De 4 a 12 de maio de 1925, o físico
alemão Albert Einstein (1879-1955), uma das maiores personalidades do século
passado idealizador da teoria da relatividade visitou o Brasil. Em uma das
várias solenidades a que compareceu, um jantar oferecido pela nata da
inteligência nacional, ocorreu (dizem) o seguinte diálogo entre ele e o
presidente da Academia Brasileira de Letras, de quem sei o nome, mas não conto.
Einstein teria perguntado ao intelectual: ‘O
senhor faz o quê?’ Ao que o intelectual respondeu: ‘Escrevo. Livros e também crônicas diárias para um jornal. ’ Surpreso, o físico interpelou novamente o
intelectual: ‘Como?!!! O senhor tem
idéias todos os dias?!!! Que maravilha, eu tive uma única idéia em toda a minha
vida!’
Nós não havíamos ainda construído
nossa casa em Santa Luzia que fica no alto do terreno que é rampado. Lá ficava
um pomar. Em um domingo, pela manhã eu me encontrava ali cuidando das mudas de
árvores que havíamos plantado. De repente ouço chamarem pelo meu nome: Gulhôoo!!! Gulhôoo!!! Do portão de entrada da propriedade que fica
na parte abaixo do terreno vejo uma senhora, com a voz esgarçada, gritar pelo
meu nome. Já chego aí, gritei. Quando
me aproximei da senhora, que não conhecia, ela que se apoiava numa bengala me
intimou: caça um canto aí prá eu sentá! Peguei
na mão dela e a levei para dentro da área coberta onde construiríamos o que
hoje é a cozinha. Logo que ela acomodou-se eu disse: - ‘A senhora sabe meu nome, eu não a conheço... ’ – Eu sou mãe do Jair (que vem a ser um artista
serralheiro que fazia algumas esquadrias de ferro para nossa casa). ‘Ele me disse que você é muito engraçado, aí
vim te conhecê’, disse e arrematou: ‘Eu
não gosto de pessoas desgraçadas!’ Perguntei o nome dela. ‘Julieta é o meu nome de batismo, mas eu
gosto de ser chamada por Júlia, porque foi assim que o meu marido com quem eu
fui casada durante setenta anos me chamava... ’ Ela no seu vestido estampado,
com um leve perfume, deveria ter então agora quantos anos? ‘A senhora foi casada setenta anos, dona Júlia?’, perguntei. ‘Sim, por quê? Disse levantando a
cabeça. ‘Por nada... A senhora tem
quantos anos?’, quis saber. Noventa e
quatro, por quê?’ Senti que nascia ali uma oportunidade ímpar: conviver com
uma pessoa que aos noventa e quatro anos ainda pergunta. ‘O que é viver noventa e quatro anos, dona Júlia?’, indaguei
intensamente interessado no que ela iria dizer. ‘Até os noventa vinha bem, agora ficou mais divertido... ’
Dona Júlia passou a conviver
conosco, praticamente todo final de semana eu a visitava ou ela, raramente, ia
à nossa casa. Certa vez eu e ela estávamos na cozinha da pequena casa em que
ela morava, conversando, ela me acariciava os braços e as mãos e a Vera (minha
esposa) vinda da sala entrou na cozinha. Dona Júlia tirou as mãos bruscamente do
meu braço e eu percebi: ela corou. Seu rosto fumegava. Vera saiu novamente e
Dona Júlia foi ao encontro dela na sala. Da cozinha vi Dona Júlia abraçar Vera ternamente
e ouvi-a dizer: ‘Vera não me leve a mal,
mas é que eu gosto muito dele. ’
Dona Júlia nos convidou para o seu
aniversário de noventa e cinco anos. Não fomos. Eu confundi o dia ou me esqueci
e não fomos. Semanas depois, passada a data do aniversário, estou numa das
ruelas de Santa Luzia, quando de uma pequena loja sai Dona Júlia de braços
dados com uma das netas e apoiada pela sua inseparável bengala. Quando ela me
viu, rodou a bengala em minha direção e gritou: ‘Gulhô!!! Só de pirraça eu vou fazer noventa e seis!!!’
Dona Júlia faria noventa e seis anos
e nos convidou novamente para o seu aniversário. A família rezaria uma missa na
Matriz da cidade. No dia, uma sexta-feira, desci no aeroporto de Confins
exaurido, extremamente casado por uma semana intensa de trabalho e fui para
Santa Luzia. A missa, no início da noite, já havia começado. Na chegada à
Matriz aproximei-me da porta principal e de lá procurei Dona Júlia e Vera e não
as encontrando resolvi ir por uma das portas laterais. Quando entrei na igreja
por uma das portas laterais vi Dona Júlia, de pé. Ela me viu e me intimou: ‘venha aqui!’ apontando com o dedo em
riste para o chão.
Vera estava sentada
em um dos bancos da frente. Parei e fiquei também de pé ao lado de Dona Júlia.
Dez minutos depois que eu estava ali, disse para a Vera: ‘Não é melhor a velha sentar?’ Esperando que se isso acontecesse eu
poderia descansar um pouco já que eu estava em ponto de cair ali de tanto
cansaço. Dona Júlia então repreendeu-me: ‘QUIETO!’
A missa já estava acabando, felizmente, pois eu ainda me encontrava de pé, quando
Dona Júlia pegou na minha mão olhou bem fundo nos meus olhos e disse: ‘Corro risco de fazer noventa e sete, não
corro?’
Dona Júlia fez noventa e sete anos.
Fomos a casa dela no dia do aniversário. Em determinado momento, estávamos apenas
eu e ela num dos pequenos quartos da casa, eu perguntei: ‘Dona Júlia, a senhora não tem medo de viver aqui com sua filha (de
setenta anos), sozinha?’ Ela olhou para mim, ficou pensativa uns instantes
e respondeu: ‘medo, medo eu só tenho da
morte porque não a desejo. ’
Depois de Dona Júlia, ficou uma
teoria, que talvez seja a idéia da minha vida. Ela vem sendo aplicada em
diferentes oportunidades na minha prática consultiva e nas palestras que faço
pelo país a fora. Empreender ações transformadoras não se faz sem riscos. Tenho
procurado nos olhos das pessoas que participam desses eventos, os olhos de Dona
Júlia, especialmente quando ela disse, certa vez, ‘SÓ DE PIRRAÇA EU VOU FAZER... ’
Até breve.
É incrível como o " só de pirraça " impulciona nossas vidas .
ResponderExcluirParabens pela descrição , a Dona Julia , tem razão , você é mesmo engraçado.
Gilberto
É ... vale a pena a pensar numa estratégia para ver se "só de pirraça" esse povo anima a te dar um netinho, né? kkkkkk beijos Camila
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