domingo, 8 de maio de 2011

BURLESCO



Ele deveria ter chegado e ido embora logo. Ninguém esperava que ele pudesse trazer tanto. Era bonito, chegou barbeado, alto e magro, mas forte. Então, quis zanzar pela cidade à procura de coisa-qualquer para ver e falar depois que voltasse.

Muito gente observava-o, tecendo comentários sobre o penteado, a calça larga nas pernas, apertada na bunda, teve gente que falou que era homossexual. Mas não. Pelo menos ninguém ficou sabendo de amores clandestinos desse gênero.

Maria ficou doida, ficou meio pataca, meio zueira, meio quente, essa é que é a verdade. Nua e crua. E ele zanzou, ali, aqui e acolá, passou pelos becos e cheirou o ar das barbearias, dos botecos, conversou com garis, vendedores de loteria e se impressionou com Mané Toco, como o sujeito conseguia fazer reparos em cadeiras de palhas daquele jeito, sem mão.

Aí, foi lá na esquina da tocaia e cumprimentou os malandros que até hoje por ali tramam trapaças. Fez ar de amigo, foi zombado, mas isso não vai ficar assim não, quis brigar, mostrar que com ele não tinha disso, que ele era muito macho, muito homem para qualquer tipo de coisa. Esse sujeito não se emenda, foi o que as beatas da avenida dos ipês começaram a falar de Zé Cicatriz ao ofender o forasteiro que vinha das bandas da capital-maior. Ele se foi e ficou sabendo da fama do Zé que corria pela cidade, e até marcaram um duelo entre os dois, lá no campo do Independente, domingo às onze horas da manhã. Achou graça, o que poderia achar? Não se falava mais isso, o mundo é bem outro.

Voltou à estação e quis comer alguma coisa, pastel, pão com salame, beber coca-cola. Lembrou do estômago e desistiu. Já de malas nos ombros, desceu a alameda dos confins e foi bater lá na pensão em frente ao grupo escolar, da dona Eleutéria, aquela dos olhos vidrados e escuros, parecendo louca. Boa noite, tudo bem, estou chegando agora, foi falando e entrando e olhando baixo-acima a casa velha, às vezes parede aqui e ali sem reboco ou seu tinta. Baratas a correr-lhe entre as pernas, um cheiro estranho de mofo azul. Quero casa e comida por isto todo mês e muito sossego, porque vim para descansar. Quem diria? Eleutéria, coitada, acompanhou-o lá para o fundão da casa na esperança de que, consumindo com ele não houvesse barulho.

Isso era tardinha, não chegava nem a seis horas. Ele tomou o banho, vestiu apenas um short esquisito, pegou o diário de notícias e foi se estrebuchar no sofá azul da sala. A velha disse que não, que não permitiria aquelas liberdades, tinha filha moça em casa, o que todos pensariam, meu Deus? Nem discutiu, pegou as outras folhas do matutino e se mandou para o quarto.

Sete horas, estava de novo na rua. Gel a brilhar-lhe os cabelos e um perfume forte a exalar do corpo. Esteve com pessoas que lhe bombardearam com perguntas: o senhor vem de onde, para que, por que, faz o que, vai ficar quanto tempo? As luzes eram poucas, o luminoso único chamava a Bar Estrela e, bem em frente, o outro, Bar Independente, sem luminoso, homens e mulheres apinhados em poucas mesas e cadeiras. Foi lá, pra que temer? Entrou no Bar Estrela. O homem do outro lado do balcão empalideceu. Não quero confusão aqui, moço. Nada de bagunça, porque chamo o Cabo Demóstenes e mando todo mundo pro xadrez. Não, nada disso, queria só tomar cerveja gelada. Não tinha, pelo menos para ele. No independente tem, vai lá.

Zé Cicatriz, o irmão e umas mulheres estavam numa mesa do lado do miquitório. Mão-de-onça esfregava as mãos. Era frio ou mania, quando via quebra-pau por perto. Tunico nem quis saber, se mandou, provando que era mesmo galinha. Ele entrou, olhou ao redor e disse boa noite. Zé Cicatriz respondeu boa noite. Ele foi ao balcão e pediu cerveja. Não tem, disse João Dornas. Um refrigerante acabaria com a sede, mas também não tinha, depois do João Dornas olhar para o Zé. Então ele agradeceu e saiu.

A manhã explodiu no outro dia, faltavam dois para o duelo, domingo, às onze horas da manhã. Sentou-se à mesa e a mulher, Eleutéria, serviu-lhe o café, pão dormido com manteiga. Ele estava com o rosto aparentando cansaço, a noite não havia sido nada boa. Agradeceu à mulher e quando saía viu Maria, em frente à Virgem, rezando fervorosa. Bom dia, e não obteve resposta. Saiu, acabrunhado.
Quer emprego, procurar. Quer emprego, não tem. A cidade já conta com seus produtores cabíveis. O que fazer então? Jogar, com quem? Roubar, de quem? Voltar então? Não podia. Entrou num boteco em frente à igreja para comprar um cigarro picado. Digo coisas do arco da velha, meu filho, mas sei bem o que é o mundo... Ficou ali um bom tempo ouvindo estórias sem nexo do Seu Binha.

Voltou para a pensão, passou pelo corredor que dava acesso ao quarto e viu Maria, que arrumava as camas. Bom dia, cabeça baixa, não lhe respondeu. Ele então vai para o seu quarto, deita-se na cama e se coloca a pensar.

Nova manhã a lhe dizer coisas da vida. O duelo mais perto, Maria mais bela, mais quente, mais zueira. Ele mais desesperado. Quero saber, se ficar, como vai pagar o aluguel, Eleutéria lhe surpreendeu já hoje. Ora, vou arrumar emprego. Não vejo como, pessimista Eleutéria. Arrumo, nem que tenha de lavar rabo de burro no estábulo do Joaquim. Não quero saber, não pagando, meto os pés nos seus fundilhos, está avisado, então.

Procurou o velho Binha, convenceu-o da idade, atenderia por ele no boteco, o velho lhe pagaria o valor do aluguel da pensão e algum cigarro de dia, outro à noite. Sua vida não valia muito mesmo, poderia emprestá-la assim. Foi bom, porque dali pode conhecer a cidade.

À noite, na pensão, foi logo contando pra dona Eleutéria da colocação. Ela ficou menos ríspida, serviu-lhe um jantar melhor: arroz, feijão, batata frita, ovo frito e salada de alface e tomate, um copo de suco de manga colhida nos fundos do quintal da pensão. Maria chegou a sorrir, mas não ficou à mesa, porque na presença dele corava e as pernas tremiam tanto, de não suportar. Dona Eleutéria disse que colocaria melhores roupas de cama e a toalha de banho seria maior. Não precisa, está bom assim.

Dormia na véspera do duelo, quando a porta do quarto se abriu. Maria, trêmula, pedia pra falar com ele, com o seu moço da cidade. Pois não, o que queria ela? Tome cuidado, Zé Cicatriz é perverso, é mau. Num teve ainda nenhum que ele não venceu, cuidado seu moço. Não se preocupe, a cidade da qual ele vinha tinha coisas muito piores. Ela saiu do quarto, boa sorte seu moço. No corredor encontrou-se com a mãe, que lhe desferiu violento murro nas costas. Ele correu até ela, não faça isso Dona Eleutéria. Seu vagabundo, quem manda nela sou eu. Mas ela só foi me desejar boa sorte amanhã. Você que se estrepe e suma. Tô cansada disso tudo. Ele voltou ofegante para o quarto, lembrando o gesto de Maria, como ela era bonita, jogada naquele canto de mundo.

Quero o canto de lá. Não interessa, já é meu. Concordou, a assistência era muito e todos torciam por Zé Cicatriz. Talvez tivesse alguém na platéia que gritasse por ele, mas ficou em casa, dona Eleutéria não queria que a filha presenciasse o duelo. Queria que tudo fosse limpo, apesar de saber que estava bem perdido, mas queria limpo.

Passava do meio-dia quando tudo começou. Os outros que participavam não tinham tantas razões para estarem tensos, nervosos, mas também não se encontravam bem. No primeiro lance caiu deslocado. Zé Cicatriz foi mais hábil e rápido. Refeito do golpe, se levantou decidido. Noutro lance, pouco depois, voltou a cair. Todos contavam que durasse pouco, mas não. Tudo que ele aprendera no bairro, nos lotes vagos, nas noites ao som da luz, das surras da mãe, porque depois dos duelos voltava pra casa já bem tarde da noite, foram agora necessários. Não se entregaria assim, quero ver agora malandro... Pois aconteceu a reviravolta, já que Zé Cicatriz e os outros tinham vantagem. Ele, de tanto tentar, veio-lhe os lances. Zé Cicatriz caiu várias vezes, cuspiu-lhe no rosto, feriu-lhe algumas vezes, praguejou a sorte, mas não pode evitar a vitória do seu moço lá da cidade maior, que trabalhava no boteco do seu Binha e que, de tanto tentar, deixou dois tentos belíssimos.

Voltou cansado à pensão, mas carregado por bem parte da cidade e encontrou Maria e dona Eleutéria na porta aguardando-o. Vá lá dentro menina e quenta água pra umas compressas, que ele num tá nada bom. Já vou, e foi cheia de graça, como a virgem do quarto. Colocaram-no na cama, quero tomar um banho. Nada disso, água fria num corpo quente, pode te dar torcicolo, alertou a velha.

Deixado sozinho no quarto, seus olhos resplandeceram enormes. E, pela primeira vez, naquela cidade sorriu inteiro. O duelo fora dele, vencido com garra. Pouco depois, Maria entrou no quarto com a bacia com água quente para as compressas deixando a porta aberta. A mãe vigiava os dois lá da cozinha. Moço, não esperava que o senhor vencesse, mas a virgem ouviu meus apelo, limpando os arranhões com a toalha felpuda.

Passou a vida, e ele mais querido. Zé Cicatriz, inconformado, marcava outro duelo. O que aconteceu foi que ele já era cidadão e nem queria mais saber de duelo. Pouco tempo depois, no entanto, Seu Binha veio a falecer. A família ficou com o boteco e não queria mais que ele tomasse conta. A situação voltou a agravar. Maria chorava aos gritos temendo que ele tivesse que ir embora, por volta de trabalho. Não se entregou, não me importo, aceitou o serviço. E ficou lá mesmo com o Joaquim.

Domingo que vem vou passear, queria levá-la, sem sua mãe saber, senão ela não deixaria, quer ir? Não, vão ver a gente, iriam contar para dona Eleutéria e o que aconteceria depois, virgem Maria? Não, ninguém ficaria sabendo, porque ele diria que iria viajar, que vou até Lapinha pra ver se acho coisa melhor. E eu? Diria que queria refrescar as idéias, que está precisando, aproveitando que seu moço não ta aqui e o serviço é menor. Mas voltamos logo, claro que sim, eu sei que é perigoso, mas compensaria.

Subiram a serra dos eucaliptos, de mãos dadas, loucos, cheios de vida e liberdade e compreendendo que a vida pode ser. Maria se fez vermelha, os lábios tremiam, os cabelos ao sabor do vento como as folhas das árvores altas como a noite, esquisita como o seu moço da cidade maior. Foram parar num descampado, uma nuvem densa e negra anunciava tempestade breve. Queriam esta tempestade, a lá de baixo era maior. Natural e delicadamente se entrelaçaram, embebedando-se de prazer e alegria. A tempestade não veio, a nuvem imensa se dissipou e eles ficaram juntos sobre a relva espessa olhando-se nos olhos e procurando algo um no outro. Era preciso voltar, está ficando tarde, é perigoso... Vá primeiro, Maria, que ele dormiria lá aquela noite, porque é melhor. Ela concordou e desceu como se voasse.

Não arrumou nova colocação seu moço, então iria tirar as roupas melhores da cama e a toalha de banho voltaria a ser a menor. Aqui só leva vantagem quem pagasse o aluguel em dia. Ele não se incomodou, à noite levo pra você, bem cedo ela tiraria. Não levou apenas as cobertas e a toalha de banho, Eleutéria dormia que o som do sono era alto, quase ensurdecedor. Maria ficava até bem cedo, mamã já vai levantar seu moço, tenho de ir.

Sobrevieram dias e noites. Sobrevieram duelos. Sobrevieram aconchegos e amores ensurdecidos. Sobrevieram também seres em extensão. E ela ficou grávida. A cidade inteira soube. Ele lavava o último animal, quando recebeu a dona Eleutéria e o doutor delegado de polícia, eu te mato cachorro! Então, levaram-no para a delegacia. Ficou preso enquanto arrumavam os papeis. Depois saiu, e foi viver com ela, no quarto dos fundos da pensão. Trabalharia ali mesmo, na reforma da casa. De pintor, pedreiro, bombeiro, eletricista.

O filho macho, forte e sadio. Tinha a cara do pai que a noite saía com o menino, ficava nas bandas esquerdas da cidade, porque dali que a lua vinha lenta e macia de trás da serra, tem gosto de queijo, papai? Maria ficava em casa, cuidando da velha Eleutéria, que caira doente.

O filho já grande, dona Eleutéria já morta, Zé Cicatriz conformado, Maria mais branda, seu Joaquim já morto, ele dono do estábulo e da pensão, recebeu bem cedo, no domingo, a polícia da cidade maior. Não fica triste, Maria, voltaria logo porque já passara muito tempo do crime, ele poderia provar que fora em legítima defesa, que o outro também estava armado.

Mas não voltou.


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