraordinariamente poético. E de tal forma e com tamanha intensidade que terminado o espetáculo não percebeu as pessoas saírem, continuou sentado olhando as imagens sacras, as colunas e vitrais, o altar e os instrumentos musicais. Até que resolveu se levantar e deixar o lugar. Quando saía percebeu que ao fundo da capela, sentada no penúltimo banco, estava ainda uma única pessoa e na medida em que se aproximava ele percebeu que se tratava de uma mulher.

- Belíssimo, ele disse. Stupendo!!!, ela completou.

Já na rua, pensou se retornaria ao hotel. Ligou do celular para a mulher que o acompanhava na viagem. Ouviu o som de chamada do aparelho soar várias vezes até desligar. Ela já estaria dormindo, pensou. Ou estaria em algum lugar que o aparelho não alcançava o sinal. Resolveu ir para a Praça de São Marcos. Ali escolheu uma das mesas de um dos restaurantes, sentou-se, pediu uma água mineral sem gelo. Voltou a ligar o celular para o mesmo número. A mulher não atendeu. Colocou sobre a mesa a carta de vinhos que foliara. Pensou em pedir desculpas ao garçom, dizendo que a pessoa que ele aguardava não poderia mais estar com ele ali e voltaria ao hotel. Ele acenava para chamar o garçom, quando sentiu, vindo por trás, duas mãos tapar-lhe os dois olhos, suavemente.

- Por que não atendeu o celular? Perguntou.

Não obteve resposta. Levou as duas mãos para tirar aquelas que o vendava os olhos e ao tocar nelas sentiu uma sensação estranha. Não eram as mãos da mulher que o acompanhava na viagem. As mãos fugiram das mãos dele e afastando dos seus olhos, foram levemente à nuca, descendo pelos ombros aos braços até alcançar as mãos dele. A mulher que lhe vendara os olhos passou à frente, sentou-se na cadeira à frente dele com um sorriso avassalador, fixou seu olhar nos olhos dele, depois no nariz e colocando as mãos atrás da nuca dele, afagou-lhe os cabelos, para alguns segundos o olhar endereçado aos lábios dele e os beijar leve, suave e demoradamente. Ele estremeceu. Os lábios se afastaram, os olhos se abriram e fixaram um no outro.

-Você gostou do concerto? Ela perguntou. Então ele se lembrou que era a mulher a quem ele se dirigiu na saída da Capela de San Bartolomeo.

- Maravilhoso! Ele responde ainda meio abalado.

- Logo que você saiu, sai também, vi você ligando o celular...

- E me seguiu?

- Sim.

O som do violino, o alarido da praça, a conversa dos clientes do restaurante desapareceram. Ele estava ali, diante dela, novamente. E o tempo para o seu curso e o espaço é do tamanho entre o seu corpo sentado frente ao corpo dela.

- Por onde andou em todos esses anos? Ele indaga.

- Te procurando, ela responde.

- Mentira! Ele diz afagando-lhe os cabelos.

- Você já jantou? Ela pergunta.

- Ainda não... Estava pensando... Ele responde.

- Você está com alguém? Ela pergunta.

- Na verdade sim, mas... Ela se levanta e ele a detém segurando-a por uma das mãos.

- Não vá embora, fique... Não é ninguém importante... Tanto quanto você... Ele diz.

- Tudo isso das últimas horas me deu fome, vamos jantar então?

- Sim, em mim também, vamos.

Foi assim.  Lembra-se hoje de quão arrebatadora fora aquela noite. A emoção imensa proporcionada pelo concerto de cordas na Capela São Bartolomeo, o encontro com ela na Praça de São Marcos, o passeio pelas ruelas de Veneza naquela noite ligeiramente fria e, especialmente, o fato de terem se deparado com uma pequena estalagem próxima a Ponte dos Amores.

- Vamos ficar aqui, ela sugere.

- E ele? Ele pergunta referindo-se ao homem que a acompanhava na viagem.

- Você está preocupado com ela? Ela indaga, referindo-se à mulher que o acompanhava.

- Vamos ficar! Ela diz com o sorriso nos lábios mais intenso que um sorriso de mulher pode ser e o puxa pelas mãos em direção ao interior da estalagem.

Ao fazer o check in na recepção eles, próximos um do outro começam a preencher os dados. 

- Então você se chama Sara... Ele diz depois de vê-la escrevendo o nome dela na ficha.

- Sim, Marcos, tomando-lhe e apontando com o dedo indicador o nome dele na ficha.  Eles estavam tão intensamente ligados um ao outro e, em que pese o passeio pelas ruas após o jantar, embriagados pelas deliciosas três garrafas de Tinto Seco, não ouviram a recepcionista dizer em voz baixa: - Venezia... Ah, mio dio...

No dia seguinte, eles tomaram café da manhã no quarto da estalagem e, deitados na cama um ao lado do outro, ligaram seus celulares.

- Me perdoe... Disseram juntos ao celular aos seus pares. Desligaram imediatamente o aparelho e deram uma sonora gargalhada.

- O que vamos dizer a eles, perguntou Sara.

- Que a vida nos deu um solavanco... Sugeriu Marcos.

- Como assim? Indagou Sara.

- Observe, disse Marcos voltando a ligar o celular.
 
- Paula, Marcos... É que algo muito louco aconteceu na noite de ontem. Anos atrás, conheci uma pessoa...

- Uma mulher? Interrompeu-o do outro lado do aparelho.

- Sim, Paula... Em Paris, quando o cinema completava cem anos...

- E daí, isso é motivo para me deixar plantada aqui no hotel, sem ter nenhuma comunicação contigo... Você viu quantas vezes tentei falar contigo de madrugada e agora de manhã... Estava saindo para ir a uma delegacia... Preocupada... Poxa, Marcos, você vem agora com uma história de mulher, cem anos de cinema...

- Me perdoe... É que...

- Estou indo agora para o aeroporto e voltando para casa... Deixo suas coisas na portaria do hotel... Adeus!, disse com indignação a mulher do outro lado do aparelho.

- Há muito tempo você está com ela? Indagou Sara depois que viu Marcos desligando o celular e olhando com o olhar perdido pela janela.  - Está arrependido pelo que fez?

- Não...

- É minha vez, disse Sara voltando a ligar o celular.

- Paul, Sara... É que algo muito louco aconteceu na noite de ontem. Anos atrás, conheci uma pessoa...

- Um homem? Interrompeu-a do outro lado do aparelho.

- Sim, Paul... Em Paris, quando o cinema completava cem anos...

- E daí, isso é motivo para me deixar plantado aqui no hotel, sem ter nenhuma comunicação contigo... Você viu quantas vezes tentei falar contigo de madrugada e agora de manhã... Estava saindo para ir a uma delegacia... Preocupado... Poxa, Sara, você vem agora com uma história de homem, cem anos de cinema...
- Me perdoe... É que...

- Estou indo agora para o aeroporto e voltando para casa... Deixo suas coisas na portaria do hotel... Adeus!, disse com indignação o homem do outro lado do aparelho.

- Há muito tempo você está com ele? Indagou Marcos depois que viu Sara desligando o celular e olhando com o olhar perdido pela janela. Está arrependida pelo que fez?

- Não...

Tomaram banho juntos, se vestiram e deixaram a estalagem. De mãos dadas e em silêncio vagaram por alguns minutos. Pararam se abraçaram e...

- O que fazemos agora? Indagou Sara.

- Vamos ao seu hotel primeiro, depois no meu e pegamos nossas malas... Sugeriu Marcos, afagando os cabelos de Sara.

- E vamos prá onde?

- Para onde gostaria de ir? Indaga Marcos, beijando levemente a boca de Sara. Tenho dois dias livres ainda, depois devo retornar...

- Florença? Propôs Sara, dando pulinhos e esfregando uma mão na outra.

Eles se abraçaram e depois se beijaram demoradamente.

Nos anos que se seguiram, ele esteve com ela em diferentes lugares e na medida em que o tempo avançava amava-a um pouco mais pelo dourado dos cabelos dela, o perfume, a delicadeza das mãos e o calor do seu corpo. Florença, Nice, Monte Carlo, Viena, Praga, Budapeste, Berlin, Santiago, Montevidéu, Buenos Aires, Milão, Roma, Nápoles, Pisa, Genova, até que um dia, novamente, Veneza.

Eles almoçaram no mesmo restaurante da Praça de São Marcos onde haviam se reencontrado anos antes. Depois, passearam ao redor da praça e Marcos queixou-se com Sara dizendo-lhe que não se sentia bem e que preferia retornar ao hotel para poder repousar um pouco. Passava das dezoito horas.

- Espero que eu melhore logo desse mal-estar...

- Vamos, então...

Passaram em uma farmácia compraram medicamentos e foram para o hotel. Já  no quarto ela preparou os remédios e passou a ele com um copo de água.

- Tome...

- Obrigado.

Ele adormeceu em um sono pesado. No dia seguinte, pela manhã acordou sentindo-se bem melhor. Estranhou que Sara não estivesse na cama. Chamou pelo seu nome, acreditando estar ela no banheiro. Não obtendo resposta, levantou-se, abriu a porta do banheiro. Onde ela pode ter ido? Perguntou-se. Ligou para o restaurante e pediu ao garçom para verificar se ela estava por lá. O garçom depois de alguns minutos ligou para o quarto e disse que havia procurado por ela em todas as mesas e ela não se encontrava. Marcos ligou para a recepção o hotel e consultou a recepcionista. Da mesma forma recebeu a informação que Sara não estava lá e nem havia passado por ali naquela manhã. Marcos tomou uma ducha breve e vestiu-se rapidamente. Quando abria a porta do quarto seu celular tocou.

- Me perdoe... É que... 

Era Sara.



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