domingo, 8 de maio de 2011

BANAL



Foram no total 236 disparos, embora esse número configure a média entre o número menor e o maior divulgado pela mídia tanta escrita quanto eletrônica. Contadas nos corpos as perfurações à bala apontadas no laudo inicial elaborado pelo IML foram num total de 55, assim distribuídas:

1.       Fernando Paulo de Souza, conhecido como TRÊ, dezenove anos, cor parda, amasiado, filho de Ana de Souza, pai desconhecido, sem endereço fixo, morte instantânea com ferimentos à bala de revolver calibre 38 (duas na parte frontal do crânio, uma na nuca, dois no tórax); ferimentos à bala de Pistola 9mm (uma no braço esquerdo, duas no abdômen) e ferimentos à bala de Pistola 380 (duas na coxa esquerda e uma na perna direita);

2.       Werderson dos Anjos, conhecido como SON, dezenove anos, cor negra, solteiro, filho de Jacira dos Anjos e João da Anunciação, residente no aglomerado das Paineiras, morte instantânea com ferimentos à bala de Fuzil AR15 (uma na parte frontal do crânio, seis no tórax); ferimentos à bala de Pistola ponto40 (duas na coxa direita, quatro nas costas) e ferimento de uma bala de Revolver calibre 38 na parte anterior da perna esquerda;

3.       Josecler Oliveira, conhecido como SACI, dezoito anos, cor negra, solteiro, portador de necessidades especiais (teve a perna direita amputada após ser agredido com um facão pelo padrasto), filho de Maria da Conceição Oliveira, pai desconhecido, morador de rua, morte instantânea com ferimentos à bala de Pistola ponto40 (duas na lateral direita do crânio), ferimentos à bala de Pistola 380 ( uma na nuca), ferimentos à bala de Fuzil AR15 ( três no tórax, duas no abdômen);

4.       Charley Pinto, conhecido com CHAPAU, vinte anos, cor parda, solteiro, filho de Dores da Souza Pinto e Antônio Moraes de Souza, morador no aglomerado das Paineiras, morte instantânea com ferimentos à bala de Fuzil AR15 (duas na lateral direita do crânio, duas no tórax); ferimentos à bala de Pistola ponto40 (quatro nas costas) e ferimento de uma bala de Revolver calibre 38 no abdômen;

5.       Disnei Antônio dos Silva, conhecido com NEI FUMAÇA, dezenove anos, cor negra, solteiro, filho de Celestina Aparecida da Silva e Clarinor da Silva, morador do aglomerado Tem dó, morte instantânea com ferimentos à bala de Revolver 38 (duas no tórax); ferimentos à bala de Pistola 9mm (três no abdômen) e ferimento de uma bala de Pistola ponto40 no crânio;

6.       Andersonclayton Pereira dos Santos, conhecido como MARGARINA, dezoito anos, cor branca, solteiro, filho de Mirinha Pereira dos Santos e Ronildo dos Santos, morador no aglomerado Vintém, morte instantânea com ferimentos à bala de Pistola 9mm (duas na perna esquerda), ferimentos à bala de Pistola ponto40 ( uma na nuca), ferimentos à bala de Fuzil AR15 ( três no tórax, duas no crânio);

7.       Kelly Cristina Alves, conhecida como KEL, dezoito anos, cor branca, amasiada, filha de Cláudia Alves, pai desconhecido, residente no aglomerado do Tem dó, morte instantânea com ferimentos à bala de um revolver 38 (uma no coração), deixa um filho de dois anos.

Kel foi violentada pelo padrasto desde os cinco anos de idade, enquanto a mãe prestava serviços de limpeza em casas de família. Aos treze conheceu TRÊ, fugiu e foi morar com ele no aglomerado Paineiras. Ele tinha quinze anos, teve distúrbio cerebral decorrente de fome aguda nos primeiros anos de vida e a seqüela ficou como uma tremedeira na mão esquerda, daí TRÊ. Praticava pequenos furtos no centro da cidade, celular, corrente, pulseira, bolsas a tiracolo, coisas sem importância. Ela, não, ficava nas esquinas avaliando incautos para apontar para o amante e guardar numa sacola o produto dos saques. Dessa época, restaram os cinco amigos mais próximos, outros foram presos, mortos ou sumiram. Aos domingos eles iam pra uma cachoeira próxima ao aglomerado do Tem dó. Ali faziam sexo, se drogavam, e planejavam o futuro: montar uma boca.  Claro que nesse aglomerado já havia pelo menos três, a do Caolho, a do Zeu e a do Cão. Então tentariam noutro aglomerado, quem sabe o Paineiras ou mesmo o Vintém, onde só rolava erva.

Belo dia, NEI FUMAÇA apareceu com uma história de que a polícia havia dado uma batida no Paineiras e levado boa parte da boca. Era a hora: juntaram os seis e fizeram a sequência. No início foi bravo, sem experiência qualquer trampo é trampo, dizia SON. Rolou beleza por uns tempos, criaram freguesia certa e segura, uns meninos zona sul que entravam no aglomerado de moto, com identificação sabida e a vida caminhou.

Nas armas pegaram depois do episódio na casa do Josecler que era, até aquele dia, um puta craque nas peladas de final de tarde. Quando chegaram à casa ele estava com o sangue ainda se esvaindo. Não deu outra, correram com Josecler para o Pronto Socorro no Monza do seu João da Anunciação, que foi dirigindo, puto da vida por conta da sujeira que virou o seu carro. Foi foda, para todo mundo. Josecler era o cara, pombas! Agora, sem a perna direita. A sacanagem do apelido foi do Margarina, que um dia viu Josecler saltando dentro de casa sem nenhuma ajuda ou recurso que lhe permitisse o equilíbrio. Pô, o cara é um puta Saci! Aí pegou.

 Nunca tinha acontecido, até então. Dona Conceição apareceu com um 38 dizendo que aquele puto não ia de manter vivo. Agredir o filho com facão e aleijar o pobre do menino. - Num vai fazer doideira, mãe... Deixa esse viado... Foi quando CHAPAU pegou o 38 e disse: - Deixa comigo, eu faço o serviço. - Pô cara, negativo, a gente tem levado tudo na boa sem pegar nesses troços, foi Margarina quem ponderou. - Pois tá na hora, foi logo apartando TRÊ.  - Vamo pegar esse filho da puta! Quem arrumou esse berro, dona Conceição? Tomando o revolver da mão de Chapau.  – É do sacana! Respondeu Dona Conceição. – Melhor então, ele vai morrer do seu próprio trabuco!

E foi assim. O cara teve coragem de voltar depois de alguns dias à casa da dona Conceição e Saci estava sozinho, enrolando uns baseados. – Ai, garoto, agora aprendeu quem é homem nessa casa? Não deu tempo de mais nada, pois já tinham avisado para o TRÊ que o elemento tinha entrado no aglomerado. TRÊ entrou na casa e gritou: - Morre seu filho da puta! Descarregou as seis balas prá cima do cara. Agora era tarde, matara pela primeira vez. Pegaram o corpo, jogaram dentro do Monza do seu João da Anunciação que foi dirigindo, puto da vida por conta da sujeira que virou o seu carro. Jogaram o corpo num matagal, tiraram gasolina do Monza e atearam fogo no sacana.  – E aí, TRÊ, o que rolou quando arrumou o cara? Perguntou Chapau. – Alívio! Respondeu TRÊ, poderoso.

Depois disso a boca ficou pedreira. Cresceu e a turma consumidora quis levar pó, além de erva, o trampo ficou sujo. Com o pó, veio a pedra e não teve jeito: pintou os trabuco de tudo quanto é calibre. Dalí prá frente é o de que já se sabe. TRÊ, dono da boca, era safo e tinha fidelidade incondicional de Chapau, Son, Saci (que tornara da administração interna da boca), Margarina e Nei Fumaça. Além deles toda a comunidade do Paineiras jogava o jogo e, é claro, com boa ajuda dos da Lei. Kel não fazia parte do esquema. TRÊ blindava.

Rolou muita grana e eles se arrumaram bonito. Cada um com seu pedaço de lugar, amoitado que só os sete sabiam onde. Movimento diário, dia inteiro e noite adentro. De quando em vez pintava uns grilos com alguém da turma ou da comunidade, dando de esperto ou querendo furar os esquema. Nessa toada foram um quinze. Puto ou não, sobrava pro seu João da Anunciação que de quebra começou a se interessar pelo negócio já que os meninos bancavam o carreto e enchiam o tanque de gasolina. – Menos, mal, dizia ele.

Numa noite chegaram à boca do Paineiras com a notícia que o Vintém e o Tem dó tinham virado. TRÊ e Son estavam juntos e rapidamente localizaram Chapau, Mangarina, Nei Fumaça e foram para a casa de Saci. Os caras das bocas vizinhas tinham se pegado. Morreu uma penca de cada lado e fragilizou. Foi foda pra decidir, mas não deu duas horas três dos comando dos fornecedores, principalmente de pó, apareceram na casa de Saci. – As boca são sua, TRÊ. Pega logo que nós vamo agilizar os procedimento... Vamo com tudo, cara! A comunidade do Paineiras tremeu quando viu uns trinta deles entre quinze e, no máximo vinte anos, sem camisa, tênis, chinelo de dedo e fortemente armados descerem as ruelas.

Na manhã seguinte, os do Paineiras tinham fechado o Tem dó e o Vintém. Alguns dias depois já tinham corrigido o andamento, com ajuda dos da Lei, nessa uns vinte desceram o Vintém e uns dezoito desceram o Tem dó em cobertores ou carrinhos de mão encharcados em sangue, poucos a facadas, mais no tiro mesmo. Não dava mais para seguir com o Monza do seu João da Anunciação, ficou mesmo para o rabecão do IML o serviço de rotina.

Pelo porte decidiram que a base ficaria no Tem dó, com TRÊ, Nei Fumaça e Saci. No Paineiras, Son e no Vintém, Margarina e Chapau. Seu João da Anunciação abandonou a sua oficina mecânica e passou a queimar gasolina do Monza na recepção, transporte e distribuição dos bagulhos nos três pontos. Afora os contratempos normais da operação tipo ajuste de preço e correção de excessos de rompante de um ou outro membro da comunidade, que logo era sanado nos procedimentos sabidos, a vida caminhava mole.

Nos tempos dos banhos de cachoeira próxima ao Tem dó, Kel rolava com todos, menos com Margarina que transava mesmo era com Chapau.  Desde que eles se arrumaram na boca do Paineiras, TRÊ fixou Kel só prá ele e ela nunca foi tão feliz. Difícil de aceitar por Son, que também queria Kel como só dele. Foi numa manhã de sexta-feira perto do meio dia, que ela vinda da farmácia disse numa roda em que estavam TRÊ, Nei Fumaça e outros dez caras que ela tinha feito o teste de gravidez e dera positivo. O menino de dezessete anos com tremedeira não só na mão esquerda, mas agora pelo corpo todo, tomou de Nei Fumaça o Fuzil AR15 e o descarregou inteiro apontado para o céu. Quando o barulho dos tiros cessou um dos dez caras que estavam na roda ligou o celular: - Son, Kel tá prenha!

Os quase nove meses que se seguiram foram de aguda espera, até que numa madrugada Kel começou a ter as dores e TRÊ saiu desembestado com ela a procura do seu João da Anunciação que no Monza os levou ao hospital. Seu João da Anunciação entrou com Kel, TRÊ ficou no Monza, era melhor não dar mole. Cansado, adormeceu.  Por volta das cinco da manhã TRÊ acordou sobressaltado com o barulho de batidas no vidro do carro. Eram os da Lei. Enquadram e o levaram para o DP. Dez dias, três ônibus incendiados, três viaturas tombadas e uma grana nas mãos de boa parte da estrutura dos da Lei depois, TRÊ conheceu o garoto e Kel chorou. TRÊ olhou para a criança que dormia no berço e perguntou à Kel: - E a mão?  - Beleza, ela respondeu.
 
Kel colou no menino, só tinha vida prá ele. Quando TRÊ estava em casa ela insistia na conversa de ele largar o trampo, sair dali e ir morar num interior qualquer. Ele estava com dezenove, ela com dezoito anos, tinham toda a vida pela frente, com a grana que já havia rolado dava pra começar qualquer comércio em outra cidade.

Isso foi num crescendo até que um dia ele comentou com Saci os interesses de abandonar o trampo. Saci passou para Son, para Nei e Margarina que passou a Chapau. – Fragilizou, disse Son quando soube. Son procurou TRÊ na mesma noite e quis saber. TRÊ confirmou e pediu a Son que reunisse o grupo. Quando saia de casa para ir ao encontro dos demais TRÊ beijou o garoto e Kel dizendo a ela que deixaria as bocas naquela noite. Levava consigo a inseparável Pistola 9mm que passaria a Son, como sinal de quem deveria ser dali para frente o dono. Kel ficou sozinha com o filho. Pouco mais tarde, invadiram a casa uns elementos procurando por TRÊ. Ela não disse onde ele estava.

No jornal da TV na manhã seguinte, o destaque foi o ataque terrorista no Marrocos em que morreram cinco civis.



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