Era uma
vez um coração partido. Por duas razões, essenciais. Uma, por ter sido
abandonado. A outra por não compreender por que.
Teriam se
encontrado no Trocadero, quando da exposição sobre os irmãos Lumiere
comemorativa pelos cem anos de cinema. Paris luzia como nunca e tudo convidava
ao inevitável de paixões fulminantes. Foi o que lhe arrebataram aqueles olhos e
cabelos dourados à luz. Ele descia e ela subia as escadarias quando se
cruzaram. Ele só e ela acompanhada por um grupo de seis ou sete pessoas, hoje
não se lembra mais, três homens quatro mulheres, talvez. Passado o impacto do
breve encontro de olhar, depois de alguns passos virou-se e sem se surpreender
viu que ela também fez o mesmo e, apesar de tantas outras pessoas que
circulavam pelo local, fitou-o intensa, deliberada e definitivamente. Ele
confessa hoje que, naquele momento, o corpo perdeu o equilíbrio provavelmente
porque aquele coração, hoje partido, não bombeava o sangue na intensidade ou pelas
vias normais. E, pior, quando ela desvencilhou-se do grupo que a acompanhava,
desceu as escadarias e ficou próxima e tão próxima que ela teria sido capaz de
sentir a respiração dele descompassada e ofegante. Pior, ainda, quando ela
deixou-lhe um sorriso avassalador, fixou seu olhar nos olhos dele, depois no
nariz e colocando as mãos atrás da nuca dele, afagou-lhe os cabelos, parou
alguns segundos o olhar endereçado aos lábios dele e os beijou leve, suave e
demoradamente.
Algo que
ocorre assim é por demais, mas foi só o daquela noite. Sem dizer nenhuma
palavra, ela deixando-lhe os lábios ainda molhados, abriu os olhos lentamente e
descendo as mãos da nuca para os ombros, dali para os braços, depois as mãos,
apertou-as. Soltou a mão direita com a qual lhe fez um aceno de despedida e,
suavemente, deixou que o dedo menor da mão esquerda fosse o último pedaço de si
a desvencilhar-se dele. Uma eternidade foi necessária para que ele recuperasse
o senso de espaço e tempo, quando isso foi possível, ela já havia desaparecido
no meio da multidão. Ele, então, deitou-se no parapeito do largo do Trocadero e
fitando a torre embriagou-se de luz a ponto de perder a exata configuração do
monumento. Permaneceu ali alguns minutos e depois, caminhando, voltou ao hotel.
Nos quatro
dias que se seguiram saiu cedo do hotel e voltou próximo da meia-noite. Esteve
em Versailles, Dorsay, Notre Dame, Louvre, Moulin Rouge e em lugares com grande
concentração de pessoas. Vasculhou a procura dela na multidão, mergulhado ainda
na sensação deixada pelas mãos dela acariciando-lhe a nuca, o gosto de seus
lábios, o perfume e o calor do corpo dela colado ao seu. Na noite do quarto dia
voltou ao Trocadero e circulou ali por um par de horas. Depois retornou ao
hotel dizendo a si próprio que aquilo não fazia sentido. No dia seguinte,
deixou o hotel bem cedo foi para o aeroporto e voltou para casa.
Nos meses
que se seguiram todos os assuntos, preocupações, interesses, prazeres, amigos,
projetos profissionais, mulheres, futebol, lugares, compromissos financeiros e
não financeiros, tudo se tornou secundário em relação à presença dela
impregnada nele a partir da lembrança do seu perfume, da delicadeza de suas
mãos, do gosto de seus lábios e do calor de seu corpo.
Nos anos
que se seguiram, ele esteve em tantos lugares e com tantas mulheres que, na
medida em que o tempo avançava foi confundindo o dourado dos cabelos dela, o
perfume, a delicadeza das mãos e o calor do seu corpo. Santorini, Atenas,
Mikonos, Varadero, Havana, Caio Largo, Luxemburgo, Londres, Genebra, Monsaraz,
Bruges, Bruxelas, Toledo, Alhambra, Madri, Barcelona, Sevilha, Viena,
Nuremberg, Dresden, Heidelberg, Thaithong, Taipei, Toquio, Los Angeles, Nova
York, Miami, Chicago, Lisboa, Porto, Coimbra, Évora até que um dia Veneza.
A mulher
que o acompanhava na viagem não se interessou: Stagione Concertista, Interpreti
Veneziano, Mostra de Instrumenti Antichi, Capela de San Bartolomeo, às 20:00
horas. Ele foi sozinho. No altar/palco um quinteto de cordas, com destaque ao
que ele supõe ser, se lembra, um violoncelo. Não o instrumento, mas o músico
quem tirou daquelas cordas algo inesquecível. Ficou durante todo o tempo da
apresentação extasiado pelo desempenho do grupo de artistas, pelo programa
escolhido, com o som dos instrumentos e especialmente com a belíssima
iluminação da capela à luz de candelabros que davam um toque
extraordinariamente poético. E de tal forma e com tamanha intensidade que
terminado o espetáculo não percebeu as pessoas saírem, continuou sentado
olhando as imagens sacras, as colunas e vitrais, o altar e os instrumentos
musicais. Até que resolveu se levantar e deixar o lugar. Quando saía percebeu
que ao fundo da capela, sentada no penúltimo banco, estava ainda uma única
pessoa e na medida em que se aproximava ele percebeu que se tratava de uma
mulher.
-
Belíssimo, ele disse. Stupendo!!!, ela completou.
Já na rua,
pensou se retornaria ao hotel. Ligou do celular para a mulher que o acompanhava
na viagem. Ouviu o som de chamada do aparelho soar várias vezes até desligar.
Ela já estaria dormindo, pensou. Ou estaria em algum lugar que o aparelho não
alcançava o sinal. Resolveu ir para a Praça de São Marcos. Ali escolheu uma das
mesas de um dos restaurantes, sentou-se, pediu uma água mineral sem gelo.
Voltou a ligar o celular para o mesmo número. A mulher não atendeu. Colocou
sobre a mesa a carta de vinhos que foliara. Pensou em pedir desculpas ao
garçom, dizendo que a pessoa que ele aguardava não poderia mais estar com ele
ali e voltaria ao hotel. Ele acenava para chamar o garçom, quando sentiu, vindo
por trás, duas mãos tapar-lhe os dois olhos, suavemente.
- Por que
não atendeu o celular? Perguntou.
Não obteve resposta. Levou as duas mãos para tirar aquelas que o vendava os olhos e ao tocar nelas sentiu uma sensação estranha. Não eram as mãos da mulher que o acompanhava na viagem. As mãos fugiram das mãos dele e afastando dos seus olhos, foram levemente à nuca, descendo pelos ombros aos braços até alcançar as mãos dele. A mulher que lhe vendara os olhos passou à frente, sentou-se na cadeira à frente dele com um sorriso avassalador, fixou seu olhar nos olhos dele, depois no nariz e colocando as mãos atrás da nuca dele, afagou-lhe os cabelos, para alguns segundos o olhar endereçado aos lábios dele e os beijar leve, suave e demoradamente. Ele estremeceu. Os lábios se afastaram, os olhos se abriram e fixaram um no outro.
Não obteve resposta. Levou as duas mãos para tirar aquelas que o vendava os olhos e ao tocar nelas sentiu uma sensação estranha. Não eram as mãos da mulher que o acompanhava na viagem. As mãos fugiram das mãos dele e afastando dos seus olhos, foram levemente à nuca, descendo pelos ombros aos braços até alcançar as mãos dele. A mulher que lhe vendara os olhos passou à frente, sentou-se na cadeira à frente dele com um sorriso avassalador, fixou seu olhar nos olhos dele, depois no nariz e colocando as mãos atrás da nuca dele, afagou-lhe os cabelos, para alguns segundos o olhar endereçado aos lábios dele e os beijar leve, suave e demoradamente. Ele estremeceu. Os lábios se afastaram, os olhos se abriram e fixaram um no outro.
-Você
gostou do concerto? Ela perguntou. Então ele se lembrou que era a mulher a quem
ele se dirigiu na saída da Capela de San Bartolomeo.
-
Maravilhoso! Ele responde ainda meio abalado.
- Logo que
você saiu, sai também, vi você ligando o celular...
- E me
seguiu?
- Sim.
O som do
violino, o alarido da praça, a conversa dos clientes do restaurante
desapareceram. Ele estava ali, diante dela, novamente. E o tempo para o seu
curso e o espaço é do tamanho entre o seu corpo sentado frente ao corpo dela.
- Por onde andou em todos esses anos?
Ele indaga.
- Te
procurando, ela responde.
- Mentira!
Ele diz afagando-lhe os cabelos.
- Você já
jantou? Ela pergunta.
- Ainda
não... Estava pensando... Ele responde.
- Você
está com alguém? Ela pergunta.
- Na
verdade sim, mas... Ela se levanta e ele a detém segurando-a por uma das mãos.
- Não vá
embora, fique... Não é ninguém importante... Tanto quanto você... Ele diz.
- Tudo
isso das últimas horas me deu fome, vamos jantar então?
- Sim, em mim também, vamos.
Foi
assim. Lembra-se hoje de quão
arrebatadora fora aquela noite. A emoção imensa proporcionada pelo concerto de
cordas na Capela São Bartolomeo, o encontro com ela na Praça de São Marcos, o
passeio pelas ruelas de Veneza naquela noite ligeiramente fria e,
especialmente, o fato de terem se deparado com uma pequena estalagem próxima a
Ponte dos Amores.
- Vamos ficar aqui, ela sugere.
- E ele? Ele pergunta referindo-se ao
homem que a acompanhava na viagem.
- Você
está preocupado com ela? Ela indaga, referindo-se à mulher que o
acompanhava.
- Vamos
ficar! Ela diz com o sorriso nos lábios mais intenso que um sorriso de mulher
pode ser e o puxa pelas mãos em direção ao interior da estalagem.
Ao fazer o
check in na recepção eles, próximos um do outro começam a
preencher os dados.
- Então você se chama Sara... Ele diz
depois de vê-la escrevendo o nome dela na ficha.
- Sim,
Marcos, tomando-lhe e apontando com o dedo indicador o nome dele na ficha. Eles estavam tão intensamente ligados um ao
outro e, em que pese o passeio pelas ruas após o jantar, embriagados pelas
deliciosas três garrafas de Tinto Seco, não ouviram a recepcionista dizer em
voz baixa: - Venezia... Ah, mio dio...
No dia
seguinte, eles tomaram café da manhã no quarto da estalagem e, deitados na cama
um ao lado do outro, ligaram seus celulares.
- Me
perdoe... Disseram juntos ao celular aos seus pares. Desligaram imediatamente o
aparelho e deram uma sonora gargalhada.
- O que
vamos dizer a eles, perguntou Sara.
- Que a
vida nos deu um solavanco... Sugeriu Marcos.
- Como assim? Indagou Sara.
- Observe, disse Marcos voltando a ligar o
celular.
- Paula, Marcos... É que algo muito louco
aconteceu na noite de ontem. Anos atrás, conheci uma pessoa...
- Uma mulher? Interrompeu-o do outro lado
do aparelho.
- Sim,
Paula... Em Paris, quando o cinema completava cem anos...
- E daí,
isso é motivo para me deixar plantada aqui no hotel, sem ter nenhuma
comunicação contigo... Você viu quantas vezes tentei falar contigo de madrugada
e agora de manhã... Estava saindo para ir a uma delegacia... Preocupada...
Poxa, Marcos, você vem agora com uma história de mulher, cem anos de cinema...
- Me
perdoe... É que...
- Estou
indo agora para o aeroporto e voltando para casa... Deixo suas coisas na
portaria do hotel... Adeus!, disse com indignação a mulher do outro lado do
aparelho.
- Há muito
tempo você está com ela? Indagou Sara depois que viu Marcos desligando o
celular e olhando com o olhar perdido pela janela. - Está arrependido pelo que fez?
- Não...
- É minha
vez, disse Sara voltando a ligar o celular.
- Paul, Sara... É que algo muito louco
aconteceu na noite de ontem. Anos atrás, conheci uma pessoa...
- Um homem? Interrompeu-a do outro lado do
aparelho.
- Sim,
Paul... Em Paris, quando o cinema completava cem anos...
- E daí,
isso é motivo para me deixar plantado aqui no hotel, sem ter nenhuma
comunicação contigo... Você viu quantas vezes tentei falar contigo de madrugada
e agora de manhã... Estava saindo para ir a uma delegacia... Preocupado...
Poxa, Sara, você vem agora com uma história de homem, cem anos de cinema...
- Me
perdoe... É que...
- Estou
indo agora para o aeroporto e voltando para casa... Deixo suas coisas na
portaria do hotel... Adeus!, disse com indignação o homem do outro lado do
aparelho.
- Há muito
tempo você está com ele? Indagou Marcos depois que viu Sara desligando o
celular e olhando com o olhar perdido pela janela. Está arrependida pelo que
fez?
- Não...
Tomaram
banho juntos, se vestiram e deixaram a estalagem. De mãos dadas e em silêncio
vagaram por alguns minutos. Pararam se abraçaram e...
- O que
fazemos agora? Indagou Sara.
- Vamos ao
seu hotel primeiro, depois no meu e pegamos nossas malas... Sugeriu Marcos,
afagando os cabelos de Sara.
- E vamos
prá onde?
- Para
onde gostaria de ir? Indaga Marcos, beijando levemente a boca de Sara. Tenho
dois dias livres ainda, depois devo retornar...
-
Florença? Propôs Sara, dando pulinhos e esfregando uma mão na outra.
Eles se
abraçaram e depois se beijaram demoradamente.
Nos anos
que se seguiram, ele esteve com ela em diferentes lugares e na medida em que o
tempo avançava amava-a um pouco mais pelo dourado dos cabelos dela, o perfume,
a delicadeza das mãos e o calor do seu corpo. Florença, Nice, Monte Carlo,
Viena, Praga, Budapeste, Berlin, Santiago, Montevidéu, Buenos Aires, Milão,
Roma, Nápoles, Pisa, Genova, até que um dia, novamente, Veneza.
Eles
almoçaram no mesmo restaurante da Praça de São Marcos onde haviam se
reencontrado anos antes. Depois, passearam ao redor da praça e Marcos
queixou-se com Sara dizendo-lhe que não se sentia bem e que preferia retornar
ao hotel para poder repousar um pouco. Passava das dezoito horas.
- Espero
que eu melhore logo desse mal-estar...
- Vamos,
então...
Passaram
em uma farmácia compraram medicamentos e foram para o hotel. Já no quarto ela preparou os remédios e passou a
ele com um copo de água.
- Tome...
-
Obrigado.
Ele
adormeceu em um sono pesado. No dia seguinte, pela manhã acordou sentindo-se
bem melhor. Estranhou que Sara não estivesse na cama. Chamou pelo seu nome,
acreditando estar ela no banheiro. Não obtendo resposta, levantou-se, abriu a
porta do banheiro. Onde ela pode ter ido? Perguntou-se. Ligou para o
restaurante e pediu ao garçom para verificar se ela estava por lá. O garçom
depois de alguns minutos ligou para o quarto e disse que havia procurado por
ela em todas as mesas e ela não se encontrava. Marcos ligou para a recepção o
hotel e consultou a recepcionista. Da mesma forma recebeu a informação que Sara
não estava lá e nem havia passado por ali naquela manhã. Marcos tomou uma ducha
breve e vestiu-se rapidamente. Quando abria a porta do quarto seu celular
tocou.
- Me
perdoe... É que...
Era Sara.
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